Aproximações filosóficas entre o Conceito de Pós-Modernidade em Bauman e a Antropogênese Bíblica

Por Luiz Alberto Amaral Nardi

1.Introdução:

Este trabalho se propõe a partir do Lema da Campanha da Fraternidade 2011 (CF 2011): “a criação geme como em dores de parto” (Rm 8, 22) tecer considerações sobre a o parto e a parturiente no contexto da antropogênese bíblica, ou seja, da mítica criação do Homem no Livro do Gênesis fazendo um elo de ligação metafórico entre este relato e o conceito do sujeito pós-moderno elaborado pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman.

2. Sobre a história da criação do homem na Bíblia

O capítulo 2 do livro do Gênesis narra a criação do Homem e a desobediência dele a uma única ordem divina. Deus fala ao Homem (Gn 2, 16-17): “ [...] Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; mas não coma do fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porque no dia que dele comeres, morrerás”.Alegoricamente o jardim representa a união de todas as potencialidades físicas do planeta com as potencialidades do intelecto humano. Entendemos através do relato bíblico que os frutos são dados para que os homens se beneficiem, os frutos são, portanto, os recursos do planeta Terra que Deus cria e dá para os homens se beneficiarem: “O Senhor Deus fez brotar da Terra toda sorte de árvores, de aspecto agradável, e de frutos bons para comer; e a árvore da vida no meio do Jardim, e a árvore da ciência do bem e do mal.” (Gn 2,9). Também temos o seguinte trecho: “O Senhor Deus tomou o homem e o colocou no jardim para guardá-lo e cultiva-lo.” (Gn 2,15). E todos os frutos são permitidos, menos o da ciência do bem e do mal, pois vemos segundo o mesmo Gênesis, que esta prerrogativa [a de conhecer o bem e o mal] é uma prerrogativa divina. (Gn 3,5).

A árvore do conhecimento do bem e do mal evoca simbolicamente o limite intransponível que o homem, enquanto criatura, deve livremente reconhecer e respeitar com confiança (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA,1993: pág 100, §396)

Há que se notar a existência de uma moral, pois existe, no contexto bíblico, o bem e o mal. E na verdade as ações humanas só são passíveis de punição ou são claramente ruins se elas julgam-se igualar a Deus: “ [...] podes comer do fruto de todas as árvores do Jardim, mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal, porque no dia que delas comerdes, certamente morrerás”.(Gn 2,17).

Ao que nos parece, Jesus ao dizer que a lei mosaica se resumia em dois mandamentos: “Amar a Deus sobre todas as coisas” e “Amar o teu próximo como a ti mesmo” nos diz exatamente sobre comer o fruto da árvore do bem e do mal, pois se o homem não reconhece a Deus como limitação da sua capacidade humana, uma barreira intransponível, o seu “limite intransponível”, acaba por querer se sobrepor aos seus semelhantes. E, na contra-positiva da afirmação acima, se o indivíduo considera o seus semelhantes seus iguais portanto reconhece a Deus como uma limitação da sua inteligência e da sua ação no mundo.

3. A Antropogênese Bíblica e a sociedade pós-moderna

A campanha da Fraternidade nos trouxe como tema, este ano, a seguinte frase: “a criação geme como em dores de parto” (Rm 8, 22). A imagem do parto e da parturiente é de grande recorrência no contexto Bíblico. A primeira vez que aparece talvez seja a mais profícua de significados: “Farei com que, na gravidez, tenha grandes sofrimentos; é com dor que hás de gerar os teus filhos.” (Gn 3,16). Assim se dirige Deus à mulher como punição por ela ter levado o homem a pecar por que ambos desejaram conhecer e distinguir o bem do mal conforme se encontra no texto de (Gn 3,5): “ É que Deus sabe que o dia que dela [o fruto da árvore] comerdes vossos olhos se abrirão e sereis como deuses, possuindo o conhecimento do que seja bom ou mal”.

