ESTAMIRA

RESUMO: O documentário Estamira revela a realidade brasileira no tocante à miséria; às casas de higiene mental e; principalmente, à participação do Estado no processo de alienação do homem social; a violência urbana e a segurança pública.

As personagens principais do documentário são a miséria e a negligência do Estado para com a população pobre. Estamira, uma senhora de 62 anos, representa essas personagens através de sua história de vida, exemplo vivo do descaso do Estado para com seus cidadãos.

Uma senhora de família pobre, criada pelos pais, mas ainda pequena abusada sexualmente pelo avô. O mesmo é responsável por levá-la a uma casa de prostituição na qual vive por algum tempo. A vida sentimental, social e religiosa contraria essa senhora a ponto de ela abdicar de uma vida em consonância com os padrões impostos pela sociedade passando a viver com seus filhos no aterro de Gramacho, cidade do Rio de Janeiro.

Mãe de três filhos, dois criados com ela no lixão e uma doada a uma senhora, mas que vê Estamira como mãe e a entende em suas verdades.

Considerada louca pelas filhas e médicos; o filho, ligado a forte religiosidade acredita na possessão de demônios no corpo da mãe; e vista como ser à margem da sociedade por todos; Estamira realmente demonstra momentos de incongruência em seus discursos, entretanto em boa parte do tempo que conversa faz-se sã e completamente capaz de apontar problemas sociais sofridos por ela e que flagelam tantos outros na mesma situação que a sua.

O filme documentário elaborado por Marcos Prado tem a função de desvelar diversas verdades escondidas pela pseudoconcreticidade construída pela sociedade, fazendo valer assim a missão que Estamira diz possuir. A missão de revelar verdades.

De forma eloquente, Estamira aborda a miséria, a religião e a política, por meio de discursos baseados em argumentos fundamentados em experiências próprias. Ela questiona o poder de um Deus que não protege os necessitados, assim como nas diversas vezes que foi estuprada na rua; questiona ainda o porquê de o sistema capitalista exigir justamente daquele indivíduo que possui menos condições financeiras, dentre outros questionamentos.

Estamira traz a lume a existência de um Estado negligente; de uma sociedade hipócrita, muito mais preocupada com aparências; de um povo organizado em torno de um sistema econômico que prima pelo capital, desta forma deixando à margem aqueles “incapazes” de contribuir para o seu desenvolvimento, como o é o Capitalismo.

PALAVRAS-CHAVE: Miséria, Estado, Loucura

INTRODUÇÃO

Através do documentário Estamira, de diversas pesquisas em sites, livros e artigos; tentar-se-á estabelecer neste trabalho uma abordagem que envolva temas como Loucura, Casas de Higiene, Atuação do Estado, Miséria, Violência urbana e Segurança Pública.

Dentro desta perspectiva, os pontos de maior apreço virão dispostos de maneira que se fará uma abordagem introdutória sobre o documentário; em segundo lugar serão discutidas as influências do Estado e sua formação para com o indivíduo; a loucura; o social e o louco; as casas de higiene, especificamente no Brasil; e a miséria.

Na intenção de melhor explicitar os temas, mas sem tornar delongado o trabalho que aqui segue, estruturar-se-á o mesmo em itens e subitens que procurarão revelar os pontos fundamentais na discussão e as possíveis dúvidas surgidas pelo leitor ao longo da apresentação, tornando minuciosas as explicações e fundamentando-as através de exemplos palpáveis e de possível assimilação, pois como fundamentou Benjamin Franklin: “Tu me dizes, eu esqueço, tu me ensinas, eu lembro, tu me envolves eu aprendo” 1.

ESTAMIRA

1.Discussões Introdutórias – Estamira

O documentário filme Estamira apresenta-se repleto de revelações sobre a sociedade e como esta atua junto ao sistema econômico vigente no Brasil, o Capitalismo, de maneira a alienar o indivíduo em sociedade tornando-o superficial, mas congruente à maioria. Isto torna o indivíduo “normal” dentro dos parâmetros estabelecidos pela maioria que no sistema capitalista representa a classe dominante, apesar de estarem em menor número de pessoas. Pois neste sistema o que determina a maioria é a quantia monetária que se possui cada sujeito.

Estamira é uma louca para os médicos que acompanham seu caso e para alguns filhos. Estes concordam em dizer que a mãe apesar de louca apresenta momentos de lucidez dos quais aproveita para passar suas mensagens de cidadã consciente de todo processo de alienação imposto pelo sistema para reduzir cada indivíduo a meros agentes produtores de capital, como ela mesma afirma “reprodutores de conhecimento”; demonstrando que até mesmo o mecanismo educacional apresenta-se contaminado.

O lixão, aterro de Gramacho, no qual esta senhora resolveu morar e criar seus filhos representa um espaço sujo, tomado por restos e pessoas sem muito conhecimento. Este é o espaço reservado pelo sistema aos que tentam revelar sua verdadeira face, seus mecanismos absurdos de geração de capital e sua maneira alucinada e cruel de fazer do homem social verdadeiro imbecil que não é nem capaz de usufruir o que compra.

