O amor e o tempo

Não vou colocar data nesta fala, porque sei que estou iniciando hoje, mas não sei quanto tempo vou demandar até o final, isso se houver final. Esta é endereçada a um amigo sem tempo (entenda-se por tempo um período dedicado a uma boa conversa com quem se possa compartilhar algo ou alguma coisa) a quem eu dedico também meu sentimento de amor – claro que no caso do “amor” pode-se discorrer longamente como fez meu saudoso professor de filosofia em sua Tese de Mestrado, na verdade ele conseguiu um tratado sobre o amor, gostaria de ter tido tempo de ler os dois volumes de seu trabalho para melhor me inteirar, mas na época estava abarrotada de trabalhos da faculdade para serem feitos e com o “tempo” esgotado ou quase, de novo o bendito “tempo”. Mas voltando ao “amor”, o que entendemos de amor; conhecemos muitas frases de efeitos, muitas interpretações sobre esse sentimento relatados nas muitas páginas de famosos livros, como por exemplo, o amor doído, sofrido e angustiante no livro “Pássaros feridos”; outro amor quase maldito vivido por dois jovens no livro “O morro dos ventos uivantes” e assim tantos outros amores que nos romances são misturados com ódio, vingança e são vividos tão intensamente que traz consigo o desejo da morte como troféu a ser conquistado. A morte, outro assunto interessante para ser tratado numa conversa sadia.

Sim e porque não?

Esses dias, assisti um filme lindo sobre uma jovem mãe de 24 anos que descobre um tumor maligno já em fase de metástase inoperável e cujo “tempo” de vida estimado seria de somente 3 meses, então ela se prepara para morrer, até faz um diário com o título “coisas para fazer antes de morrer”, e uma das coisas que ela se prontificou há fazer foi procurar uma nova esposa para seu marido, alguém em quem ela pudesse confiar a educação de suas duas filhinhas. Ela também quis experimentar o amor com outro homem, já que conhecia somente seu marido, apesar de parecer um ato de adultério declarado, diante das circunstâncias até pareceu um ato de santificação, de libertação, fiquei pensando no assunto. “Minha vida sem mim” é o título do filme. Retomando o assunto “morte” e que é certa para nós, porém, nunca é nosso tema de reflexão, quer dizer, não para a maioria de nós, mas sempre há os audaciosos que até escrevem sobre ela, como José Saramago no livro “As intermitências da morte”. O cenário de um mundo nas mesmas condições sociais contemporâneas não sobreviveria se a morte deixasse de colher. É nesse cenário que Saramago descortina a história, quando ele inventa que em um determinado país a morte deixou de atuar exatamente na virada do ano, num primeiro momento a notícia foi recebida com grandes expectativas e muita festa, porém com o tempo a população começou a pedir ela de volta pois seus idosos e doentes não melhoravam nem pioravam e a angustia tomou conta de todos a ponto de muitas famílias transportarem seus quase mortos na calada da noite até a fronteira do outro país onde a morte continuava ativa para que pudessem se ver livre do moribundo. O país entrou em colapso pois não estava preparado para manter os leitos dos hospitais com os pacientes terminais que sabiam que nunca morreriam. Em fim, legal né.

Pois é, estava falando de amor, daí um assunto puxa o outro e a conversa flui. É isso que tenho buscado em sua companhia sempre indisponível. Ok, eu sei, é a vida, e a vida é assim, linda, maravilhosa, espetacular, cheia de esperanças, se renovando a cada manhã, tão presente, tão ardente, tão imensa em suas dimensões, tão generosa em suas ofertas, tão doce, mesmo quando caminha para o fim. Fim do fôlego da vida, fim da expectativa esperada, fim do sonho desejado, fim do sentimento. Fim, fim, fim.

Ainda assim a vida é surpreendente, pois enquanto ela pulsa num peito de carne ela nos convida para sondar mistérios, os mistérios da própria vida. Onde está esta centelha da vida? Na água?? No ar?? No fogo? Na matéria (terra)? Em qual dos quatro elementos? Eu diria que na água, lembra-se do Gênesis, a terra era sem forma e vazia e o Espírito de Deus pairava sobre a face do abismo, e depois de ter criado a luz, primeira coisa criada, Ele separou as águas e águas e assim fez o Céu, só então ele ordenou que aparecesse a porção seca (terra) das águas sob o Céu, esses são somente alguns exemplos dos mistérios que nos cercam e que fazem parte de nós. Assim como a distância que nos separa do universo, tão infinitamente grande também são as profundezas do nosso próprio ser, enquanto digito meu monólogo, enquanto você lê meu diálogo, muitas coisas estão sendo processadas microscopicamente dentro de nós, a formação celular de nossos organismos, a complexidade das interações e reações químicas que ininterruptamente acontecem em nosso corpo é um espetáculo para ser assistido com reverência.