Partindo da antropogênese judaico-cristã podemos tirar algumas conclusões a respeito do parto e da parturiente. Dentre estas, somos levados a entender que a dor provocada pelo parto é uma punição de Deus à suas criaturas quando as mesmas desejam “ser como deuses”, ou seja, conhecerem o bem e o mal. Afirma ainda o Catecismo da Igreja Católica, que os primeiros seres humanos foram constituídos em estado de “santidade e justiça”, sendo que o estado de justiça original é o que se afirma a seguir: “a harmonia do interior da pessoa humana, a harmonia entre o homem e a mulher e, finalmente, a harmonia entre o primeiro casal e toda a criação constituíam o estado denominado “justiça original” (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 1993: pág 100 ). Depreendemos do texto bíblico e do catecismo católico, que quando o ser humano tenta se divinizar entra em desarmonia com os seus pares e com toda a natureza.

Neste pecado, o homem preferiu-se a si mesmo a Deus, e com isso menosprezou Deus: optou por si mesmo contra Deus, contrariando as exigências do seu estado de criatura e conseqüentemente do seu próprio bem. Criado em estado de santidade, o homem estava destinado a ser plenamente “divinizado” por Deus na glória. Pela sedução do Diabo quis “ser como Deus”, mas, “sem Deus, e antes de Deus, e não segundo a Deus”. (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 1993 §398)

Afirma-nos o mesmo catecismo que, depois que a desarmonia foi criada, o homem passou a se submeter às três concupiscências que seriam: “os prazeres dos sentidos, a cobiça dos bens terrestres, auto-afirmação contra os imperativos da razão” (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 1993, pág100).Podemos observar mais ainda: a dor é infligida na mulher que gera a criação.

4.A mulher enquanto metáfora da sociedade humana

A mítica primeira mulher, Eva, é a que dará continuidade ao gênero humano. Ora, se fora ela que levou ao pecado e continuará gerando os pecadores, podemos identificá-la como a origem da sociedade humana e confundindo-se, posteriormente, com a própria sociedade humana. Ou seja, a mulher pensada assim, enquanto alegoria da sociedade humana é que sofrerá as dores do parto (Gn 3,16) ou a punição por não reconhecer-se limitada. Também homem e mulher reconhecem-se nus; uma metáfora da nossa pequenez ante à pretensão de conhecer o bem e o mal. Há pelo menos um texto bíblico que faz uma metáfora comparando duas sociedades humanas com duas mulheres, ambas prostitutas. Devemos notar que ambas sofrem (como nas dores de parto) e ambas são despidas. O texto é do profeta Ezequiel, vejamos:

Filho do homem: era uma vez duas mulheres, filhas de uma mesma mãe. Elas se prostituíram no Egito e se desonraram ainda muito jovens. Lá foram apertados os seus peitos, lá foi apalpado o seu seio virginal. A mais velha se chamava Oolá, e a sua irmã Oolibá; pertenceram a mim e me deram filhos e filhas. (Seus nomes: Oolá é Samaria; Oolibá, Jerusalém.) (Ez 23, 2-4)

E também nesse trecho:

Oolá foi infiel e tornou-se louca de amores por seus amantes, os assírios, vizinhos dela. (...) por isso entreguei-a a seus amantes, os assírios, por quem ela ansiava; eles descobriram-lhe a nudez, tomaram os seus filhos e filhas, e a degolaram a golpes de espada. Foi um exemplo para as mulheres porque a justiça foi feita. (Ez 23,5 ; 9-10 : grifos nossos)

5.Zygmunt Bauman: o sujeito pós-moderno

Zygmunt Bauman, sociólogo polonês e teórico do pós-modernismo, diz que a sociedade pós-moderna em que vivemos é uma “sociedade líquida”. Vejamos como ele descreve o sujeito pós-moderno:

... ser pós-modernista significa ter uma ideologia, uma percepção do mundo, uma determinada hierarquia de valores, que, entre outras coisas, descarta a idéia de um tipo de regulamentação normativa da comunidade humana e assume que todos os tipos de vida se equivalem, que todas as sociedades humanas são igualmente boas ou más; enfim um ideologia que se recusa a fazer julgamentos e a debater seriamente questões relativas à modo de vidas viciosos e virtuosos, pois no limite acredita que nada deva ser debatido. Isso é pós-modernismo. (BAUMAN, 2003)

Pela definição de Bauman, os sujeitos da pós-modernidade são os que, no limite, não distinguem entre os vícios e as virtudes, pois acreditam que isso não exista. Ou seja, mais do que querer conhecer o bem e o mal, eles os renegam como sendo inexistentes. Há uma aproximação entre as chamadas três concupiscências e as maneiras de agir do ser humano pós-moderno.

