FREUD INTERPRETANDO O PRÓPRIO SONHO

FREUD INTERPRETANDO O PRÓPRIO SONHO

(em construção)

No processo de desenvolvimento da psicanálise, Dr. SIGMUND FREUD, seu fundador e mestre, utilizou várias técnicas, entre elas a hipinose, a sugestão e a interpretação de sonhos, mas na utilização dessa ultima ele se deparou com um grande obstáculo, como saber se as fontes de suas informações eram boas?, então ele resolveu usar a si mesmo e na obra “A Interpretação dos Sonhos” (Primeira parte), ele fez interpretações dos próprios sonhos para melhor demonstrar a técnica.

Abaixo transcrevo na íntegra a interpretação do sonho que ficou conhecido como “A Injeção de Irma” e, ao final, faço outra leitura desse sonho, que também foi uma auto-analise que Freud fez, mas que, como ele mesmo lecionou, sempre está sujeita a desvios.

Obviamente que minha leitura está muito mais fácil pelo fato de eu levar em conta acontecimentos posteriores a análise dele, portanto serve apenas como uma sugestão de confrontação entre o que ele viu e os acontecimentos posteriores.

Demonstrando que somos muito condecendentes com nós mesmos, por isso precisamos de um profissional para fazer nossa análise.

(abaixo as palavras de Freud - Interpretação dos Sonhos)

(...)

“No decorrer de minhas psicanálises de neuróticos já devo ter analisado mais de mil sonhos; mas não me proponho utilizar esse material nesta introdução à técnica e à teoria da interpretação do sonho.

Além do fato de que essa alternativa estaria sujeita à objeção de que esses são sonhos de neuropatas, dos quais não se poderia extrair nenhuma inferência válida quanto aos sonhos das pessoas normais, há um outro motivo bem diferente que me impõe essa decisão.

O assunto a que levam esses sonhos de meus pacientes e sempre, por certo, a história clínica subjacente a suas neuroses. Cada sonho exigiria portanto, uma longa introdução e uma investigação da natureza e dos determinantes etiológicos das psiconeuroses.

Mas essas questões constituem novidades em si mesmas e são altamente desconcertantes, e desviaram a atenção do problema dos sonhos. Ao contrário, é minha intenção utilizar minha atual elucidação dos sonhos como um passo preliminar no sentido de resolver os problemas mais difíceis da psicologia das neuroses. Todavia, ao abir mão de meu material principal, os sonhos de meus pacientes neuróticos, não devo ser muito exigente quanto ao que me resta.

Tudo o que resta são tais sonhos que me foram relatados de tempos em tempos por pessoas normais de minhas relações, e outros como os que foram citados como exemplos na literatura que trata da vida onírica. Infelizmente, porém, nenhum desses sonhos é acompanhado pela análise, sem a qual não posso descobrir o sentido de um sonho.

Meu método não é tão cômodo quanto o método popular de decifração, que traduz qualquer parte isolada do conteúdo do sonho por meio de um código fixo. Pelo contrário, estou pronto a constatar que o mesmo fragmento de um conteúdo pode ocultar um sentido diferente quando ocorre em várias pessoas ou em vários contextos.

Assim, dá-se que sou levado aos meus próprios sonhos, que oferecem um material abundante e conveniente, oriundo de uma pessoa mais ou menos normal e relacionado com múltiplas circunstâncias da vida cotidiana. É certo que depararei com dúvidas quanto à confiabilidade desse tipo de “auto-análises”, e hão de me dizer que elas deixam a porta aberta a conclusões arbitrárias.

Em meu julgamento, a situação é de fato mais favorável no caso da auto-observação do que na observação de outras pessoas; seja como for, podemos fazer a experiência e verificar até que ponto a auto-análise nos leva na interpretação dos sonhos. Mas tenho outras dificuldades a superar, que estão dentro de mim mesmo. Há uma certa hesitação natural em revelar tantos fatos íntimos sobre nossa própria vida mental, e não pode haver qualquer garantia contra a interpretação errônea por parte dos estranhos. Mas deve ser possível vencertais hesitações. “Tout psychologiste”, escreve Delboeuf [1885], “est obligé de faire l’aveu même de ses faiblesses s’il croit par là jeter du jour sur quelque problème obscur.” E é correto presumir que também meus leitores logo verão seu interesse inicial nas indiscrições que estou fadado a cometer transformado num interessante mergulho nos problemas psicológicos sobre os quais elas lançam luz.

Por conseguinte, passarei a escolher um de meus próprios sonhos e, com base nele, demonstrarei meu método de interpretação. No caso de cada um desses sonhos, far-se-ão necessárias algumas observações à guisa de preâmbulo. — E agora devo pedir ao leitor que faça dos meus interesses os seus próprios por um período bastante longo, e que mergulhe comigo nos menores detalhes de minha vida, pois esse tipo de transferência é obrigatoriamente exigido por nosso interesse no sentido oculto dos sonhos.

