O Desprendimento, A Pura Unidade Entre Deus e O Homem
A filosofia medieval se colocava como uma busca de Deus voltada basicamente para a concepção do Deus cristão, e estava norteada por essa ligação ao divino, no entanto quando se fala em Deus no período Medieval na maioria dos autores tanto filósofos quanto teólogos, esse pensamento estava preso a Formas, inúmeras definições, dogmas e preceitos teológicos, pois esse era o método que os religiosos daquela época encontraram como modo de expressar e representar o Divino.
Em meio a essa busca Mestre Eckhart surge como um pensador que tende a modificar essa compreensão de Deus, Para Eckhart antes de se pensar em Deus, deve-se pensar este modo de ser de uma identidade que evocava algo como a identidade da vida divina: o desprendimento ou a pura disponibilidade.
O Desprendimento ou a pura disponibilidade tem a sua origem na palavra alemã “Abgeschiedenheit”, e surge como cerne central no pensamento de Eckhart, num sentido mais geral compreende-se essa palavra como aquilo que “não esta preso a nada, a não ser a si mesmo” livre e solto, na ab-soluta identidade da plena satisfação e fruição de si mesmo,esta palavra possui em si um sentido ontológico, ou seja,” a essência ou o ser de Deus” é o próprio âmago de Deus separado de tudo quanto não é ele mesmo, isso traduz o próprio conceito de Deus, pois para chegar mais próximo a ele precisa-se estar cada vez mais próximo do desprendimento.
O desprendimento cumpre esse papel de aproximação e unidade entre Deus e o homem, e essa aproximação tem seu ponto culminante em uma força suprema que existe na alma humana uma potencialidade, algo que a aproxima do seu criador, podemos entender essa peculiaridade como a centelha divina na alma, no sermão de numero I, Mestre Eckhart desvela aquilo que impede essa aproximação, essa unidade entre Deus e o homem, e como através da pura disponibilidade o homem pode chegar a Deus possibilitando assim um pertencimento mutuo entre ambos.
A alma humana é a criação de Deus que mais se iguala a ele, portanto o desejo dele é estar nessa alma “templo” é nesse lugar que Deus deseja reinar, como descrito por Mestre Eckhart na citação abaixo.
“O templo, no qual Deus, segundo a sua vontade, quer poderosamente reinar, é a alma do homem. Deus a formou e criou justamente bem igual a si mesmo, como lemos ter nosso Senhor dito: “façamos o homem segundo nossa imagem e semelhança!”(Gn 1,26). E foi também o que ele fez Tão igual a si fez a alma do homem que, dentre todas as esplendidas criaturas por ele maravilhosamente criadas, não há, nem no reino do céu nem sobre a terra, nenhuma que se iguale tanto a Ele, a não ser unicamente a alma humana.”
No entanto para que Deus possa reinar em seu templo o mesmo precisa estar vazio, livre de todo e qualquer empecilho, pois Deus não pode jamais dividir seu reino com qualquer outra criatura.
O desprendimento implica no esvaziamento do templo “a morada de Deus”, no entanto esse papel de purificação e esvaziamento do templo não compete somente a Deus, pois é necessário que o homem permita que esse templo seja limpo e purificado, esse processo de purificação do templo esta diretamente ligado a essa busca por Deus, a necessidade que a alma humana tem de voltar-se para seu criador, e essa busca da parte superior da alma que esta voltada para o divino implica necessariamente na negação da “vontade própria” por parte do homem, vontade essa que toma a liberdade de estar á disposição de Deus, podemos entender essa negação da vontade própria como a saída de si mesmo, e essa saída conduz o homem ao âmago de si mesmo a essa centelha divina na alma, portanto o homem precisa exercitar o desapego a essa vontade, e esse desapego é na verdade um “querer não querer”, ou seja, querer estar livre de seus desejos e vontades, tendo em vista não a si, nem algo qualquer alem do divino, permanecendo nessa busca não pelo que é seu mais operando todas as suas obras apenas para a honra e gloria de Deus, todo o homem que assim agir e tornar esse templo livre de todo empecilho e vontade própria fará desse templo uma total semelhança de Deus.
