DA INTERPRETAÇÃO...

A palavra evoca alguma coisa de não explícito, que contém o verdadeiro significado do discurso.

Luigi Pareyson

Quem renunciar ao trabalho da interpretação corre riscos de se perder nas teias da linguagem. Batismos semânticos podem desembocar em tapumes de mentirarias. Nenhuma lógica há de se sustentar como referência do absoluto. Se, como diz Philippe Breton, nos cercam manipulações tanto cognitivas como afetivas, interpretar é ato fundante, desmistifica e restaura sentidos.

A tecnicização da linguagem não faz dela meio seguro da verdade, campo ético confiável e instrumento da clareza. Crer nisso é engolirmos uma demagogia estilizada como se “efeitos de sentidos” não fossem embrenhados por intencionalidades, silêncios e incompletudes. Tantos os obstáculos opacos que supomos haver apenas dois caminhos: o dizer hegemônico e a carnavalização no dizer. Naquele, predomina um racionalismo na base de “tudo o que é racional é real”. Compreender, assim, é engolir vontades empacotadas em projetos, nas execuções e, sobretudo, nas entregas de fé. Nesta (carnavalização no dizer), ataca-se o sentido único, tomando lugar leituras sem referências, tudo é parcialidade, subjetividade. Ora, nossa reação contra interpretações dominantes ultrapassa ideologias racionalistas e relativistas. Interpretar para além das linhas – vasculhando condições históricas e desmontando racionalizações estratégicas –, numa espécie de “Arte Dialética” profunda, transcende às ideias, atinge o que, de fato, nos angustia: a verdade. Razão sem a verdade, assegura Pareyson, é a mais intolerável das tiranias.

A análise interpretativa requer consciência de que os fenômenos se constroem em bases estruturais, formais e conteudísticas. Ademais, qualquer noção de durabilidade nada mais é do que jogos históricos. A inércia significativa é resultado de ímpetos acocorados. Não caiamos na outra extremidade: a multiplicidade de manifestações não nos autoriza arbitrariedades de interpretações. Há limites neste processo. Linguagem que signifique qualquer coisa é violência comunicativa. Umberto Eco nos alerta: “existem interpretações clamorosamente inaceitáveis”. Uma abordagem só estrutural ou só formal é tolice cognitiva, só conteudística é gangorra ideológica. Entre as chaves que nos abrem escutas significativas estão aquelas que passam pelos vieses temáticos e textuais. No fundo, ao aplicarmos o tripé assunto, tese e argumentos, nos mantemos numa rota cuja margem de fidelidade a tais descobertas é digna de crédito. Sem que o texto se mostre, sem que o tragamos à luz em sua “coluna vertebral”, sem que reconheçamos o maquinário fundamentador e sem que construamos um esquema lógico dele, nossa interpretação será fantasma, ingenuidade ou embuste.

Enfim, interpretar pressupõe preparo técnico-crítico. Ao visar tecidos administrados jamais nos esqueçamos de que os equívocos são constitutivos dos gestos humanos, até porque sentido sem sentidos existentes é grau zero de nosso potencial expressivo. Tornar-se “outro” é atávico na linguagem, pois, “o sujeito é ao mesmo tempo despossuído e responsável pelo que lê”. Nosso olhar, entretanto, é disciplinado, é dialético, é criativo, é enraizado mesmo indevassável. Interpretar, em síntese, é trabalhar com o que ignoramos, com o obscuro, com as barbáries. Afinal, consoante Eni P. Orlandi, sem silêncio não há sentido (haveria o muito cheio da linguagem).