Desta maneira, conforme as oportunidades se colocam, cada uma das pessoas que compõe a sociedade se torna parturientes e geram uma realidade nova a cada dia, descartando, conforme o interesse, tudo o que está à sua volta (inclusive e principalmente as pessoas):

Os mecânicos de automóveis de hoje não são treinados para consertar motores quebrados ou danificados, mas apenas para retirar e jogar fora peças usadas ou defeituosas e substituí-las por outras novas e seladas, diretamente da prateleira. Eles não têm a menor idéia da estrutura das peças ‘sobressalentes’ (uma expressão que diz tudo), do modo misterioso como funcionam; não consideram esse entendimento e habilidade que o acompanha como sua responsabilidade ou como parte do seu campo de competência. Como na oficina mecânica, assim como na vida, em geral: cada ‘peça’ é ‘sobressalente’ e substituível, e assim deve ser. Por que gastar tempo com consertos que consomem trabalho, se não é preciso mais que alguns momentos para jogar fora a peça danificada e colocar outra em seu lugar? (BAUMAN,2001,pág.186 apud FRANCISCO, L.V. 2011)

As implicações do que Bauman fala abarca desde a convivência humana atual, problemas éticos da ciência e tecnologia, até questões ambientais como as políticas de sustentabilidade ambiental e conservação do meio ambiente.

Destacamos a questão dos avanços no campo da engenharia genética como o seqüenciamento de genes, a clonagem, as células tronco embrionárias.

Quando se origina a vida? O que é vida? Se a vida se dá no momento da concepção é eticamente e moralmente correto utilizar-se dos embriões para fins experimentais? Acreditamos que todos concordam com que os campos de concentração nazistas aonde se faziam experiências médicas com os concentrados foram um dos episódios mais horrorosos da humanidade. Nessa perspectiva, e se considerarmos a concepção no momento da formação dos embriões, não estaríamos montando um campo de concentração em escala microscópica?

Sendo uma das características do sujeito pós-moderno não distinguir entre o bem e o mal, não há como constituir-se uma moral e uma ética sólidas, com embasamentos teóricos metafísicos ou não, que busquem trabalhar com certas situações próprias do nosso tempo. Isto justamente porque a tendência da sociedade atual é considerar o bem e o mal como melhor lhe aprouver no momento, ou seja, a sociedade atual a exemplo da progenitora inicial foi tentada a comer da árvore da ciência do bem e do mal.

Retomando o fio condutor do nosso pensamento, sendo a parturiente a sociedade humana e que gera atualmente, dentro de si, o pós-modernismo. Quais são as dores de parto?

Pois bem, se estas dores se tratam de uma punição então elas podem ser metáforas de toda conseqüência dessa postura atual do ser humano, todas as aflições dos indivíduos seja nos campo das relações interpessoais e intrapessoais ou na natureza.

Bebamos novamente na fonte e vejamos o que nos diz Bauman:

Os riscos hoje são de outra ordem, não podemos cheirar, ouvir, ver ou tocar as condições climáticas que, gradativamente, mas sem trégua, estão se deteriorando. O mesmo acontece com os níveis de radiação e poluição, a diminuição das matérias-primas e fontes de energia não-renováveis e os processos de globalização sem controle político ou ético que solapam as bases de nossa existência e sobrecarregam a vida dos indivíduos com grau de incerteza e ansiedade sem precedentes.” (BAUMAN,2003)

A análise de Bauman já pode ser sentida. A pesquisa realizada pela inglesa Mental Health Society, entitulada “The Lonely Society?” (A sociedade solitária? tradução nossa) aponta o novo estilo de vida como responsável pelo aumento de solidão nos últimos 50 anos nos diz: “[...] a pressão em ser produtivo e alcançar o sucesso no trabalho faz com que as pessoas acabem negligenciando as relações afetivas” (LIRA, C. 2010)

O Instituto Brasileiro de Geografia Estatística, IBGE, estima que no Brasil mais de 6 milhões de pessoas vivam sozinhas. (LIRA, C. 2010).

