Sobre meu pai e o dia dos pais

Muitos e muitos anos atrás, antes do computador e da internet, eu aprendi a datilografar ou, como se dizia usualmente, bater máquina. Naquela época eu tinha dois sonhos: ser jogador de futebol e ser jornalista. Muito cedo minha primeira opção foi frustrada. Ainda luto pela segunda. Hoje eu iria escrever sobre matrimônio, daí, lembrei-me de meu pai. Quando fui digitar meu outro artigo, deparei-me com uma foto minha jogada ao chão. Eu devia ter uns dezenove anos, estava agachado e engraçado! Não era eu. Era o meu pai. Foto muito antiga para o meu tempo! Então lembrei que hoje é o dia dos pais e 29 de agosto, faz nove anos que o meu morreu. Acontece que, para mim, ele nunca morreu! Ele vive, na minha memória, mesmo quando esqueço que hoje é dia dos pais. Dele, guardo uma folha de jornal, o Jornal de Bocaiúva. Nesse macarrão de jornal está um artigo que traz no título: “Morreu Bodinho, o craque da pelota”.

Ao deparar-me com outra foto do meu pai, nessa folha de jornal, senti saudades dele. Estou ficando velho e, a cada dia, mais me pareço com ele.

Meu pai viveu seus tempos de glória em Granjas Reunidas, que foi um pequeno povoado no norte de Minas Gerais. Hoje é uma fazenda onde dois vaqueiros cuidam de muitos bois. Seu pai, meu avô, Teodoro Baranowski, chamado de seu Barão pela gente de Granjas, foi general do exército polonês e lutou bravamente contra as forças de Hitler. Quando a Alemanha tomou a Polônia, ele fugiu da Europa, para o Peru, instalou-se na capital, Lima. Lá, hospedou-se numa pensão para rapazes, cuja dona tinha duas filhas moças, gêmeas (diga-se de passagem). A mais extrovertida, tia Isabel, foi prometida em casamento ao meu avô. Quando tudo estava pronto para o casamento, forças hitleristas procuravam prender meu avô em Lima. Precisando fugir, ele tomou a irmã de Isabel e fugiu com ela para o Brasil. É lógico que ele sabia o que estava fazendo. Escolheu para si Tula Aurora Del Castillo, mãe do meu pai e dona da tão lembrada pensão de Dona Tula, reduto de muitos estudantes, hoje doutores, formados pela UFMG (em Belo Horizonte).

Quando meu avô chegou ao Brasil, esteve com Matarazzo no Rio de Janeiro, meu avô sabia sete idiomas, conhecia táticas de guerra desconhecidas aos nossos generais, sabia matemática, biologia, geografia e física, mas nada disso tinha serventia para seu grande admirador e mecenas. Matarazzo, então, o enviou para o Norte de Minas Gerais. Lá, Teodoro seria seu tesoureiro num povoado chamado Granjas Reunidas que, na verdade, era uma comunidade com todo um complexo de cidade: estação de trem, hotel, bar, campo de futebol, quadra de tênis, armazéns, serraria, oficina, igreja, correio, escola, hospital, telefone, água canalizada, clube, cinema, teatro, banda de musica, jazz, médicos, padre, dentistas, praças, ruas e moradias bem cuidadas, dinheiro próprio (O Boró) e o principal: Emprego para todos. No entanto, no contexto oficial, Granjas Reunidas nem ao menos era distrito. As terras eram de propriedade privada do Sr. Francisco Matarazzo. Antes fora da família Dolabella. Depois desses dois donos, outras empresas surgiram E, com elas, o declínio de todo aquele acervo.

Ainda menino, meu pai, Jorge Baranowski, ganhou um apelido do meu avô. Ele o chamou de bodinho e assim meu pai ficou conhecido. Só pude compreender a origem desse apelido há pouco tempo, pois no idioma polonês Baran - de Baranowski, - é o mesmo que bode, cabeça dura, teimoso.

A maior paixão de meu pai, principalmente na juventude, foi o futebol, seu esporte preferido e de toda gente de Granjas Reunidas. Mais tarde, quando Granjas se tornou Engenheiro Dolabella, construiu-se lá um grande estádio de futebol, com arquibancadas, vestiários, gramado com dimensões oficiais, túnel de acesso ao campo e alambrados.