Deus me deu a graça de vivenciar grandes emoções.

Qualquer mulher dirá que a maior emoção vivida foi o parto de um filho, mas eu vivi a maior emoção antes de decidir ser mãe, claro que ser mãe é a missão mais sagrada que me foi confiada na terra, mais tocar os mistérios de Deus no corpo de um ser humano como eu toquei, ver a grandiosidade de Deus na constituição dos órgãos é melhor ficar em silêncio, palavras não são suficientes para declarar toda a grandeza de Deus.

Um homem, uma mesa de cirurgia, uma sala fria. Outros homens, facas, agulhas, fios de sutura. Máquina de respirar, bombas de infusão, máquina de bombear o sangue. Uma equipe de assistência, medicações, soros, suportes para soros, serra elétrica e eu. O corte superficial para retirar a Safena do membro inferior esquerdo não impressiona. A incisão sobre o externo ainda não, mas a serra elétrica para cortar o osso externo foi chocante, porém em nada comparado a visão maravilhosa de uma caixa torácica aberta e expondo coração e pulmões.

Um coração doente ainda pulsando na caixa torácica aberta, tudo pronto para preparar o campo de cirurgia para o cirurgião titular da equipe, e o campo é o próprio coração. Então as conexões dos grandes vasos (Aorta e Veia Cava) estão prontos, o próximo passo é transferir para a máquina de bombear as funções do coração doente. Pronto, o desvio deu certo, agora o campo está desativado, ou seja, o coração doente está murcho como um pano velho, percebe-se que ele é realmente um músculo oco com quatro cavidades, ele é levantado para fora, um homem que tem habilidade tem que ser preciso no “tempo” e no ato de construir as pontes que irão novamente irrigar as partes bloqueadas por algum ateroma em algum ponto das Coronárias.

Assim fica o coração doente, nas mãos humanas de outro homem. A vida do doente está mantida pelas máquinas de respirar e de bombear. Feito a correção devolve-se a grande circulação para seu trajeto primeiro, como se devolve um rio desviado do seu curso novamente para seu leito, dois momentos fantásticos: quando o coração doente murcha com o desvio da circulação e outra vez quando ele recebe de volta a circulação e se enche como que ficando cheio de "vida" de novo.

A grandiosidade da vida frente aos nossos tão pequenos e mesquinhos sentimentos e confusões deveria nos constranger por vivermos tão superficialmente nossas próprias vidas e muitas vezes nos afogarmos no raso de nossas experiências. Pessoas, pessoas que nunca param para observar ao seu redor; pessoas que fazem questão de não se envolver com questões maiores; pessoas que se refugiam em desculpas para se pouparem talvez da dor, ou até da verdade que grita dentro de seu ser.

É melhor usar máscaras, não preciso contemplar meus olhos no espelho, tenho medo do abismo que ele pode me revelar, quem sabe não seria melhor ficar cego, ainda que seja uma cegueira branca pelo excesso de luz que não pode mais ser ocultada.

Alguém também ousou imaginar uma população acometida da cegueira branca, novamente Saramago, um dos escritores que gosto de ler.

Em “Os ensaios sobre a cegueira” ele meche de novo com o coletivo e cria o imaginário de uma população cega pela luz, e nesse paradoxo em muitas daquelas pessoas, talvez até na sua grande maioria o interior que se revela é de uma escuridão, de um sepulcro literal e mal cheiroso, capaz de infectar outros menos apercebidos da oportunidade única que ele tem para revelar suas verdades e princípios tão bem quistos em quaisquer circunstâncias, principalmente nas adversas. Em meio dessa população cega somente uma personagem foi poupada, ela serve de guia a um grupo. Ela assiste de perto como cada um lida com sua cegueira e como outros se libertam de seus preconceitos e se transformam em pessoas melhores, se permitem amar com os sentimentos e não com as aparências, em fim se descobrem como realmente são.

Os olhos da consciência, os únicos olhos “sadios” dentro de cada um de nós em meio a tantas ilusões óticas a que somos diuturnamente expostos. E a consciência não é assunto da anatomia, nem da fisiologia, tampouco da patologia; a consciência é assunto de mistério, mais um entre os grandes mistérios de Deus, ainda que pensa-se que ela acontece nos desdobramentos da massa cefálica ou nas sinapses da rede de neurônios em suas muitas descargas elétricas, o que se desvendaria com o estudo da anatomia e da fisiologia, porém não é assim.

A consciência é tão única e particular como a impressão digital; é tão reveladora da mão criadora e cuidadosa que nos formou de modo tão maravilhoso como declara o salmista “tu formaste os meus rins”, “entreteceste-me”, “os meus ossos não te foram encobertos, quando no oculto fui formado”, e “esmeradamente tecido”, “os teus olhos viram a minha substância ainda informe”.