O ser humano que pensa estar na época mais livre de todas as épocas se encontra preso nos grilhões da solidão. Bauman fala sobre as relações entre as pessoas e particularmente sobre relacionamentos afetivos num trabalho entitulado: “Amor Líquido”.Aonde a fluidez dos relacionamentos humanos provoca o aumento da sensação de solidão.

Também, há alguns anos, existe uma preocupação com a camada de ozônio, com a devastação das áreas verdes que ainda restam no mundo, com o aquecimento global e com o degelo dos pólos decorrentes desse aquecimento. Estes problemas não começaram nesta nossa época, embora com a falta de ética e senso do que é mal ou bom como nos fala Bauman, e esta situação tende a se agravar. Por isso dizemos que estes problemas são tipicamente pós-modernos, e são conseqüências do individualismo e egoísmo da atual conjuntura social.

Mas, a sociedade pode assim se sustentar por muito tempo?

6.Conclusão: outra visão da parturiente e do parto

Ora, enfim, após o parto nascerá o filho. Se a parturiente é a sociedade que gesta o pós-modernismo, qual será o filho deste movimento? A gestação ainda está em andamento e por isso mesmo que a “a criação geme como em dores de parto” (Rm 8,22). No entanto, assim como o Novo Testamento (N.T.) renova e lapida as questões do Antigo Testamento, vejamos um exemplo sobre o parto e parturiente que aparece no N.T: “Quando a mulher está para dar a luz, sofre porque veio a sua hora. Mas depois que deu à luz a criança, já não se lembra da aflição, por causa da alegria sentida de haver nascido um homem no mundo.” (Jo 16,21)

A sociedade humana já passou por vários períodos durante a História. Parece-nos que uma grande metáfora disso é o texto de (Jo 16,21) citado acima. Se imaginarmos a mulher como a sociedade humana, cada criança nova gerada são as novas épocas e os paradigmas e conceitos da mesma. Por isso nos arriscamos a reunir todas as informações e exibirmos uma conclusão.

A sociedade está num período avançado da gestação desta época chamada por teóricos como Bauman, de pós-modernismo. Por isso realmente geme e sente dores terríveis, já que está no limite da sua sustentação. Toda a questão de um individualismo exacerbado, da solidão, da despreocupação com questões éticas nas ciências da genética e no tratamento do meio ambiente está levando a um questionamento dessa pretensa liberdade que nos tornaria deuses, assim como no Gênesis. A divina liberdade almejada pelo ser humano implica uma eterna solidão. Deus age só e único.E por isso, provavelmente, logo virá um novo modelo ou novas maneiras de pensar a sociedade. E, como sempre aconteceu, a sociedade sempre se esquecerá das dores de parto e novamente engravidará.

REFERÊNCIAS:

BÍBLIA SAGRADA, Edição Virtual da Editora “Ave Maria” disponível em: www.bibliacatolica.com.br, em 26/04/2011 às 21h23min.

BAUMAN, Zigmunt. 2003. A sociedade líquida de Zygmunt Bauman. Entrevista ao Jornal Folha de São Paulo, dia 19/10/2003, Caderno Mais!, pág. 5.

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, Edição Conjunta das Editoras Paulinas, Loyola, Ave-Maria, Vozes. Petrópolis, RJ :1993

FRANCISCO, Luciano Vieira. “A modernidade da fusão social pela solidificação individual: Modernidade Líquida de Zygmunt Bauman”, Klepsidra- Revista de História Virtual, disponível em: http://www.klepsidra.net/klepsidra23/modernidade.htm, acesso em 26/04/2011, às 20h45min.

LIRA, Camila. “Estilo de vida atual leva à solidão” matéria disponível em http://delas.ig.com.br/comportamento/estilo+de+vida+atual+leva+a+solidao/n1237656733710.html acesso em 28/04/2011, à 01h55min

Publicado na Revista Doxo ISSB 2175-7763

Laanardi
Enviado por Laanardi em 30/08/2011
Código do texto: T3191643
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