O mundo da pseudoconcreticidade, tratado pelo filósofo Karel Kosik2, é veemente explanado por Estamira (de forma tácita). Poder-se-ia dizer, temerariamente, que a missão, a qual ela diz ter, estar justamente em fazer sucumbir esse mundo da pseudoconcreticidade.

Não há no discurso de Estamira nenhuma proposta que vise este objetivo, entretanto se sabe que é por meio da dialética ou mesmo do conhecimento de um fato que se pode posicionar a respeito do mesmo. Estamira traz à sociedade esta verdade, não por meio de estudos revelados em livros ou artigos, mas através da experiência própria de vida. O que torna o documentário bastante interessante, pois é natural e espontâneo.

1.1. A Atuação do Estado na Proteção do Cidadão

O Estado tratado nesta discussão está no viés das discussões de Karl Marx, Thomas Hobbes e Jean Jacques Rousseau, ou seja, o Estado tendo sua origem no contrato social3.

O Estado tem a função de estabelecer políticas que atendam às necessidades dos indivíduos em sociedade, uma vez que sua origem4, seja jurídica, natural, violenta, ou contratual, dar-se sempre com a intenção de viabilizar a convivência humana, restringindo o homem a sua categoria de animal racional e objetivando afastá-lo o quanto possível da condição natural violenta5 existente em todos eles.

A própria Constituição Federal do Brasil, datada de 1988, traz em seu corpo normativo a função do Estado no estabelecimento do bem-estar social.

O Art. 3º quando trata dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Este artigo parece descrever exatamente tudo o que Estamira denuncia, mas não seu cumprimento e sim a ausência do Estado na garantia desses princípios.

O documentário faz uma denúncia ao Estado, revelando as falhas deste.

O artigo 194 da Carta Magna prevê:

“A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”.

Estamira denuncia o não cumprimento de normas como esta. Demonstra de forma real como o Ministério Público, mais especificamente, abstém-se; uma vez que é atribuição sua trabalhar na prevenção e combate às atrocidades ocorridas com os indivíduos em geral, mais precisamente àqueles em zona de risco ou de classes menos favorecidas. Ou seja, é o ministério público que na sua parcialidade jurídica deve incumbir-se de fiscalizar e auxiliar pessoas como Estamira e todas aquelas que vivem no lixão. Independente de ela ser realmente louca ou não.

O Estado, desta forma, dá suporte às necessidades dos indivíduos por meio de suas leis, mas não é suficiente na garantia do cumprimento delas; o que inviabiliza o judiciário e, principalmente, a vida dos cidadãos.

O sistema capitalista aliado ao estado trata ainda de piorar a condição humana social, pois a princípio não oferece os subsídios necessários ao desenvolvimento saudável do sujeito, assim como também não garante a dignidade da pessoa humana; através de boa educação, saúde, segurança e outras.

Todos esses são princípios básicos ao desenvolvimento da pessoa humana, entretanto a realidade oferece um cenário de miséria, de pessoas abusadas sexualmente sem suporte familiar, tampouco da segurança pública; pessoas que necessitam dormir em longas filas na porta de escolas para conseguirem vagas para seus filhos; outras tantas que dedicadas ao emprego que possuem entregam- se a este, para demonstrar eficiência e garantir sua única forma de renda diante ao desemprego assolador, de maneira a nem mesmo usufruírem dos benefícios proporcionados pelo emprego.

Desta forma, resta ao indivíduo a loucura, a fuga da dura realidade que massacra o sujeito: de um lado o Estado que impõe padrões de vida e de outro o mesmo Estado que não dá suporte às condições mínimas de existências do homem, do cidadão.

Considerações Finais

Diante da realidade de um Estado soberano subdesenvolvido, sem recursos investidos nas principais áreas necessárias ao desenvolvimento de uma nação; como são educação, saúde pública, segurança e lazer, ou seja, todos os princípios capazes de garantir a dignidade da pessoas humana; percebe-se, através de Estamira, como a loucura pode ser advinda de fatores externos provocados pela sociedade e julgados por ela mesma.

O documentário de Marcos Prado denunciou a negligência de um estado soberano economicamente, mas preso e dependente dos padrões mundiais de consumo.

A loucura é conseqüência da pressão que a miséria, a fome, a falta às garantias sociais previstas em lei impõem ao cidadão, no hodierno.

Diz-se que normal é enxergar como todos. No mundo globalizado atual, as pessoas realizam juntas, compram juntas, comem igual e vestem igual. Isso é o normal: seguir os padrões de mercado, o normal é ser consumidor dos produtos ou fabricá-los.

A partir do momento que o indivíduo descobre esta realidade e a recusa, este passa a não somente ser considerado diferente, mas também louco. Ele passa a possuir um CID (código identificador de doenças) específico ao seu comportamento. Ele não vale mais, como é o caso de Estamira.

Uma senhora de 62 anos que sobrevive de restos num lixão sem cuidados nenhum, dentro de uma das mais prósperas (economicamente) cidades de seu país, possuindo um “atestado” de louca, só pode revelar uma coisa: a insanidade da sociedade que lhe circunda e o descaso do Estado para o qual cedeu sua liberdade.