Precisa de maiores detalhes? Quem precisa? Quem pode passar por essa vida sem mergulhar em seu abismo e tentar se conhecer a ponto de sentir sua pequenez diante do excelso Criador.

Basta observar as fotos do universo fotografadas pelo telescópio Hubble, o planeta azul é um pontinho de luz em meio a massa galáctica suspensa no espaço; a impressionante imagem tirada pela sonda Cassini-Juygens em 2004 quando passou pelos anéis de Saturno pode nos dar uma verdadeira ideia do tamanho de nosso pequeno planeta e nos levar a repensar nossa insignificância e falta de humildade que denuncia a arrogância de nos acharmos tão poderosos e magníficos com toda nossa tecnologia e nosso sentimento de únicos seres neste universo.

Olhar para nossos problemas e nossas agitações a partir da escala que a foto nos coloca, suspensos num pequeno ponto de luz, faz desaparecer nossas angústias e agitações e desenvolver uma fé viva. Olhando o pequeno ponto de luz onde os sete bilhões de pessoas se agitam, riem, choram, amam, odeiam, matam e morrem me leva a pensar no enigmático título do livro “O universo numa casca de noz” de Stephen Hawking, ele é testemunho vivo dos mistérios de Deus, dado das suas condições adversas de saúde, que para alguns seria o fim dos sonhos e realizações, para ele é de superação e descobertas.

E o amor, assunto dessa missiva, por acaso deixamos de falar nele em algum momento, ainda que não tenhamos colocado a palavra explícita já há algum “tempo” (não se tratando de um espaço entre uma hora e outra, ou espaço de tempo) e sim por não estar sendo mencionado no texto. Ainda assim só falamos de “amor” porque se propomos uma reflexão, um mergulho no abismo da alma humana a partir da visão da grandiosidade do universo criado na qual a “terra” nosso único lar ocupa um espaço mergulhada na massa gasosa suspensa no ar, falamos de Deus, e Deus é amor; portanto, o amor é e não se explica.

E Deus, que é Amor tolera as impressões confusas de suas criaturas que pensam que podem discorrer sobre o amor, que pensam que sabem fazer amor, que pensam que o que sentem é a mais pura expressão do amor, e que muitas vezes se confundem mais do que esclarecem o que sentem.

Mas Ele nos compreende sem pedir explicações.

A distância que a luz percorre no universo, apenas sabidos por nós porque alguns brilhantes cérebros nos confidenciaram seus estudos, nos distancia da percepção que temos sobre o que é “amar” e então nos perdemos, até por que somos menos do que poeira cósmica, sete bilhões de poeira de estrelas destilando sentimentos criativos capaz de recriar outros universos paralelos. Em nossas experiências efêmeras, ousamos contar o tempo em anos, dias, horas e até segundos, que muitas vezes parecem eternos.

Nossos sentidos capazes de convergir experiências tão normais para os mortais em verdadeiras viagens transcendentais acentuadas pela adrenalina despejada no fluxo sanguíneo provocadas pelo sentimento tão infantil mais que acomete os meninos adultos e experientes que insistem em desaprenderem a “amar”.

Ainda assim, quando nos dizemos apaixonados experimentamos algo tão bom, tão doce e estimulante que a única coisa capaz de acalmar um coração que está amando é dar a ele espaço para se expressar e se entregar sem medidas e saltar sem paraquedas.

Mas a paixão precisa do alimento do outro, a escassez lhe fere e fenece sua razão de ser. Essa espera pede uma pausa, o corpo pede uma pausa, a mente pede uma pausa, a alma exige uma pausa. A vida fica suspensa. Silêncio.

Virar a página que gostaria de ser vivida não é coisa fácil, mas é necessária pois a vida precisa continuar a despeito de nossas experiências frustradas, ou das expectativas que foram desejadas, mas apenas desejadas, na unilateralidade das relações.

Conjugar os sentimentos a dois é sempre um grande desafio cheio de descompasso, e isso leva muitos a ter uma imagem distorcida do amor a ponto de muitas vezes produzir um amargo na alma, e um gosto ácido na boca que não foi beijada como foi sonhada.

Por isso a necessidade de virar essa página já desgastada pela espera inútil, uma espera só do expectador, o ator não se fez merecedor do palco iluminado e projetado exclusivamente para ele, é necessário desmontá-lo. Outro é o momento.

Depois da pausa, outras são as nuances da vida, e é inteligente absorver essas novas propostas, se permitir a novas experiências sem perder a graça, sem perder a fé, sem deixar de amar.

Tita Miranda
Enviado por Tita Miranda em 16/02/2012
Reeditado em 30/01/2013
Código do texto: T3502903
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