OS 24 PREFEITOS DO APOCALIPSE
Como as chuvas de verão promoveram uma inédita reunião de prefeitos em Nova Friburgo, RJ, e qual o significado simbólico deste encontro.
Com as chuvas de verão que castigaram o país nos últimos dias, principalmente a região Sudeste, a imprensa deu ampla cobertura aos acontecimentos e desastres que ceifaram a vida de dezenas de pessoas e provocaram prejuízos incalculáveis, sem contar os transtornos para o fluir desimpedido da economia nacional e da vida cotidiana.
Nova Friburgo, na região serrana fluminense, foi um dos municípios mais castigados do Estado. A situação caótica da cidade chamou a atenção da mídia nacional e dos governos estadual e federal. Por conta disso, foi realizada uma reunião no Palácio Barão de Nova Friburgo, sede do governo municipal daquela cidade, no último dia 7, contando com a presença do simbólico número de 24 prefeitos de cidades vizinhas afetadas.
Segundo nos dá conta a coluna Giuseppe Massimo do Jornal A Voz da Serra “nunca, em tempo algum, Nova Friburgo acolheu tantos prefeitos em um só dia” (AVS, 9 de janeiro de 2007, p. 9). Foi emblemático o encontro. As fotos e a reportagem jornalística nos deram conta de um Governador ladeado por atentos prefeitos, vestindo-se do ar grave que a ocasião exigia.
O Palácio (Barão de Nova Friburgo); o líder máximo do Estado do Rio de Janeiro (Governador Sérgio Cabral); a presença dos prefeitos das cidades afetadas (24 prefeitos); o mar de lama ao redor (em uma Nova Friburgo combalida pela desgraça); trouxe-me à mente uma outra imagem semelhante registrada nas Escrituras Sagradas. Lá também havia um trono, um líder, 24 pessoas e um mar.
O contexto é a visão apocalíptica de João na ilha de Patmos. Ele vê - após ser arrebatado pelo espírito -, um trono no céu e alguém assentado sobre ele (Ap 4.2). Vê, também, ao redor do grande trono, vinte e quatro outros tronos onde estavam assentados anciãos vestidos de brancos, que tinham nas suas cabeças coroas de ouro (Ap 4. 4). E constata que havia diante do trono como que um mar de vidro, semelhante ao cristal (Ap 4. 6).
Algumas semelhanças e diferenças dos dois relatos me chamaram a atenção. Se a situação havia ficado difícil para as prefeituras da região com os estragos provocados pelas chuvas, não restou outra saída senão recorrer ao líder do Estado. Sérgio Cabral representava a válvula de escape para os transtornos causados. Mas, no encontro, o governador jogou uma ducha de água fria (sem nenhum trocadilho cruel) na pretensão dos assustados prefeitos: “o governo do estado não tem condições de arcar com as despesas necessárias, pois já está enfrentando problemas financeiros muito sérios” (In: Recursos para municípios atingidos pelas chuvas terão de vir do governo federal. A Voz da Serra. 9 de janeiro de 2007. p. 7.).
Surge a incerteza e a insegurança continua. A situação propalada pelo Governador vai se confirmando. Cada prefeito deveria entregar um relatório dos prejuízos: “Os prefeitos reunidos deverão entregar em até 48 horas um relatório de avaliação de danos, que será encaminhado ao ministro de Integração Nacional, Pedro Brito, para que os recursos possam ser liberados” (In: Recursos para municípios atingidos pelas chuvas terão de vir do governo federal. A Voz da Serra. 9 de janeiro de 2007. p. 7.) O objetivo era encaminhar o pedido ao Governo Lula que se prontificou em liberar verbas emergenciais.
