QUEM TEM C... TEM MEDO - BOCAGE
Dizem que quando Pedro Álvares Cabral desembarcou em Porto Seguro e viu toda aquela mata, os índios e a qualidade do clima, de imediato ordenou que seu escriba noticiasse a Corte tudo que eles enxergaram na terra recém descoberta (há contrações quanto ao “recém descoberta”); e que também de imediato, após ter recebido a missiva da América, os conselheiros reais influenciaram o Rei português a enviar outras expedições ao “Brasil” com o restolho da sociedade portuguesa, dado ao pouco crédito empregado na empreitada de Cabral.
Dizem que em pouco tempo desembarcou no “Brasil” os segregados de Lisboa, tais quais prostitutas doentes, ladrões, corruptos, desertores capturados e uns outros serviçais da Corte que também não reuniam qualquer crédito quanto ao caráter e a probidade. Há quem diga que toda esta “lama fétida” a qual o Brasil viveu mergulhado desde 1500 é uma herança maldita de eras de transições daquelas primeiras pessoas que vieram para povoar nossa terra; e que a maioria de nós somos frutos infelizes das constantes mutações do equívoco português que nos condenou a eterna bagunça. Se tudo isso tem fundamento ou não, isso é uma outra historíola; mas que o Brasil parece atrair pessoas da mais baixa qualidade intelectual e de caráter, isso é uma verdade egrégia; que o diga o amor perenal transpirado em versos do poeta Manuel Maria Barbosa Du Bocage, o famoso Bacage, que viveu no Brasil e veio para cá quase fugido de lá, de Portugal.
Bocage nasceu em Setubal no final do século 18 e viveu apenas 40 anos, mas deixou um espólio execrado daquilo que ele dizia ser o “arcadismo lusitano”; uma espécie de literatura inspirada na literatura da antiga Arcádia na Grécia que zombava da burguesia, da nobreza e do clero. Mas não era bem isso que o jovem poeta, militar e boêmio praticava de verdade; ele disfarçava seus versos enigmáticos para transpirar visões pornográficas, muitas vezes vividas por ele próprio.
Da vida amarga ele sofreu duros golpes; viu o pai ser preso acusado de furto a coroa quando ainda contava seis anos e a mãe morrer de uma paixão fora do casamento quando nem havia comemorado seus 11 anos. A herança literária Bocage herdou dos pais; o pai era advogado e a mãe uma artista com veia francesa. O Jovem Bocage ainda foi militar da marinha real portuguesa, desertou e depois voltou a incorporá-la devido a uma artimanha política; e foi como oficial da marinha que em 21 de junho de 1786 ele desembarcou no Rio de Janeiro, época que logo declarou paixão pela cidade e pelo jovem país, o Brasil.
"Gostou tanto da cidade que, pretendendo permanecer definitivamente”; assim se declarou Bocage após uma semana vivendo pelos bordeis e zonas boêmias cariocas. Para permanecer no Brasil o poeta militar tratou de bajular o Vice-Rei Luiz de Vasconcelos e Sousa, o Conde de Figueiró, com seus versos e sua poesia enigmática; mas não sabia Bocage que a figura política a qual ele bajulava era completamente antagônico a aquele tipo de afabilidade. Ao poeta português não restou outra alternativa senão mostrar sua verdadeira face. Nesta mesma época, quando Bocage sabia que regressaria com a Marinha portuguesa, escreveu a célebre frase: “quem tem c... tem medo e eu também posso errar”. O poeta pervertido saiu do Brasil e seguiu seu curso pelo Atlântico para as colônias portuguesas na África e Ásia.
Acostumado a escrever sobre tudo e todos, muitos dos textos atribuídos a Bocage não eram dele. Muitas pessoas escreviam de modo pouco polido para desabafarem de circunstâncias sociais e política; e assinavam como Bocage, dado a fama do rapaz. Mas há dezenas de poemas, sonetos, versos e outros textos que verdadeiramente são de Manuel Du Bocage, como o Soneto do Membro Monstruoso:
Esse dysforme, e rigido porraz
Do semblante me faz perder a cor:
E assombrado d'espanto, e de terror
Dar mais de cinco passos para traz:
A espada do membrudo Ferrabraz
De certo não mettia mais horror:
Esse membro é capaz até de pôr
A amotinada Europa toda em paz.
