Parteiras Tradicionais da RESEX Mapuá, Ilha de Marajó - Pará
1. INTRODUÇÃO
No Brasil as políticas públicas de saúde quase nunca privilegiaram a população rural, especialmente no campo da saúde reprodutiva.
Embora a assistência institucional ao parto se constitua num direito já assegurado por ampla legislação boa parte das mulheres que vivem em pequenas vilas, aldeias e povoados rurais das regiões Centro Oeste, Norte e Nordeste não têm acesso efetivo a esse benefício.
As inúmeras limitações no sistema de saúde e as desigualdades sociais e regionais destinam milhares de famílias a contar com o apoio da parteira tradicional como única alternativa para resolver problemas de saúde associados à gestação e aos cuidados com o recém-nascido.
Atualmente, o arquipélago do Marajó, no estado do Pará, é um desses locais onde o ofício das parteiras tradicionais está bem presente, possibilitando o atendimento de famílias de comunidades rurais, que vivem em condições de total isolamento, principalmente nos municípios de Afuá, Anajás, Bagre, Breves, Curralinho, Melgaço, Portel e São Sebastião da Boa Vista.
Essa pesquisa objetiva avaliar a atuação das parteiras tradicionais na Reserva Extrativista (RESEX) Mapuá, município de Breves – Pará, para conhecer melhor essa atividade de assistência de saúde ao recém-nascido e à gestante durante o parto.
2. MATERIAL E MÉTODOS
A RESEX Mapuá é uma Unidade de Conservação federal administrada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO), com área de 94.961 ha, com população de cerca de 4.500 habitantes, distribuídos em 14 comunidades, que tem suas vidas baseadas em atividades agroextrativistas, sendo que as principais são o cultivo da mandioca e as extrações de açaí, palmito e madeira. O acesso às comunidades só é possível por vias fluviais. O tempo de viagem depende da localização da comunidade, que pode ser de cerca de 7 horas para as mais próximas e de 20 a 30 horas para as mais distantes.
A coleta de dados procedeu-se em 9 visitas realizadas em 3 comunidades (Bom Jesus, Santa Rita do Cumaru e Vila Amélia), entre novembro/2009 e junho/2011.
As informações foram obtidas diretamente de parteiras, lideranças comunitárias e profissionais da Secretaria Municipal de Saúde (Agentes de Saúde, técnicos e enfermeiros), por meio de entrevistas abertas e anotações em diário de campo procurando identificar as condições de trabalho e as características desse ofício, o que contou com apoio da Associação de Moradores da RESEX Mapuá (AMOREMA). Posteriormente, os dados foram comparados e discutidos com a literatura relacionada.
3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
De acordo com dados da Divisão de Atenção Básica da Secretaria Municipal de Saúde, no ano de 2009, foram relacionadas 158 mulheres como parteiras tradicionais no município de Breves. Contudo, atualmente somente um pequeno número delas (cerca de 15 mulheres) estão atuantes nesse ofício, sendo que desse total apenas 4 parteiras são da área da RESEX Mapuá. Não existe registro de homens atuando no auxílio ao parto doméstico no município de Breves.
De acordo com BESSA (1999), “o ofício das parteiras é uma atividade eminentemente feminina. Em geral, as parteiras são mulheres que têm ampla experiência com a parturição, o que ocorre com a sua auto-observação em parir e pelos partos que realizam nas filhas, netas, noras, vizinhas etc. A predominância da mulher auxiliando uma outra no momento do parto está associada a fatores culturais que determinam regras de comportamentos e concepções acerca da moralidade e dos bons costumes. Esses fatores estão enraizados na história da mulher, a qual tem moldado e determinado o perfil feminino e o da ocupação de parteiras.”
Foi verificado que as parteiras tradicionais da RESEX Mapuá não têm muitos anos de escolaridade, o que é condizente com o contexto em que elas vivem. Das parteiras relacionadas apenas uma participou de treinamento específico. Elas possuem idades que variam entre 39 a 66 anos, caracterizando-se, portanto, com mulheres de média e avançada idade.
Na RESEX Mapuá o ofício de parteira tradicional é conhecido como a “arte de partejar” e envolve uma série de conhecimentos e saberes alicerçados através da experiência prática e de ensinamentos que recebem das gerações passadas (avós, mães, sogras etc.).