Mas a desesperança já começa a pairar no ar. Ao que tudo indica, não vai realmente haver recurso algum para recuperar as cidades. Nova Friburgo, cuja previsão de valores para sua recuperação chega a casa dos 80 milhões, deverá ter um repasse de apenas 2 milhões do total de 81,2 milhões já autorizados pelo governo federal para o Estado do Rio de Janeiro. O título da matéria do principal veículo de comunicação da região dá conta do estado de ânimo local: é apenas uma esmola! (In: Governo federal libera “esmola” diante do vulto dos prejuízos com as chuvas. A Voz da Serra. 10 de janeiro de 2007. p. 9.)
Buscando fazer um paralelo nas imagens do caótico encontro de prefeitos com o apocalíptico encontro de anciãos, vamos perceber uma nítida diferença de motivação. O líder do Estado do Rio foi procurado por 24 prefeitos que compareceram com o pires nas mãos: pedidos clamorosos de socorro para suas cidades. O grande líder assentado no trono principal da visão de João recebeu 24 anciãos que traziam ofertas nas mãos: adoração e louvor em corações humildes e reverentes. É certo que havia também um pedido: um dos textos menciona a posse de “taças de ouro cheias de incenso, que são as orações dos santos” (5.8).
Interessante notar que nas cinco vezes que se mencionam os 24 anciãos no livro de Apocalipse (4.4; 4.10; 5.8; 11.16; 19.4) eles se apresentaram e se prostraram “diante do que estava assentado sobre o trono, e adoravam ao que vive pelos séculos dos séculos”. No encontro com o governador havia desconfiança. No encontro com Deus há certezas. Vale ressaltar que as soluções humanas podem não acontecer e o homem pode decepcionar, mas Deus sempre tem uma resposta para os seus filhos. Ele não frustra nunca. A presença das taças com as “orações dos santos” indica que as orações dos servos de Deus não se perdem nunca. Sempre são apresentadas ao Pai.
Outro detalhe a ser destacado é a menção dos vestidos brancos dos anciãos (4.4). As vestes brancas significam pureza. Para estar diante do trono do Cordeiro é preciso ter sido lavado e purificado em seu sangue remidor (7.14). Dizem que a política é corrupta; que ela é má. Fala-se tanto em desvios de verbas e falcatruas neste meio... O ano de 2006 foi marcado por “mensalões”, “sanguessugas” e “dossiês”. A imprensa sempre denuncia estes casos, mas os mesmos caem no esquecimento. Dá náusea ouvir certas reportagens denunciadoras na televisão, pois a população já se conscientizou de que não vai dar em nada. Por que Paulo Maluf está solto? O que deu dos anões do orçamento, da máfia das ambulâncias?
Raphael Jaccoud fala de um aguaceiro maior que está por vir: “Ao ser aberta a Avenida Roberto Silveira, o estado a desenvolveu sempre em cotas superiores a 1,50 metros, em relação à maior enchente já observada, porque 'a maior enchente ainda está por vir'...” e denuncia o pouco caso dos governantes, que não tomam medidas administrativas necessárias para acabar com a ocupação desordenada do solo: “Mas há muito que passou da hora de o poder público exercer uma fiscalização efetiva, honesta, competente e diuturna, sobre a localização de loteamentos e construções, e esquecer que ‘o Brasil é um país de todos’, uma espécie de ‘casa da mãe Joana’, onde todos mandam e ninguém obedece” (In: A maior enchente ainda está por vir. A Voz da Serra. 10 de janeiro de 2007. p. 5). Veja também denúncia deste escritor em texto poético no site Recanto das Letras (www.recantodasletras.com.br/visualizar.php?idt=339104).
A questão é que a política brasileira precisa tomar um banho de ética. Se não houvesse tanto desvio dos recursos públicos para “áreas de sombra” da administração pública nacional; não faltariam recursos para momentos calamitosos como esse; nem para a saúde, educação, saneamento básico etc. Vale ressaltar que no paralelo dos dois grupos de 24 indivíduos que estamos traçando neste artigo, os 24 anciãos do apocalipse retiraram de suas cabeças suas coroas de ouro e as depositaram aos pés do Grande Deus (4.10).
