JUSTIÇA BOAZINHA

Só por um triz não virei um advogado. Mas até hoje admiro o Direito, aquele que for para a garantia dos direitos fundamentais do ser humano. Desde longe, em meus verdes anos, queria ser um defensor dos injustiçados. Estudante ginasial, ainda, era morto e vivo lá nos bancos do Fórum, quando o Fórum de Fortaleza era sediado no centro da cidade. Claro que tinha acesso somente naquelas sessões do júri que eram liberadas ao público.

Ao dar meu passo seguinte, no curso colegial, tive um professor por um curto período que me dissuadiu do velho intento. Felizmente o homem me removeu a ideia obsessiva. . Digo ‘felizmente’ pelo simples fato de que não seria bem sucedido na bonita e próspera carreira advocatícia. Não seria mesmo.

Último ano do segundo grau, ali pela segunda metade do ano, eis que nos chega ao colégio o tal mestre que me salvou a pátria. Uma vez, logo nas primeiras aulas, ele perguntou à classe: – Quem vai, aqui, fazer Direito? E, em silêncio, quase em peso, a turma levantou o braço, inclusive este um.

Aí o camarada vendeu o peixe para todos nós, no maior falatório: – Sou advogado, filiado à OAB, atuando no Fórum. Obtive algumas vitórias importantes, mas foi aplicando golpes baixos. E quem não aplicar golpes baixos, no Direito, não será um bom advogado – ele concluiu. Após rápido hiato, de novo, agora sozinho, levantei a mão e detonei alto para o mestre: – Então estou fora, professor!

O professor parecia muito pragmático e quis saber se sabíamos o que era “golpe baixo”. Na época, o boxe andava em ascensão, e claro que nós sabíamos. Contudo, o mestre foi rápido no gatilho e bem didático:

– Na luta de boxe, quando um atleta atinge o seu adversário, nas partes íntimas, ou baixas – e ele fez o gesto de um murro, nas próprias partes lá dele – está cometendo uma infração, um lance proibido. Isto é um golpe baixo, pessoal! – fechou ele o assunto.

Aquela aula, em definitivo, serviu-me como água na fervura. Dali em diante, penso que em boa hora, baixei o fogo no caldeirão da vontade de tornar-me um causídico. Vendo, atualmente, como correm soltas as chicanas no prado das causas jurídicas, fico a imaginar que não fiz mal, em desistindo de ser um defensor de causas justas e injustas. Acho que, com certeza, não iria derrapar no exercício dos “golpes baixos”.

Não me sujeitaria – nem a peso de ouro – a defender crimes ditos hediondos, ou torpes, como estupros, pedofilia, sequestros, seguidos de morte, parricídios e matricídios, crimes contra o patrimônio público, entre outros e outros tais. E aí o pobre do bacharel iria morrer de fome, com o dente seco. Não; com o aludido método, sem dúvida, canonizar crápulas e desalmados assassinos eu não iria.

DURA LEX, SED LEX, diz um aforismo latino. Nem traduzo, que todo mundo sabe o que isto quer dizer. Mas, em nosso país, as leis são bandas demais, boazinhas demais, mingau demais, geleia demais, água com açúcar demais, até para os crimes mais estúpidos e nefandos; safadagens cabeludas que forçam o Cristo Redentor a tapar o nariz, já pela vergonha que sente.

Brechas em excesso na legislação, chicanas à vista e a impunidade concretizada, tornada moeda corrente e vigente. São recursos disto e daquilo, habeas corpus, decursos de prazo, progressão de penas, protelações do julgamento das querelas, empurrões dos agentes do Judiciário com a barriga, coisa e tal. Macacos me engulam, mas para mim a coisa não daria, de jeito nenhum. Ter que canonizar criminosos incorrigíveis, eu?

Uma “crionça” tem dezesseis ou dezessete anos, já com vários assassinatos nos couros? Ora, a “crionça” é amparada por privilégios da Lei e nem sequer pode ser presa. Sua prisão não é prisão. Aqui, eufemicamente, diz-se “crionça” reclusa ou apreendida. Terminologia boba e hipócrita de uma explícita lassidão dos códigos e estatutos em vigor. Em uma única frase: JUSTIÇA BOAZINHA.

Hoje, embora cometendo crimes notórios, escancarados e deslavados, para que alguém possa ir às barras do tribunal do júri é a maior novela da Terra. Tem é Zé para que um gajo – criminoso contumaz – puxe ao menos meio palmo de cadeia. A um só passe de mágica, com grande facilidade, ainda se anulam os julgamentos, isto quando eles conseguem ser concluídos nos tribunais. As sucessivas apelações impedem o fechamento do crápula.

Um competente defensor inventa qualquer pretexto e as potocas dele tendem a colar mesmo. Vai daí, um juiz cai na esparrela, como um patinho, alegando que está a cumprir a letra fria, justiceira e imparcial da Lei. E dois instrumentos maiores, totalmente obsoletos, vêm à cena: o Código Civil e o Código Penal. Culpa exclusiva de um Congresso Nacional anestesiado pelos interesses pessoais, mortinho dentro das cuecas, exceção feita a poucos, contáveis em somente uma das mãos.

Por um abrir e fechar de olho, e com o fim único de passar a perna na dor, no sofrimento e na humilhação das vítimas, quando sobreviventes, ou então tripudiar dos parentes daquele morto, assassinado com explícita crueldade, são praticadas as tais progressões de pena, as liberdades condicionais, as licenças especiais (saída do preso, no Natal, Dia das Mães, etc.), sem falar no bem-bom das visitinhas íntimas.

Ou seja, em outras palavras: farras de entra e sai, nos presídios, bárbaros e sanguinários bandidos no olho da rua. E sexo a valer – em geral regado a drogas e bebidas – para assaltantes de alta periculosidade, dentro das penitenciárias, como se estes fossem motéis. Esdrúxulas medidas, de bobeira, somente observadas neste paraíso terreal. Em outros países, necas, nem pensar tais disparates. E, por cima, bandido nenhum leva a pecha de criminoso: tem é o pomposo nome de “acusado”. Ah, não, ele é apenas “acusado”.

Gângsteres de assaltos cinematográficos saem do xilindró pela chaminé dos presídios, pela mão gentil das chicanas facultadas pelo Direito torto. Ou, mais comumente, os bandidos saem pela porta da frente, aclamados por claques de advogados, amantes e familiares e gente da mesma laia.

Roubos milionários – como o do Banco Central, em Fortaleza – viram fitas de cinema. Filmes campeões de bilheteria, tudo por conta e obra da Justiça boazinha que reina, entre nós, e irrita a consciência nacional. Enquanto isso, em uníssono, milhares de mães e pais que choram pelas vítimas da violência clamam por “justiça, justiça”, contra a malandragem da impunidade.

Segundo alguns repórteres da crônica policial, corroborados por cidadãos comuns, “no Brasil, o crime compensa”, já por não ter punição exemplar. Quase estou a concordar com essa corrente do pensamento do povo. Se nem os crimes hediondos resultam em nada, então vamos todos à criminalidade. Lógico que este conceito – legalmente, moral e eticamente – é incorreto.

Ao som da valsa da impunidade, assim caminha a sociedade dos tempos modernos, pelo menos aqui, no país do futebol, do carnaval e das novelas. Leis molengas, processos que se arrastam por anos e anos, sentenças aplicadas com lassidão e muitas vezes com parcialidade, baseadas em filigranas judiciais, leis compridas e não cumpridas; enfim, um Judiciário carente de controle externo, pois que toda a legislação muito boazinha.

Fort., 31/08/2011.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 31/08/2011
Código do texto: T3192510
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