O GATO E SEUS PUDORES

Meu gato Black é quase-humano. Lambe-se à longa língua a todo o momento. Limpa-se com uma inconcebível tenacidade. E mia com uma doçura de fazer inveja aos que falam. Presto muita atenção sobre o que ele possivelmente queira expressar. Mas não tem jeito. Não o consigo entender. Lambe-se, lambe-se à larga, o indiscreto. Mia e geme, quando se coça, esticando as patas. Todavia, juro que o procuro atender bem quanto à sobrevivência. Depois da comida, aconchega-se e se esparrama, barriguinha à mostra, patinhas para o alto, em lassidão. Olhos fechados, somente o rabo em estado de alerta, mexendo constantemente sua extremidade. O humano ser poderia ter essa atenção para as facetas do mundo que o rodeia. Talvez não houvesse tanta indignidade nas entranhas dos famintos. E a água disponível possivelmente o limpasse mais da corrupção, antes que acabem as reservas de potabilidade... De que adianta haver perdido a cauda original (no decurso dos séculos) e tente proteger os seus pudores com vestimentas?

– Do livro SORTILÉGIOS, 2011/12.http://www.recantodasletras.com.br/artigos/3422651