Entender o desprendimento como esse elo de unidade e ligação entre Deus e o homem, não é um exercício tão simples, pois é preciso compreender que Mestre Eckhart está em outro modo de pensar, ou seja, em outra dimensão do pensamento, daí a necessidade de nós que não estamos totalmente inseridos nesse modo diferente de pensar fazermos um esforço maior para minimamente compreender essa outra forma de pensamento, o pensamento não se reduz ao simples exercício da razão ainda que a razão seja um elemento fundamental no ato de pensar, no entanto para entender essa outra dimensão que norteia o pensamento de Eckhart é preciso ir alem do simples exercício lógico da razão.
Mestre Eckhart estabeleceu uma relação muito intima com desprendimento, Em um de seus escritos, ele louva o desprendimento acima de todas as outras virtudes que compõem o processo de humanização do homem e de aproximação do mesmo a Deus, como ponto culminante desse elo entre a centelha divina no homem e a própria deidade de Deus, e o considerou a mais alta e melhor das virtudes como o mesmo afirma na citação abaixo
“e procurei com sinceridade e com empenho a mais alta e a melhor das virtudes, ou seja : a que capacite o homem a melhor e mais estreitamente unir-se a Deus, e torna-se por graça o que Deus é por natureza, e que mais o assemelhe a imagem que dele havia em Deus, antes que Deus produzisse as criaturas.”
No entanto é preciso entender que ser mais alto e melhor, não implica em uma relação de hierarquia entre as virtudes, é necessário compreender que o desprendimento de certa forma abarca todas as outras virtudes, pois não esta vinculado a nenhuma criatura, todas as virtudes se movem plantadas nesse lugar imóvel que é o desprendimento, o mesmo não esta ligado a isso ou aquilo, esta no próprio vazio, nesse próprio nada absoluto, porem esse “Nada” não esta referenciado em alguma coisa, ele surge como essa deidade para alem de Deus, ou seja, esse Deus não entificado.
No homem o desprendimento ou total disponibilidade não significa um distanciar-se das coisas, o desprendimento é na verdade um modo de lhe dar com as coisas, podemos observar no Sermão 28, uma bela explicitação da ação do desprendimento, onde mestre Eckhart mostra a excelência de Marta sobre Maria tomando como base a passagem do livro de Lucas 10,38, afirmando que Marta por estar em um estagio mais elevado podia lhe dar com as coisas, pois já estava em seu ser mais profundo, diferente de Maria que naquele momento ainda não havia concebido aquela dimensão, esse “já esta em seu ser mais profundo” é o âmago da alma humana, lugar esse que só é possível chegar através do desprendimento, ou seja através dessa atitude diferenciada em meio as coisas, assim como o próprio silencio, o desprendimento é um meio de atravessar esse mero estar ai das coisas e perceber a sua essência.
O verdadeiro desprendimento se constitui na relação que o homem tem com as coisas, é necessário que o homem permaneça em seu espírito afastado de todas as sensibilidades e vicissitudes sejam de alegrias ou de dor, das honrarias ou ultrajes, assim como a mais alta fortaleza se torna totalmente inabalável a qualquer ataque “tal desprendimento inabalável conduz o homem a máxima semelhança com Deus”, pois o desprendimento é a única forma de semelhança do homem para com Deus, é essa verdadeira unidade, esse “É” ao qual Deus mesmo se denominou quando interrogado por Moises, a cerca de quem o havia enviado, o desprendimento decorre da compreensão desse “È”, que pode ser entendido como um nível de manifestação das coisas, que esta vinculada a esse È ou seja, vinculado a essa eternidade num sentido ontológico, Deus é e está nesse desprendimento imutável e da mesma forma o homem precisa se colocar nessa pura disponibilidade, nesse desapego as coisas, nessa máxima liberdade diante da materialidade, estando assim como o próprio Deus, livre e solto de suas vontades e desejos, o homem deve ser desprendido para se elevar a Deus, seguindo assim o percurso dessa verdadeira unidade
Todavia é preciso compreender o desprendimento como uma forma de ver a realidade na qual a compreensão cresce junto com os passos daqueles que seguem e buscam o sentido de serem desprendidos, é uma escuta contínua para estabelecer um diálogo entre Deus e o homem, este diálogo acontece quando o homem acolhe o advento de Deus dentro de uma determinada realidade presente em sua vida.