A herança de Roma
Bem antes de Cristo nascer, Roma buscava ampliar seus domínios e se movia para além de seus estreitos limites, com sua imensa legião de soldados, o mais poderoso exército daquela época, em direção a outros territórios. Os domínios romanos foram se estendendo de forma gigantesca e em todas as direções durante o período do Império Romano que começa com Augusto e termina com Nero incendiando a cidade.
Assim, durante todo a fase de invasões de terras alheias e da colonização dos povos dominados, as legiões de soldados se estabeleciam naqueles espaços e, junto com as mulheres que os acompanhavam, iniciavam naturalmente um processo de civilização em que a língua latina era cotidianamente infiltrada e misturada aos dialetos originais das localidades conquistadas na Península Itálica e em grande parte da Europa e de algumas regiões da África do Norte.
Séculos depois, o povo português conquistou, dominou, civilizou as terras que hoje formam o país chamado Brasil e onde se fala a língua portuguesa oriunda do latim. Queiramos entender ou não, a conquista, colonização e civilização do Brasil é uma espécie de continuidade da herança do Império Romano.
Há duas distinções fundamentais da língua latina e que se perpetuam naquelas suas derivadas: um modelo para os poderosos e o outro para os desprovidos de poder. Ora, os soldados da imperiosa Roma eram treinados para a batalha, as guerras ou para a violência nas arenas dos circos. Eram homens fortes fisicamente, capacitados para tais atividades e a elas tinham que se dedicar. Portanto, não eram estudiosos, não se esmeravam no cultivo da intelectualidade.
Por outro lado, havia a população rica e refinada, dedicada aos estudos, à pesquisa, à filosofia e às artes. Estes eram os cidadãos da nobreza, da realeza, do clero, enfim, a elite. Essas pessoas gozavam de todas as regalias, não se dedicavam ao combate físico, mas, alguns entre eles eram os responsáveis pelo traçado de estratégias de inteligência para a realização das conquistas das terras alheias.
Naturalmente, e como já foi dito, o primeiro grupo, o do povo, da massa informe, os soldados e outros, falavam uma língua descuidada, pouco rígida em suas normas e algo diferente da língua falada e escrita pelos da classe poderosa. Foi essa forma de falares dos soldados que formou, prioritariamente, com os dialetos dos povos conquistados, as línguas neolatinas ou novilatinas que eram as variantes do latim original. A língua clássica falada e escrita, exclusividade da nobreza, uma versão exigente, culta e organizada dentro de normas muito severas, foi, também, ao longo dos séculos da civilização e do processo educativo, sendo exigida para aqueles que desejassem um lugar ao sol da realização pessoal e profissional.
A esta altura da civilização pode-se claramente notar, em algumas correntes teóricas, uma ainda forte e inconsciente atitude de manter o Império Romano entre nós. E suas raízes são muito firmes, disto não se tenha dúvida alguma. Deu muito trabalho até a Igreja deixar de rezar missas em latim. Muito bonitas, por sinal, mas de texto incompreensível aos ouvidos das classes populares. E virou o rito sagrado uma espécie de “quem não sabe rezar, xinga Deus”. E só para reforçar a ideia do preconceito contra a linguagem popular, o Word acaba de me sugerir a troca do verbo xingar pela expressão “falar mal de”. Mantenho as duas: “Quem não sabe rezar, xinga Deus” e quem não sabe rezar, fala mal de Deus. Para esta versão do “douto” Word estão as aspas dispensadas, pois a expressão não corresponde ao dito popular. E nem tem o mesmo sabor.
Por outro lado, pode-se também observar que, durante o desenrolar dos séculos, as lutas sociais têm desenvolvido importante papel no sentido de preservar a cultura popular e a fala “simples do povo”.
Não se trata de uma peleja futebolística na qual se quer saber quem será o campeão. A cultura é campeã do jeito que se apresenta, rica e diversificada, retrato de um povo e de suas tradições. E se fosse uma partida de futebol, o time pop, acostumado nas várzeas, ia ganhar de goleada, pois quem sabe, os romanos quiseram dizer que a voz deles é que seria a voz de Deus.
Ao frigir dos ovos, e sem pedir licença para usar a expressão popular, diga-se que, o bom é convivermos em harmonia. Os eruditos conversando com os iletrados e entre si trocando saberes e fazeres; o clássico cantando em uníssono com as vozes do povo. Enfim, todas as manifestações de vida cultural compondo o mais rico panorama criado pelo homem.