Dedicado ao semeador Mylton Ottoni

Bendito o que semeia livros

Nosso mercado editorial supera o da Itália; podemos adquirir livros baratos em banca de jornais

Acabo de devolver à locadora filme estrelado por Julie Christie e Oscar Werner, dirigidos, em 1966, por François Truffault. Fahrenheit 451 baseia-se em O Bombeiro, ficção científica escrita por Ray Bradbury (1953). Descreve país futurista no qual a grande maioria das construções é à prova de fogo. O corpo de bombeiros tem missão invertida: em vez de apagar incêndios ocupa-se em queimar todos os livros, bibliotecas, qualquer material escrito que cidadãos de pensamento livre e democrático teimam em conservar. A cifra 451 refere-se à temperatura necessária para o papel entrar em combustão. Os governantes procuravam fazer a população acreditar que ler faria o indivíduo infeliz.

A civilização imaginada por Bradbury é artificial, postiça, regida por poder central totalitário que interage com os cidadãos por rede de áudio e vídeo. Na parede das casas, grandes telas (semelhantes aos telões de cristal líquido) controlam donas de casa e lhes dão a falsa sensação de que atuam nas decisões da comunidade. Muito parecido com o que hoje se encontra em pretensos reality-shows e nas votações de programas tipo você decide.

A invenção de Guttenberg foi um dos fatores condicionantes ao salto da civilização, da noite dos mil anos para o Renascimento. A imprensa barateou e multiplicou livros ensinando o povo a pensar (completando a frase-título, pinçada em Castro Alves). O conhecimento, cuidadosamente guardado pelos copistas na intimidade dos conventos e dos castelos, passou a democratizar-se, aperfeiçoar-se e moldar o futuro do homem.

O hipotético país dos bombeiros incendiários é metáfora ao que haveria de acontecer nos séculos seguintes à invenção da imprensa. Igreja ou Governos queimando gente e escritos contrários à sua filosofia e à ordem estabelecida. Exemplos recentes foram as pirotecnias do nazismo, do stalinismo, da Revolução Cultural de Mao. Exemplo mais próximo de nós, as trapalhadas da censura no regime militar. A diferença é que no país do Fahrenheit 451 queimavam-se todos os livros. Nem contos infantis escapavam.

O filme me reportou a Gato Preto em Campo de Neve, de Érico Veríssimo. Nos EUA, a convite do Departamento de Estado (anos 40), Érico descreve sua admiração pelo mercado editorial americano. Produziam livros baratos - de US$ 1,5 a US$ 3,5 - e, posteriormente, os reeditavam como livros de bolso, a 25 ou 30 centavos, vendidos em livrarias, quiosques, bancas de revistas, ambulantes. Esse comportamento da atividade editorial estimulou o hábito da leitura no povo americano. Não eram raras tiragens de 100 mil exemplares.

Esse hábito, acredito, persiste. Saindo de show e jantar em Manhattan, em grupo de amigos, resolvemos caminhar até o hotel. Pouca gente na rua. Longe, na direção para onde nos deslocávamos, ponto luminoso chamou nossa atenção. Perto, em nicho formado por duas pequenas escadas de acesso ao porão de loja, homeless barbudo, abrigado por touca e cobertor de lã, à luz de lampião, lia tranquilamente grosso livro.

No Brasil, livros eram caros e somente acessíveis à elite. Os de minha geração puderam contentar-se (pelo menos no Estado de São Paulo) em ler o que conseguiam garimpar nas bibliotecas das escolas. Garimpo, porque predominavam obras laudatórias ao ditador Vargas. As coisas melhoraram. Em relação à democracia, com certeza! Hoje, nosso mercado editorial supera o da Itália (Anthropos Consulting). Podemos adquirir livros baratos em banca de jornais. Nas livrarias, obras valiosas (Machado de Assis, Niestzche, Ibsen, Shakespeare, e outros) são encontradas, em edições de bolso, custando menos de 4 dólares. Volta-e-meia, noticiário televisivo mostra gente idealista coletando livros para montar bibliotecas - sem fins mercantis ou de proselitismo - em bairros pobres das grandes cidades.

Pena que nosso povo ainda gaste R$ 8,7 milhões, em cada paredão interativo, para eliminar um BBB (Obrigado, Milton Mira!). Mais pena ainda quando se sabe que o eliminador jamais esquece o nome do eliminado... mas, não se lembra em quem votou para o Congresso deste iletrado país.

(Dedicado ao semeador Mylton Ottoni).

Edgard Steffen é médico (edgards@directnet.com.br) e escreve aos sábados neste espaço.

http://www.jcsol.com.br/2007/01/13/artigo.php

Douglas Lara
Enviado por Douglas Lara em 14/01/2007
Código do texto: T346389