Quando foi criado o ADJ (Associação Desportiva Jequitai) convocou-se uma seleção dos melhores jogadores do Norte de Minas. Meu pai foi convidado para compor a equipe, mas não aceitou. Estava com 35 anos e tinha receio de disputar a posição de sua preferência, a camisa Dez, com jogadores mais jovens. A bem da verdade, Bodinho, sempre preferiu o Esporte Clube Granjas Reunidas. “Começou pelas categorias de base (infantil e juvenil), chegando ao time titular. E isso tudo, quando chegou ao apogeu de sua carreira futebolística”. Nunca o vi jogar, quando nasci, ele tinha encerrado a carreira, mas dizem que foi um astro da bola. “Tinha a maestria de colocar a pelota, principalmente nas faltas batidas, onde queria. A sua certeira e famosa perna esquerda era o terror dos goleiros da época”. (Copiei do jornal que guardo).

Tempos depois, sendo amigo do técnico do ADJ, foi convidado para assistir a final de um torneio em Montes Claros. Eu tinha sete anos e ele me levou junto. Esperava ser homenageado caso o ADJ ganhasse o campeonato. Queria que eu me orgulhasse dele, mas após a partida, tendo o ADJ perdido o campeonato numa disputa de pênaltis, foi-nos negado acesso ao restaurante, ao jantar de confraternização. Aquilo desapontou profundamente meu pai, depois disso, ele nunca mais foi a um campo de futebol.

Lembro-me da casa onde passei parte de minha infância: era uma velha casa mineira, daquelas que não tem banheiro dentro e que, de noite, a gente escuta o barulho dos ratos andando pelas madeiras do telhado. Não me esqueço nunca do cheiro da terra daquele lugar quando chovia. Cheiro este que não existe mais e que continua morando em mim como nostalgia. De noite, havia um barulho de trem: o trem das onze horas. Eu só conseguia dormir depois que ele passava. Havia, não muito longe da minha rua, uma caieira, um túnel misterioso que entrava em uma serra de mata fechada. Meus irmãos mais velhos, Junior e Beto, para me fazerem sofrer, diziam que ali morava um menino, sozinho... “Quer ver”? eles perguntavam. E gritavam, agachados, mãos nos joelhos: “Ô, menino!” E o eco respondia, com voz sumida: “Ô, menino...” Eles corriam, eu corria também. Por ter as pernas menores, ficava para trás, estufava o peito para correr mais, o Beto ficava entre mim e o Junior, percebendo que eu ia morrer de medo, parava e dizia: “Ele se foi Du”. Eu nada sabia de ecos e ficava imaginando um menino, como eu, sozinho e perdido na noite escura de um túnel. E não podia dormir, de tristeza e de medo. Quando meu pai chegava em casa, sempre depois de todos deitarem-se, eu me acalmava e finalmente adormecia.

Quando fiz quinze anos, já tínhamos voltado a morar em Montes Claros. Meu pai havia sofrido uma hemorragia cerebral e, desde então, o seu estado de saúde piorava a cada ano. Logo entrei no seminário para padres. Fui até o final do processo. Morei em muitos conventos, muitas cidades. Hoje, homem feito, lembro-me dos meus primeiros dias de seminário. Quarto escuro, corredor vazio, janela antiga e grande, clima frio. Eu dormia pouco, demorei três semanas para desfazer a mala, esperava que o meu pai fosse me buscar. Isso nunca aconteceu.

Quando meu pai morreu, eu estava em Salvador, na Bahia, não tinha dinheiro para ir até Minas e assistir seus funerais. Andei a noite inteira pela praia de Itapuã, estava fora da igreja, era professor de filosofia e não mais usava rezar... Quando passei três noites e três dias sem dormir. Decidi rezar pelo meu pai: foi uma oração breve, era tudo que ele queria de mim para partir em paz. Então voltei a dormir!

Sinto falta dele, da simplicidade do seu mistério. O mistério de sua simplicidade me faz sentir orgulho de ser seu filho. Uma folha de jornal, uma foto, é tudo que tenho dele. Mas, se céus houver, espero que lá haja homenagens e que os jantares sejam fartos e gratuitos, e que haja futebol, pois ainda quero vê-lo jogar...

Durval Bara Baranowske, filósofo e escritor

Bara
Enviado por Bara em 13/08/2011
Código do texto: T3158338