O LUGAR DA MULHER NA OBRA DE CHICO BUARQUE: A MÃE DE UM MARGINALIZADO

O MEU GURI

Quando seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar
Já foi nascendo com cara de fome
E eu nem tinha nome pra lhe dar
Como fui levando não sei lhe explicar
Fui assim levando ele a me levar
E na sua meninice ele um dia me disse
Que chegava lá, olha aí, olha aí, olha aí
Olha aí, ai o meu Guri, olha aí
Olha aí, é o meu Guri e ele chega

Chega suado e veloz do batente
E traz sempre um presente pra me encabular
Tanta corrente de ouro, seu moço,
Que haja pescoço para enfiar
Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro
Chave, caderneta, terço e patuá,
Um lenço e uma penca de documentos
Pra finalmente eu me identificar, olha aí
Olha aí, olha aí, olha aí
Olha aí, ai o meu Guri, olha aí
Olha aí, é o meu Guri e ele chega

Chega no morro com o carregamento
Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador
Rezo até ele chegar cá no alto
Essa onda de assaltos tá um horror
Eu consolo ele, ele me consola
Boto ele no colo pra ele me ninar
De repente acordo, olho pro lado
E o danado já foi trabalhar, olha aí
Olha aí, ai o meu Guri, olha aí
Olha aí, é o meu Guri e ele chega

Chega estampado, manchete retrato
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais
Eu não entendo essa gente, seu moço
Fazendo alvoroço demais
O guri no mato, acho que tá rindo
Acho que tá lindo de papo proar
Desde o começo eu não disse, seu moço?
Ele disse que chegava lá
Olha aí, olha aí, olha aí
Olha aí, ai o meu Guri, olha aí
Olha aí, é o meu Guri