Já parou para observar que em situações de exigência máxima da solidariedade são os pobres que mais participam? De onde vêm as cestas básicas das várias campanhas para “Natal sem Fome” e similares que ocorrem no país? Da classe média solapada e da população menos favorecida. Quem já passou ou está passando por situações difíceis, têm mais condições de sentir empatia pela dor do outro. Quantos destes prefeitos estariam dispostos a abrir mão de sua “coroa de ouro” para resolver os problemas aflitivos das comunidades carentes? Ah, mas isso não dá voto. Isto não aparece. Governantes querem erigir obras faraônicas que perpetuem seu nome na história. Agora, esse negócio de ação social, ajuda a carentes, isso não entra para a história...
Outro fato a ser mencionado é que os 24 anciãos, quando do julgamento final sobre a “Grande Prostituta” que havia corrompido a terra, disseram diante dos desígnios divinos: "Amém. Aleluia!” (19.4). Amém é uma expressão piedosa que significa concordância com o que está sendo dito. Algo como a afirmação: “que assim seja!”.
Quantos políticos diriam um estrondoso “amém” (como disseram os 24 anciãos), se fossem convocados a abrir mão de sua vaidade pessoal, de seu orgulho, de suas pretensões politiqueiras, para abraçar a causa da população menos favorecida, de uma urbanização conseqüente de sua cidade, de um plano diretor que de fato pensasse no município em longo prazo? Os problemas das águas das chuvas na região serrana são antigos e retornam de tempos em tempos. Mas ninguém faz nada, aguardando uma solução mágica, quando, na verdade, só um trabalho sério e bem planejado pode por fim as agruras de tantos que não tiveram melhor quinhão na vida.
Por fim, a figura do mar. As fotos de jornais e imagens televisivas dão conta do verdadeiro mar de águas barrentas que assolou as cidades. O mar que é citado junto ao grande trono é um “mar de vidro”, um mar de cristal (4.6). A associação de idéias remonta a um local de luxo, bem preparado, capaz de receber o Cordeiro de Deus. Alguns estudiosos citam a idéia de ser um local pavimentado de pedras semipreciosas que emprestaria grandeza e suntuosidade (In: Apocalipse. ASHCRAFT, Morris. Comentário Bíblico Broadman. Vol. 12. 3ed. Rio de Janeiro: JUERP. 1990. p. 325, 326). Obviamente que os tapetes das salas dos reis e governantes desse mundo são um nada diante da suntuosidade do trono de Deus, cuja sala do trono possui uma pavimentação que se compara a um “mar de cristal”.
As duas imagens nos fazem recordar que as coisas que Deus faz são boas e belas. Até mesmo as chuvas abundantes que caem sobre a terra. A intervenção desordenada - e muitas vezes pecaminosa do homem sobre a Natureza de Deus -, é que provoca estragos que não podem ser atribuídos à vontade de Deus. Não à sua vontade objetiva, quando muito à sua vontade permissiva. E Deus permite que certas situações nos sobrevenham para que aprendamos. O que se espera é que esta nova temporada de calamidade pública na região serrana fluminense traga o devido aprendizado para as providências necessárias.
Ninguém precisa ter medo (como um rapaz que ao comentar para o repórter acerca de qual tinha sido a sua impressão sobre o desabamento que acabara de presenciar em Teresópolis respondeu: “pensei que o mundo estava acabando!”) de que o mundo vai acabar. Não dessa vez e nem desse jeito. Há uma promessa bíblica de que não haverá mais dilúvio para destruir a Terra (Gn 9.11). Entretanto, todo ser vivente precisa estar preparado espiritualmente para o desfecho da história. A sua pessoal e a da humanidade. É isso que nos dá conta a verdade do Evangelho. Que a solidariedade cristã e o amor ao próximo não sejam uma marca apenas de tempos difíceis como esse, mas que seja uma prática do cotidiano dos povos.