Creio que nas fodaes recreações
Não te hão de a rija machina soffrer
Os mais corridos, sordidos cações:
De Venus não desfructas o prazer:
Que esse monstro, que alojas nos calções,
É porra de mostrar, não de foder.
Quando foi interrogado pela Inquisição, época que foi preso, Bocage jurou que o dito membro monstruoso se tratava de uma espada de um soldado, mas a igreja não acreditou em sua versão e o trancafiou por vários anos entre prisões e sanatórios para doentes mentais.
Entre os textos verdadeiramente assinados por Manuel Du Bocage, muitos falam das prostitutas comuns, das prostitutas célebres, dos cornos, dos políticos da época (inclusive de Napoleão Bonaparte) e de circunstâncias íntimas como os momentos em sanitários, entre casais e até parábolas envolvendo a igreja. O sexo e as aberrações sexuais eram os temas mais preferidos do poeta português e ele jamais deixou barato qualquer que fosse a cena vivida por ele ou contada por algum amigo; sempre tratou de escrever e publicar tudo que produzia; e foi isso que o deu muita fama numa época onde o medo era maior do que a criatividade literária.
Pela inquisição foi preso duas vezes e pela polícia de Lisboa outras tantas, mas dizem que foi justamente no período de cárcere que Bocage produziu a maioria de seus textos, inclusive os textos sérios como as traduções e comentários de manuscritos em latim e sua primeira edição de rimas. De 1799 até 1801 Bocage trabalhou com o Frei José Mariano da Conceição Veloso, um religioso brasileiro bem conceituado entre a corte e a igreja, que lhe proporcionou ganhar algum dinheiro com muito trabalho e uma certa piedade para a remissão de sua pena.
Manuel Bocage morreu aos 40 anos de aneurisma em sua casa; na sua data de nascimento é feriado em Setubal e sua obra hoje circula o mundo de língua portuguesa, sobretudo em Portugal e no Brasil. Aqui no Brasil o mais comum é citarmos Bocage em piadas picantes que descrevem cenas de aberrações sexuais. Antes de morrer Bocage deixou em prosa o seu autorretrato:
“Magro, de olhos azuis, carão moreno, Bem servido de pés, meão na altura, Triste de facha, o mesmo de figura, Nariz alto no meio, e não pequeno; Incapaz de assistir num só terreno, Mais propenso ao furor do que à ternura; Bebendo em níveas mãos, por taça escura, De zelos infernais letal veneno; Devoto incensador de mil deidades (Digo, de moças mil) num só momento, E somente no altar amando os frades, Eis Bocage, em quem luz algum talento; Saíram dele mesmo estas verdades, Num dia em que se achou mais pachorrento.”
Para sua lápide ele quis que fosse escrito um de seus sonetos, o Soneto do Epitaphio:
“La quando em mim perder a humanidade
Mais um daquelles, que não fazem falta,
Verbi-gratia — o theologo, o peralta,
Algum duque, ou marquez, ou conde, ou frade:
Não quero funeral communidade,
Que engrole "sub-venites" em voz alta;
Pingados gattarrões, gente de malta,
Eu tambem vos dispenso a caridade:
Mas quando ferrugenta enxada edosa
Sepulchro me cavar em ermo outeiro,
Lavre-me este epitaphio mão piedosa:
"Aqui dorme Bocage, o putanheiro;
Passou vida folgada, e milagrosa;
Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro.”
No Brasil ele é apenas um personagem de tantas historíolas pervertidas; em Portugal é considerado como uma espécie de herói; e por isso talvez é que alguns de nós, inclusive eu, nutrimos sempre que nesta terra anátema que chamamos Brasil, nossas piores influências vieram de gente como Manuel Bocage; aquele que fugia do trabalho, vivia gozando literalmente da vida e das pessoas, morreu e virou grande homem; aquilo que jamais almejou e o foi de fato...
Carlos Henrique Mascarenhas Pires é autor do Blog www.irregular.com.br