De modo geral, todas as mulheres da RESEX Mapuá têm um número relativamente grande de filhos (às vezes 10 ou 12 filhos). Elas começam a engravidar logo cedo e, por não usarem meios contraceptivos, acabam engravidando inúmeras vezes ao longo da vida. Assim, é comum que as mulheres socorram umas as outras em partos domiciliares. Mas, mesmo que uma mulher tenha ajudado outras companheiras na hora do parto, isso não quer dizer que ela seja identificada pelo grupo onde vive com o título de “parteira”. Esse título é algo que associa a mulher a uma atividade profissional, pois as parteiras são vistas como profissionais da saúde, e tem também um caráter simbólico forte, pois o “ato de partejar” é visto como um “dom divino”, uma espécie de “missão sagrada” que elas recebem para ajudar outras pessoas.
A vida numa RESEX é muito difícil para os homens assim como para as mulheres. Entretanto, para uma parteira tradicional é visível sua maior sobrecarga. Essas mulheres trabalham bem mais do que os homens, pois “partejar” não é uma atividade que elas podem planejar determinando horário ou dia de atendimento, pois a solicitação sempre chega de forma inesperada. As residências ficam geralmente bem distantes umas das outras, o que torna as condições de acesso bem difíceis, especialmente no período de estiagem quando o nível de água dos rios reduz bastante. Elas são requisitadas às vezes à noite ou durante a madrugada. Quando são solicitadas para ajudar é preciso ir atender rapidamente. Desse modo, pode-se ver nas narrativas locais que o que elas fazem é uma questão de solidariedade, e só aquela que recebeu esse “dom divino” armazena força e energia suficiente para cumprir a missão de auxiliar, servir, confortar, apaziguar a dor daquelas que precisam.
Essa associação da atuação das parteiras tradicionais ao cumprimento de uma missão que lhes foi lhes foi confiada por Deus através dos dons que receberam já foi observada em estudos realizados em municípios próximos de Breves, como, Melgaço (FLEISCHER, 2007) e Cametá (PINTO, 2OO2), e também em outros estados, como, Envira no Amazonas (NASCIMENTO et al., 2009), e Mazagão no Amapá (SILVA, 2007).
Entretanto, é importante destacar que inicialmente nenhuma delas começa a ser vista como portadora de um “dom divino”, por que a maioria das parteiras tradicionais começa a atender partos por emergência e aprendem por uma necessidade de servir e socorrer alguém num momento específico. A partir de um primeiro momento bem sucedido seu nome começa a circular na comunidade onde vive. Assim, com o primeiro bom resultado, outras pessoas vão lhe procurar para serem auxiliadas e à medida que vão ampliando sua atuação prática, conquistando bons partos, bebês vivos e mães saudáveis, elas acabam criando um currículo e passam a ser identificadas pelo grupo como mulheres de “mãos abençoadas”. No decorrer dos anos elas se especializam aprendendo canções, orações, receitas caseiras e, assim, vão desenvolvendo a “arte de partejar”. Portanto, são as próprias mulheres estimuladas pelo grupo que ajudam a construir essa carreira “sagrada” de ser parteira tradicional.
Na RESEX Mapuá a “arte de partejar” engloba a realização de diversos trabalhos e saberes, tais como: (1) massagens, (2) “puxação”, (3) apoio no momento do parto, (4) cuidados com o recém-nascido, (5) orações, (6) cânticos, e (7) preparo de alimentos e remédios à base de ervas.
Segundo FLEISCHER (2007), “a puxação se diferencia de uma simples sessão de massagem. “Puxar” é um ato mais amplo que serve pra conhecer a saúde da gestante e da criança e interpretar esse momento repleto de complexidades. A puxação é realizada em vários momentos, antes, durante e depois do parto. Ela é recomendada para “endireitar o feto”, “reduzir as dores”, “desocupar a placenta”, “organizar a barriga”, entre outras coisas. É durante a puxação, ritual repetido várias vezes durante toda a gestação, que a parteira poderá conhecer melhor sua paciente. Esses momentos dão espaço para a construção de uma relação de confiança entre a parteira e a gestante. A gestante se sente livre para expressar suas dúvidas e temores. Além de puxar sua cliente, a parteira aplaca ansiedades e medos ao responder as dúvidas da moça (sobretudo se for a primeira gravidez), recomenda dieta e atividades específicas, sugere que o pré-natal biomédico seja feito simultaneamente no posto de saúde, lembra das vacinas e das vitaminas, começa a discutir como e onde o parto será realizado, conta histórias de outras grávidas e parturientes etc.”
De acordo dados do Sistema de Informação de Nascidos Vivos (SINASC), no ano de 2011, foram registrados 200 partos domiciliares no município de Breves, sendo que desse total 18 ocorreram com participação das parteiras tradicionais da RESEX Mapuá.
Os dados do Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB) de Breves mostram que apenas uma pequena parcela das mulheres que residem na RESEX Mapuá realiza o pré-natal de forma adequada. Esses dados corroboram com as estatísticas gerais de saúde do país que apresentam baixos índices de pré-natal nas áreas rurais. Muitas dessas mulheres, por não terem condições financeiras para se deslocar até a cidade, preferem ser atendidas em suas residências pelas parteiras tradicionais.