     Chico Buarque se utiliza da linguagem ingênua e coloquial de uma mãe favelada para retratar a questão do menor abandonado de forma denunciadora.
Essa composição apresenta métrica irregular, predominando os decassílabos, rimas perfeitas, soantes, agudas e graves e muitos casos de rima interna:"rebento"/ "momento", 
"fome"/"nome""meninice"/"disse",
"aí"/"guri","carregamento"/"cimento", "moço"/"pescoço","alto"/"assalto", "lado"/"danado", "moço"/"alvoroço", "rindo"/"lindo", "consola"/"colo" (rima toante).
     A temporalidade é marcada pelo pretérito perfeito e imperfeito do indicativo, na primeira estrofe: "nasceu", "foi ", "tinha", "era", "fui", "disse", caracterizando um passado miserável da mulher-mãe, sujeito do discurso; e pelo presente do indicativo,: "chega", "rezo", "tá" (aférese do verbo estar, na 3ª pessoa do singular, registro informal), revelando as ações costumeiras do menino e a transformação material ocorrida na vida dessa mulher que relata, envaidecida, ao seu narratário (provavelmente, um repórter), o cotidiano do filho "trombadinha" a quem ela chama carinhosamente "o meu Guri". Ainda marcando a temporalidade, o autor emprega a enálage (pretérito imperfeito do indicativo em vez do futuro: "Que chegava lá", uso corrente no registro informal.
     A primeira referência que a mãe faz desse "guri" é com a expressão "meu rebento". O substantivo "rebento" (derivação regressiva de "rebentar") representa o fruto, o início, filho que descende de família ilustre . Tal expressão adquire no texto um valor negativo, quando o emissor diz que “não era o momento dele rebentar”, em que o verbo “rebentar”, no infinitivo, referindo-se anaforicamente ao sintagma nominal “meu rebento” enfatiza as condições miseráveis das mulheres que vivem à margem da sociedade e que, sem acesso à  educação, à  alimentação e à saúde, dão à luz filhos prematuros, desnutridos, raquíticos que, portanto, não nascem, “rebentam”, explodem, manifestam-se de forma violenta.
     O nascimento do Guri está marcado pelo negativismo das expressões: “cara de fome” / “eu não tinha nem nome”, em que a alternância fônica dos fonemas fricativo labiodental surdo /f/: “fome” e o nasal linguodental sonoro /n/: nome, sugere a ideia de que aquela criança estava predestinada a sofrer não só a fome física, mas também a fome social, cultural e moral. O fato de a mãe não ter um nome para dar ao filho reforça essa crítica social, haja vista que, geralmente, tais mulheres não sabem quem é o pai da criança, porque se relacionam com muitos homens em troca de dinheiro ou alimentação.
     Notamos que ambos (mãe e filho) vivem em total simbiose, uma relação de interdependência afetiva, econômica e social em que, curiosamente, os papéis se invertem: é o filho que desempenha o papel de cuidar da mãe (o provedor), fornecendo-lhe desde os bens materiais à identidade. Ela quer ser guiada, “ninada” por ele: “ Fui assim levando ele a me levar”/ “Eu consolo ele, ele me consola”/ “Boto ele no colo pra ele me ninar”. Nesses versos, podemos perceber que essa mulher também é carente, vítima de um sistema político-social opressor. Ouso aqui, fazer uma inferência em relação à expressão “me ninar” – do ponto de vista da língua, cria-se um neologismo “meninar”, ou seja, ser novamente menina (a mãe) ou menino (o filho), já que a ambos foi negado o direito de ser criança.
     Apesar da situação social miserável, tanto a mãe quanto o filho têm os mesmos desejos de quem pertence à classe dominante: “chegar lá”, alcançar os objetivos, ascender socialmente. Entretanto, o contraste social faz com que o “chegar lá” do guri e da mãe seja conquistado com a delinquência.
     A mãe relata ao seu interlocutor, na segunda estrofe, que o filho chega “suado e veloz do batente”, para enfatizar o “trabalho” pesado a que ele se dedica, ignorando que o suor e a velocidade se devem ao fato de ele estar sempre fugindo da polícia. Ainda nessa estrofe, o sintagma adjetival “de ouro” em: ”tanta corrente de ouro...”, reforça o grau experiência daquela criança no mundo do crime e, ao mesmo tempo, o desejo de fazer a mãe um pouco feliz, valorizando-a. É impressionante a imagem que o poeta cria para o pequeno infrator: ao invés de violento e mau, ele é carinhoso, meigo e cuidadoso, pelo menos com a mãe: “E traz sempre um presente pra me encabular”.
     O texto apresenta dois espaços representados pelos advérbios “lá” (a classe dominante, privilegiada) e “cá” (a classe oprimida, marginalizada, dos morros, das favelas.      Reforçando o caráter denunciador do texto, Chico Buarque cria uma relação imaginária dessa mulher com o mundo. Assim, a partir daqueles documentos roubados ela poderia identificar-se com o espaço de “lá”, afastando-se definitivamente do espaço de “cá”, onde ela só conhece o descaso, a opressão, a exclusão social. Para ela, os documentos têm o mesmo valor material de uma bolsa, ideia reforçada no verso: “me trouxe uma bolsa “já” com tudo dentro”, em que o advérbio “já” e o pronome indefinido “tudo” sugerem que o Guri, “como num passe de mágica”, dera-lhe a oportunidade de exercer a cidadania, podendo identificar-se, apresentar documentos e as chaves de casa, mesmo que essa casa só exista no plano da fantasia. Vale destacar o valor expressivo do artigo “uma”, determinante do sintagma “uma bolsa”, conferindo-lhe o caráter desconhecido. O emprego irregular do coletivo “penca”, além do registro informal, revela o hábito exagerado que as mulheres têm de carregar excesso de coisas dentro da bolsa e de saírem de casa com todos os documentos. Ainda nesse verso, o “lenço” simboliza a vaidade feminina, enquanto o “terço” e o “patuá” representam a crença em mauletos, característica bem marcante nas mulheres. Além disso, nesse contexto, os objetos podem trazer proteção espiritual para a mãe e o filho.
     Na terceira estrofe, a mãe se enche de orgulho para enaltecer o “trabalho” do filho, vendedor de produtos caros (na opinião dela). No verso “Essa onda de assaltos tá um horror”, observamos a preocupação dessa mulher ingênua com os riscos a que o filho estava exposto, medo de que ele seja assaltado, ignorando a atividade ilícita do Guri e o perigo que ele representa para a sociedade. Embora marginalizada, a mãe também tem noção de espiritualidade e crê na proteção divina, quando diz: “rezo até ele chegar cá no alto”. O intensificador “até” enfatiza a preocupação e o medo de quem não tem a quem recorrer, a não ser a Deus. O sintagma adverbial “cá no alto” dá-nos a certeza de que essa mulher mora no morro (favela).
     Na quarta estrofe, a mãe parece querer iludir-se, diante do cadáver do filho e age orgulhosa, como se ele tivesse “chegado lá” como prometera, ou seja, ter conquistado fama e prestígio social, tornando-se manchete de jornais, com direito a fotografia na capa. As expressões: “acho que tá rindo, acho que tá lindo” conotam a inocência dela vendo naquele cadáver um filho lindo e sorridente, “de papo pro ar”, ou seja, desfrutando aquela vida que conquistou com muito trabalho. Portanto, “não entendo essa gente, seu moço/ fazendo alvoroço demais”.
     Com as expressões: "no mato", "de papo pro ar", "alvoroço", contrastando com “Acho que tá rindo, acho que ta lindo” o poeta denuncia a violência policial – nas condições em que morre o Guri – e a violência social – na pessoa frágil e ingênua da mãe.
     O pronome possessivo “meu”, determinante do substantivo “guri”, reforça a ideia de posse, visto que para essa mulher o filho representa o único bem que possui, a esperança de uma vida melhor. Ainda no mesmo sintagma, vale destacar o valor expressivo do artigo definido “o”, mostrando que o Guri se distingue dos demais.
     A função apelativa é marcante em todo o texto pelo uso constante do vocativo “seu moço” e da frase imperativa, construindo um paralelismo no refrão: “Olha aí, olha aí/ Olha aí, ai o meu Guri”. A homonímia “ai” / “aí” sugere respectivamente o orgulho e a dor dessa mãe sofrida.
     O verbo chegar, na terceira pessoa do singular do presente do indicativo nas (1ª, 2ª e 3ª estrofes) apresenta  certa ambiguidade; podendo significar: retornar a casa ou a o cumprimento diário da promessa que o Guri lhe fizera: “E na sua meninice ele um dia me disse que chegava lá”.
O emprego dos fonemas fricativos homorgânicos: /f/, /v/, /x/, /j/, /s/, /z/ sugerem o choro, o cochicho ou um tom confessional da mãe; a vogal aberta /a/ “rebentar”, “da”, “levar”, “lá”... sugere o orgulho e a felicidade dela pelo sucesso do Guri e as nasais: /â/ “levando” / “não”; /en/: “rebento”, “momento”, “rebentar”; /in/: “assim”; /õ/ “fome”, “nome”; /un/: “um” lembram o lamento, a tristeza e o lamento dessa mulher diante de sua condição marginalizada.
     É interessante observar que o Guri morre da mesma forma prematura que nasceu. Mais uma vez, “não era o momento dele rebentar”, isto é, desprender-se, soltar-se da vida.
     Do ponto de vista da língua, todo o texto é marcado pelo uso do registro informal, caracterizando a situação marginal do sujeito do discurso.

