O LUGAR DA MULHER NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE: A LÉSBICA

2. A lésbica

Mar e Lua
 
Amaram-se um amor urgente
As bocas salgadas pela maresia
As costas lanhadas pela tempestade
Naquela cidade
Distante do mar
Amaram o amor serenado
Das noturnas praias
Levantavam as saias
E se enluaravam de felicidade
Naquela cidade
Que não tem luar]
Amaram o amor proibido
Pois hoje é sabido
− Todo mundo conta
Que uma andava tonta
Grávida de lua
E outra andava nua
Ávida de mar

E foram ficando marcadas
Ouvindo risadas, sentindo arrepios
Olhando pro rio tão cheio de lua
E que continua correndo pro mar
E foram correnteza abaixo
Rolando no leito
Engolindo água
Boiando com as algas
Arrastando folhas
Carregando flores
E a se desmanchar
E foram virando peixes
Virando conchas
Virando seixos
Virando areia
Com lua cheia
E à beira mar.



     Embora essa composição não apresente como sujeito do discurso o “eu-feminino” incluí neste trabalho por ela conter riqueza de detalhes sobre o lesbianismo. Segundo Gilberto de Carvalho (1984) essa canção foi inspirada numa crônica que Chico Buarque lera a respeito do suicídio de duas jovens que se amavam e viviam numa cidade do interior.
     Os versos variam entre cinco, sete e onze sílabas, rimas emparelhadas e interpoladas, soantes, agudas e graves, algumas rimas internas e muitos versos brancos.
     O texto é desenvolvido do começo ao fim apresentando elementos que nos remetem ao mar e à lua, referindo-se à relação amorosa de Mar (o homem) e Lua (a mulher), personagens da história: “noturnas praias”, “se enluaravam”, “não tem luar”. O substantivo "luar" simboliza a falta de romantismo, de sonho e, portanto, de idealismo daqueles moradores que não eram capazes de entender ou de aceitar aquele relacionamento tão verdadeiro e intenso.
     As duas vivem, apesar das circunstâncias marginais, um amor proibido, escandaloso, escondido, por isso : "Amaram o amor urgente". O adjetivo “urgente” remete-nos à circunstância de proibição desse relacionamento, levando-as ao desespero, à revolta, ao ódio e à vingança, sentimentos simbolizados pelo substantivo “tempestade”, ou seja, as duas violentam-se mutuamente, deixando suas “costas lanhadas” pela explosão de sentimentos.
     O segundo e o terceiro versos da primeira estrofe apresentam isocronismo rítmico (paralelismo), visto que ambos, além da metrificação, têm a mesma estrutura sintática: artigo, substantivo, preposição, substantivo: As bocas salgadas pela maresia / As costas lanhadas pela tempestade.
     O sintagma "Distante do mar" remete-nos às limitações daqueles habitante, acostumados a uma rotina medíocre. Embora se trate de um amor proibido, o caso não permanece em segredo. E, como ocorre em todas as cidadezinhas do interior, logo se torna público e motivo de comentários maledicentes: "Pois hoje é sabido" / "Todo mundo conta". E para contar, Chico Buarque emprega versos de rara perfeição e beleza: "Que uma andava tonta" / "Grávida de lua" /" E outra andava nua" / "Ávida de mar". É importante destacar o valor expressivo dos adjetivos grávida e ávida (proparoxítonos) em que ambos contêm o substantivo “vida” representando, nesse contexto, o nascimento da esperança de estarem sempre juntas.
     Na segunda estrofe, o adjetivo “marcadas” conota a discriminação sofrida por essas moças que se tornam motivo de sarcasmo por parte dos habitantes daquela cidade: "E foram ficando marcadas" / "Ouvindo risadas, sentindo arrepios". O substantivo “arrepios” está ambíguo, podendo significar o desejo ardente que ambas sentem ou o medo da reação das pessoas.
Ainda na segunda estrofe, as duas moças, numa atitude narcisista, viram-se refletidas na água do rio: "[...] tão cheio de lua" e mergulharam para apressar a chegada ao mar, ou seja, à plenitude do amor. Com imagens poéticas belíssimas, o narrador retrata o momento em que as duas se lançam às águas, transformando o leito do rio em seu leito de amor. Para não falar em afogamento, o poeta emprega o eufemismo:" Engolindo água" /" boiando com as algas". Aqui, é bom destacar o valor expressivo dos substantivos “água” e “algas”, construindo uma rima quase equívoca. Outra imagem encantadora que o poeta constrói é dizer que elas arrastaram as folhas e carregaram as flores que forrariam e enfeitariam respectivamente o seu leito de amor/morte e, assim como as pétalas das flores, elas se desmancharam, tornando-se alimento para os peixes, misturando-se às conchas e aos seixos para, finalmente, renascerem areia prateada pelos raios da lua, abandonadas à beira mar, amando-se para a eternidade.

     Quanto ao nível semântico, destaco a expressão “se enluaravam”, ou seja, banhavam-se com os raios da lua e deixavam que os mesmos penetrassem em seus corpos e em suas almas. O emprego do adjetivo “serenado”, referindo-se anaforicamente ao substantivo amor, pode significar um amor tranqüilo, que transmite paz ou um amor praticado sob o sereno (orvalho) da noite.
     No nível morfológico, a repetição anafórica do verbo “virar”, no gerúndio, enfatiza as transformações ocorridas nas vidas dessas duas jovens apaixonadas, vítimas do preconceito.
     A repetição do fonema constritivo fricativo palatal /x/ sugere o chiado produzido pelo vento, as águas e o contato das moças com a areia.
     Por fim, gostaria de salientar que este trabalho é apenas uma tentativa de demonstrar a minha inquietação diante da riqueza estilística das composições de Chico Buarque. Não tive, aqui, a pretensão de esgotar todas as possibilidades de análise.

Bibliografia:
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37ªed. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999.
BUARQUE, Chico, GUERRA, Ruy. Calabar: o elogio da traição. 22ª ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1996.
CARVALHO, Gilberto de. Chico Buarque: análise poético-musical. 3ªed. Rio de Janeiro: Codecri, 1984.
CASTAGNINO, Raúl H. Análise Literária. 1ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1968.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
GARCIA, Othon Moacir. Comunicação em prosa moderna. 13ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 1986.
GUIRAUD, Pierre. A estilística. Tradução de Miguel de Mailler. 2ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1978.
LAPA, Manuel Rodrigues. Estilística da Língua Portuguesa. 11ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1982.
MARTINS, Nilce Sant'anna. Introdução à estilística. 3ª ed.São Paulo: T.A. Queiroz, Editor, 2000.
MELO, Gladstone Chaves de. Ensaio de estilística de língua portuguesa. 1ª ed.Rio de Janeiro: Padrão, 1976.
MONTEIRO, José Lemos. A estilística. 1ª ed. São Paulo: Ática, 1991.
PIRES, Orlando. Manual de teoria e técnica literária. 2ª ed. Rio de janeiro: Presença, 1985.
ZAPPA, Regina. Chico Buarque: Perfis do Rio. 4ª ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.
Lídia Bantim
Enviado por Lídia Bantim em 20/11/2011
Reeditado em 27/08/2016
Código do texto: T3346603
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