Como formar um leitor
Em "Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas"; Ítalo Calvino perguntava, oferecendo-nos, na própria pergunta, a resposta: “Quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações?”
A escrita, conquista do homem em sua eterna tentativa de desvelar-se e de registrar a sua passagem, é a forma concreta do pensamento e o livro eterniza em signos as pulsões, os desafios, os mistérios e a busca interminável de sentido que povoam o nosso espírito e o nosso imaginário.
Ao refletir sobre o papel e a importância do livro no Brasil do século XXI, não pude furtar-me a algumas reflexões inerentes ao tema. Quando o códice de pergaminho surgiu, com suas páginas numeradas e formato revolucionário, estabeleceu-se uma nova relação entre o leitor e o livro. O ato de folhear as páginas passou a ser um ritual de encontro entre o espírito e o poder simbólico da palavra. Ritual que começa a se perder mediante a rapidez do uso do mouse. Os avanços na área da informática oferecem ao mundo atual múltiplos meios de difusão de informações e de conhecimento, bem como de construção de valores. Ante essa nova realidade, o suporte tradicional, ou seja, o livro, luta pela sua sobrevivência, enfrentando a concorrência dos sites, revistas eletrônicas e e-books que proliferam na internet. Nesse panorama, onde se situa a importância do livro no Brasil do século XXI?
Em 16 de março deste ano, o periódico The Economist veiculou um artigo intitulado A nation of non-readers, que dava destaque ao plano nacional brasileiro de incentivo à leitura (PNLL). Em um país em que o hábito de ler é ainda restrito a uma parte ínfima da população, a discussão sobre a sobrevivência do livro no formato impresso passa a ser secundária. Ainda que a inclusão digital seja uma meta democrática, uma vez que não é mais possível pensar a pedagogia moderna sem as novas tecnologias, e que o e-book seja um incomparável avanço em termos de difusão do livro; enquanto educadores, o nosso maior desafio está a um palmo de distância e chama-se ‘aluno’. Para que o livro, não importa em que formato, seja importante no Brasil do século XXI, há que formar uma geração de novos leitores. A existência do Plano Nacional do Livro e Leitura evidencia que a formação de uma sociedade de leitores é, principalmente, um dever do Estado, que precisa garantir ao cidadão o acesso à leitura, bem como capacitar profissionais da área de educação, promover ações para criar consciência sobre o valor social do livro e apoiar a produção, distribuição, circulação e consumo do livro no país.
No entanto, formar um leitor é mais que pôr um bom livro nas mãos de alguém. Há que despertar, em quem lê, o prazer da leitura; prazer que resulta do encantamento, da emoção da descoberta, da adesão a um “mundo de papel” que nos ajuda a conceber e compreender o nosso próprio mundo. Há que fazer com que o leitor descubra o prazer de deixar-se envolver na teia da linguagem, de estabelecer com o texto um diálogo silencioso, pleno de ritmos que jamais serão experimentados de modo igual, ainda que o mesmo texto venha a ser lido novamente, em outra época; porque o instante da leitura é revestido de uma mágica que não se repete.
Essa reflexão me trouxe à memória um texto de Rubem Alves, acerca de como ensinar o prazer de ler: “Não se pode ensinar as delícias do amor com aulas de anatomia e fisiologia dos órgãos sexuais. Se assim fosse, o livro "Cântico dos Cânticos", que está na Bíblia, nunca teria sido escrito. Não se pode ensinar o prazer da leitura com aulas sobre as ciências da linguagem.” Com certeza, terão de ser outras as estratégias. Qualquer uma que venha a ser escolhida terá de passar, obrigatoriamente, pelo encantamento de quem ensina. Este terá de trazer no olhar, como dizia Fernando Pessoa, a admiração pela beleza das coisas; o sentido da descoberta da alma poética do universo. Se o milagre dessa descoberta traduz-se em palavras, com certeza, está encerrado nas páginas de um livro.