Já tenho material para mais um livro. Em lugar de ‘O Anjinho dos Pés Tortos II‘, estou pensando num título ‘O caso da criança com simioto que andava pelas ruas da velha Sorocaba‘. Será que vende?
O caso da criança com simioto que andava nas ruas da velha cidade
Animam-me os que me cercam na rua, mudam a direção de seus passos, procuram-me para declararem-se leitores cativos do que escrevo no “Cruzeiro”
O título pode parecer estranho, mas vocês já entenderão o porquê. Na crônica anterior reportei-me a ‘Gato Preto Em Campo de Neve‘, livro em que Érico Veríssimo relata experiências de sua primeira viagem aos EUA. Érico ainda não havia atingido o máximo de sua carreira (o faria, anos mais tarde, com a trilogia ‘O Tempo e o Vento‘), mas era vitorioso autor de ‘Olhai os lírios do campo‘, romance envolvendo médicos inesquecíveis, como a terna idealista Olívia, o ambicioso Eugênio e o típico médico de família Seixas. Não houvesse publicado a trilogia, talvez hoje fosse mais conhecido como pai do Luiz Fernando Veríssimo.
Érico encantou-se com a riqueza de cores da América. Lá, ainda não predominavam filmes em tecnicolor; aqui, até musicais carnavalescos eram em preto e branco. Observou a forma pela qual empresas condicionavam o consumo, atraindo com embalagens multicoloridas, colocando produtos ao alcance das mãos dos fregueses, permitindo o auto-serviço. Hoje, não é novidade.
À época, em nossas lojas, farmácias e armazéns de secos e molhados, balcões separavam o freguês das mercadorias. No Brasil, vivíamos em branco-e-preto com variações mínimas. Homens vestiam linho branco ou casimira azul escura, camisa branca com gravata; também brancos eram lenços, cuecas e meias de algodão. Fora disso, permitido o cáqui e o cinza. O resto nem pensar em vestir, para não ser chamado de viado (o eufemismo ‘gay‘ ainda não existia; era viado - com ‘i‘ - mesmo). Roupas coloridas (e não muito) somente para mulheres e crianças; para homens, só no Carnaval.
Revistas americanas exibiam cores fortes em papel de boa qualidade. Quem não se lembra da textura e das propagandas coloridas na ‘Seleções do Reader’s Digest‘ ou na ‘Em Guarda‘ (publicação ligada ao esforço de guerra)? Nossos jornais eram rigorosamente impressos em tinta preta, nas revistas (Cruzeiro, Cigarra, Alterosa) predominava coloração marron-magenta e as publicações infantis (Globo Juvenil, Guri, Tico Tico) traziam partes em tímidas tricromias. Nunca escondi que gostava dos quadrinhos e fiquei mais orgulhoso por havê-los lido quando soube que Rui Barbosa, Gilberto Freyre, Veríssimo e Lobato também curtiam os quadrinhos. Cartunistas americanos já haviam invadido os quadrinhos (a palavra gibi viria pouco depois) tupiniquins. Poucos se lembram do Tico-Tico, onde o marinheiro Brocoió, hoje mais conhecido por Popeye, comia espinafre enlatado. Comics precisam contar historietas com balões de extremo sintetismo.
Concisão, sem que se perca a essência, chamou a atenção de Veríssimo no mercado editorial americano. Exemplo típico estava na Seleções, cuja última parte era dedicada a algum best-seller em linguagem condensada; por mais que se lamentasse perder o estilo do autor, a simplificação da linguagem era muito fácil de ler, punha literatura atualíssima ao alcance de todos, e... dava lucro.
Pelos editores, Veríssimo ficou sabendo que os livros que mais vendiam abordavam os temas: Abraham Lincoln, cães e médicos. Para garantir edição de sucesso, um creative writers propôs à editora livro com o seguinte título: ‘O cachorro do médico de Lincoln‘.
Escrever pode ser atividade gratificante para quem o faz, mas nem sempre o é para quem lê. Desde que me cederam este espaço - para idéias, experiências e reminiscências - tenho me empenhado a que não falte material para ocupá-lo. Animam-me os que me cercam na rua, mudam a direção de seus passos, procuram-me para declararem-se leitores cativos do que escrevo no Cruzeiro. A freqüência e a natureza das manifestações por contato pessoal, telefonemas, cartas ou e-mails, permitiram-me avaliar os assuntos que meus leitores mais apreciam: crônicas saudosas das ruas desta terra rasgada e casos interessantes do consultório; dentro deste último tema, a maior repercussão concentrou-se nas crônicas em que mencionei o mal do simioto.
Já tenho material para mais um livro. Em lugar de ‘O Anjinho dos Pés Tortos II‘, estou pensando num título ‘O caso da criança com simioto que andava pelas ruas da velha Sorocaba‘. Será que vende?
Edgard Steffen é médico pediatra (edgards@directnet.com.br) e escreve aos sábados neste espaço.
http://www.cruzeironet.com.br/run/3/247825.shl