Finalmente, desejo que este trabalho desperte no leitor o mesmo prazer que senti ao elaborá-lo, deslumbrando-me e policiando-me o tempo todo com as diversas possibilidades que poderia seguir na análise dos textos. Espero ainda despertar -lhe a consciência das imensas possibilidades expressivas na obra de Chico Buarque de Hollanda e mostrar que, para a compreensão e valorização das obras literárias é imprescindível depreender a expressividade da língua.

Bibliografia:
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37ªed. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999.
BUARQUE, Chico, GUERRA, Ruy. Calabar: o elogio da traição. 22ª ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1996.
CARVALHO, Gilberto de. Chico Buarque: análise poético-musical. 3ªed. Rio de Janeiro: Codecri, 1984.
CASTAGNINO, Raúl H. Análise Literária. 1ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1968.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
GARCIA, Othon Moacir. Comunicação em prosa moderna. 13ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 1986.
GUIRAUD, Pierre. A estilística. Tradução de Miguel de Mailler. 2ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1978.
LAPA, Manuel Rodrigues. Estilística da Língua Portuguesa. 11ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1982.
MARTINS, Nilce Sant'anna. Introdução à estilística. 3ª ed.São Paulo: T.A. Queiroz, Editor, 2000.
MELO, Gladstone Chaves de. Ensaio de estilística de língua portuguesa. 1ª ed.Rio de Janeiro: Padrão, 1976.
MONTEIRO, José Lemos. A estilística. 1ª ed. São Paulo: Ática, 1991.
PIRES, Orlando. Manual de teoria e técnica literária. 2ª ed. Rio de janeiro: Presença, 1985.
ZAPPA, Regina. Chico Buarque: Perfis do Rio. 4ª ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999

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Lídia Bantim
Enviado por Lídia Bantim em 22/11/2011
Reeditado em 20/06/2017
Código do texto: T3349408
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