“As massagens abdominais e a “puxação” servem para reduzir o desconforto da gestante e sua família e de lhe oferecer um bem-estar físico e emocional. Esses trabalhos envolvem uma grande quantidade de saberes, e são associadas por elas ao atendimento obstétrico do pré-natal. Essa prática constitui num saber diferenciado, que é próprio das parteiras tradicionais, o que acaba dotando de sentido e identidade o trabalho oferecido por estas mulheres” (FLEISCHER, 2006; 2007).
No presente estudo registramos que o trabalho das parteiras tradicionais da RESEX Mapuá envolve grandes dificuldades. As principais queixas registradas foram: (1) condições de trabalho difíceis (algumas não tem barco motorizado), (2) falta de kit para parteira, (3) falta de capacitação, (4) falta de oportunidade para estudar, pois elas têm desejo de se alfabetizar plenamente, (5) pequeno retorno financeiro, (6) falta de apoio da Secretaria Municipal de Saúde (principalmente sobre o desejo de receber ajuda em combustível), e (7) o preconceito por parte dos moradores urbanos com relação à arte de partejar (vista como atraso, prática que não teria lugar no mundo de hoje).
Considerando as vias institucionais do Sistema Único de Saúde (SUS), é possível dizer que as parteiras tradicionais recebem um tratamento ambíguo. Elas são aceitas e respeitadas pelos profissionais de saúde que vivenciam a sua realidade na RESEX, como é o caso dos técnicos de enfermagem e Agentes Comunitários de Saúde (ACS), e por outro lado não recebem o reconhecimento como pessoas prestadoras de serviços, sobretudo para os profissionais e gestores públicos ligadas à saúde da zona urbana.
Na área de abrangência da RESEX Mapuá existem 3 Postos de Saúde da Família sendo coordenados por técnicos de enfermagem que residem nas comunidades, e que contam com pouco material e medicamentos de uso cotidiano. Além desses técnicos as ações de atendimento em saúde são realizadas também por 13 Agentes Comunitários de Saúde (ACS). Verificou-se que esses profissionais locais apóiam os trabalhos das parteiras tradicionais com fornecimento de material (algodão e álcool iodado), troca de experiências e, eventualmente, com apoio nas visitas às gestantes e parturientes.
Em oposição ao “status” que as parteiras tradicionais têm localmente nas comunidades onde vivem é perceptível nos discursos dos profissionais (médicos, enfermeiros etc.) que atuam nas unidades de saúde da cidade que elas ainda são vistas apenas como mulheres curiosas, sem instrução adequada, incapazes de dominar na sua prática diária os conhecimentos acadêmicos e as técnicas obstétricas. Para muitos desses profissionais esse trabalho que elas desenvolvem é visto como um ofício que deve ser extinto.
A pesquisadora Soraya Fleischer (2007), “observou que quando as parteiras migram para a cidade de Breves elas perdem quase que completamente seu ofício de partejar, pois as mulheres que seriam a sua clientela na zona urbana dão preferência pelo atendimento hospitalar. Sendo assim, elas só mantêm seu ofício por meio do atendimento com a “puxação”, para atender principalmente gestantes, parturientes e puérperas, e em menor número para atender outras mulheres que estejam com dores ou desconforto.”
Na RESEX Mapuá o pagamento que as parteiras tradicionais recebem pelo seu trabalho é feito, na maioria dos casos, com dinheiro, e, em menor freqüência, por meio de produtos manufaturados ou troca de favores. Os valores que elas recebem variam entre R$ 25,00 e R$ 100,00. Mas, conforme relatos elas recebem geralmente entre R$ 35,00 ou R$ 50,00 por cada parto assistido. Essa variação no preço pode acontecer pelos seguintes aspectos: (1) pela quantidade de visitas que elas realizam no período pré-natal para fazer massagens nas gestantes, (2) pelo grau de complexidade do parto, e (3) pela necessidade de permanência por alguns dias após o parto para cuidar da parturiente e do recém-nascido.
Para BESSA (1999), “o pagamento que elas recebem pelo seu trabalho é estabelecido, em geral, pelas condições financeiras da família da mulher assistida e, em muitos casos, sua prática não implica em dinheiro. Possui caráter humano e social, enfatizado por elementos de natureza afetiva, tais como amor, caridade, bondade e solidariedade.”
No presente estudo não foi possível coletar informações para quantificar a renda anual das parteiras tradicionais. Essa limitação ocorreu porque elas não registram esses dados em casa e isso também nunca foi feito pela Associação de Moradores da RESEX Mapuá (AMOREMA).
4. CONCLUSÕES
Na RESEX Mapuá o ofício das parteiras tradicionais se mantém bem vivo, contrariando a realidade de outras localidades onde essa tradição está em processo de extinção.
Dar apoio a uma familiar durante o parto numa situação de emergência ou necessidade é prática comum na RESEX, mas o ofício das parteiras tradicionais tem aspectos diferenciados. A “arte de partejar” envolve uma série de conhecimentos e saberes alicerçados através da experiência prática e pelos conhecimentos que recebem das gerações passadas (avós, mães, tias, sogras etc.). Na RESEX Mapuá, o ofício de parteira tradicional envolve a realização de massagens, “puxação”, apoio no momento do parto, cuidados com o recém-nascido, orações, cânticos e preparo de alimentos e remédios à base de ervas.
As parteiras tradicionais mantêm uma forte relação fraternal com outras mulheres e com os demais membros das comunidades. O seu trabalho é visto como uma importante atividade, pois além de economicamente acessível ela é vista como alguém que entende a realidade e conhece intimamente as necessidades de seus pares. A sua atuação acontece como uma necessidade social e tem também um sentido de compromisso com os valores que o grupo quer preservar. É freqüente a associação do trabalho das parteiras tradicionais a cumprimento de uma “missão sagrada” ou ao exercício de um “dom divino”.
Vale lembrar que o Estado é responsável pela prestação da assistência materna rural, pois o direito à saúde é garantido constitucionalmente. No entanto, verificou-se que o serviço de saúde local não esta estruturado adequadamente para atender a população rural, nem organizado para apoiar o trabalho que as parteiras desenvolvem.
É certo que o simples conhecimento dessa realidade não resulta necessariamente em mudanças nesse quadro. A modificação dessa realidade depende de vontade e decisão política dos gestores dos serviços de saúde e da população em geral.
Há necessidade de capacitação específica para as parteiras tradicionais visando com isso melhorar a qualidade de seus trabalhos, como também para os demais moradores com vistas a ampliar sua capacidade como proponentes das políticas públicas de saúde, o que certamente irá fortalecer a gestão da RESEX Mapuá.
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SOUZA, Heloisa Regina. 2010. “Doutoras no Assunto”: memórias e histórias de parteiras oestinas. In: Fazendo Gênero 9 - Diásporas, Diversidades, Deslocamentos. PPGAS/UFSC, 10p.
SOUZA, L.C.; SILVA, J.L.S.; SOUZA, L.C.; ARAÚJO, F.C.B.; OLIVEIRA JÚNIOR, F.; LIMA, L.G.S.; MELO, N.C. 2012. Levantamento da ocorrência de patauá na Reserva Extrativista Mapuá em Breves no Pará. Anais do 10º Seminário Anual de Iniciação Científica da UFRA. Belém (PA). Disponível em: http://www.pibic.ufra.edu.br/2012/attachments/article/116/561.pdf
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WIKIPÉDIA – A Enciclopédia Livre. 2012. Reserva Extrativista Mapuá. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Reserva_Extrativista_Mapu%C3%A1
6. AGRADECIMENTOS
A realização deste trabalho só foi possível com o apoio recebido de diversos amigos e colegas, a quem sou profundamente grato.
Aproveito esse momento para dedicar a alguns profissionais que inspiraram a realização de mais esse trabalho, especialmente: (1) Sr. Antônio Ferreira Gonçalves “Galo”, presidente da Associação de Moradores da Reserva Extrativista Mapuá (AMOREMA); (2) Sr. Fortunato Brito Gonçalves, presidente da Associação Agrícola Boa Esperança (AABE); (3) Sr. Jorge da Silva Miranda, representante da comunidade Nossa Senhora de Nazaré; (4) Srª Izonete Silva de Mesquita, parteira tradicional da comunidade Santa Maria; (5) Enfermeira Gerciane Suely Souza Pantoja, coordenadora da Estratégia de Saúde da Família (ESF); (6) Técnico Semaías Miranda Melo, da Estratégia de Agentes Comunitários de Saúde (EACS); (7) Técnico Marlon Sandro S. Costa, da Divisão de Atenção Básica; e (8) Dona Maria Moreira Corrêa, conhecida como “Dona Maria Velha”, que atuou na “arte de partejar” por quase 50 anos na cidade de Portel (Pará).
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Ilha de Marajó - PA, Fevereiro de 2012.
Giovanni Salera Júnior
E-mail: salerajunior@yahoo.com.br
Curriculum Vitae: http://lattes.cnpq.br/9410800331827187
Maiores informações em: http://recantodasletras.com.br/autores/salerajunior