PREÂMBULO

No verão de 1895, eu vinha prestando tratamento psicanalítico a uma jovem senhora que mantinha laços muito cordiais de amizade comigo e com minha família. É fácil compreender que uma relação mista como essa pode constituir uma fonte de muitos sentimentos conturbados no médico, em particular no psicoterapeuta. Embora o interesse pessoal do médico seja maior, sua autoridade é menor; qualquer fracasso traz uma ameaça à amizade há muito estabelecida com a família do paciente. Esse tratamento terminara com êxito parcial; a paciente ficara livre de sua angústia histérica, mas não perdera todos os sintomas somáticos.

Nessa ocasião, eu ainda não discernia com muita clareza quais eram os critérios indicativos de que um caso clínico de histeria estava afinal encerrado, e havia proposto à paciente uma solução que ela não parecia disposta a aceitar. Enquanto estávamos nessa discordância, interrompemos o tratamento durante as férias de verão. — Certo dia, recebi a visita de um colega mais novo na profissão, um de meus mais velhos amigos, que estivera com minha paciente, Irma, e sua família, em sua casa de campo.

Perguntei-lhe como a achara e ele me respondeu: “Está melhor, mas não inteiramente boa.” Tive consciência de que as palavras de meu amigo Otto, ou o tom em que as proferiu, me aborreceram. Imaginei ter identificado nelas uma recriminação como no sentido de que eu teria prometido demais à paciente; e, com ou sem razão, atribui o suposto fato de Otto estar tomando partido contra mim à influência dos parentes de minha paciente, que, como me parecia, nunca haviam olhado o tratamento com bons olhos.

Entretanto, minha impressão desagradável não me ficou clara e não externei nenhum sinal dela. Na mesma noite, redigi o caso clínico de Irma, com a idéia de entregá-lo ao Dr. M. (um amigo comum que, na época, era a principal figura de nosso círculo), a fim de me justificar. Naquela noite (ou na manhã seguinte, como é mais provável), tive o seguinte sonho, que anotei logo ao acordar.

SONHO DE 23-24 DE JULHO DE 1895

Um grande salão — numerosos convidados a quem estávamos recebendo. — Entre eles estava Irma. No mesmo instante, puxei-a de lado, como que para responder a sua carta e repreendê-la por não ter ainda aceitado minha “solução”. Disse-lhe:

- “Se você ainda sente dores, é realmente apenas por culpa sua.”

Respondeu ela:

- “Ah! se o senhor pudesse imaginar as dores que sinto agora na garganta, no estômago e no abdômen… — isto está me sufocando.” — Fiquei alarmado e olhei para ela. Parecia pálida e inchada. Pensei comigo mesmo que, afinal de contas, devia estar deixando de perceber algum distúrbio orgânico. Levei-a até a janela e examinei-lhe a garganta, e ela deu mostras de resistências, como fazem as mulheres com dentaduras postiças. Pensei comigo mesmo que realmente não havia necessidade de ela fazer aquilo. — Em seguida, ela abriu a boca como devia e, no lado direito, descobri uma grande placa branca; em outro lugar, vi extensascrostas cinza-esbranquiçadas sobre algumas notáveis estruturas recurvadas, que tinham evidentemente por modelo os ossos turbinados do nariz. —

Chamei imediatamente o Dr. M., e ele repetiu o exame e o confirmou… O Dr. M. tinha uma aparência muito diferente da habitual; estava muito pálido, claudicava e tinha o queixo escanhoado… Meu amigo Otto estava também agora de pé ao lado dela, e meu amigo Leopold a auscultava através do corpete e dizia:

- “Ela tem uma área surda bem embaixo, à esquerda.” Indicou também que parte da pele do ombro esquerdo estava infiltrada. (Notei isso, tal como ele fizera, apenas do vestido.)…

M. disse:

- “Não há dúvida de que é uma infecção, mas não tem importância; sobrevirá uma disenteria, e a toxina será eliminada.”…

Tivemos também pronta consciência da origem da infecção. Não muito antes, quando ela não estava se sentindo bem, meu amigo Otto lhe aplicara uma injeção de um preparado de propil, propilos… ácido propiônico… trimetilamina (e eu via diante de mim a fórmula desse preparado, impressa em grossos caracteres)… Injeções como essas não deveriam ser aplicadas de forma tão impensada… E, provavelmente, a seringa não estava limpa.

Esse sonho tem uma vantagem sobre muitos outros. Ficou logo claro quais os fatos do dia anterior que haviam fornecido seu ponto de partida. Meu preâmbulo torna isso evidente. A notícia que Otto me dera sobre o estado de Irma e o caso clínico que eu me empenhara em redigir até altas horas da noite haviam continuado a ocupar minha atividade mental mesmo depois de eu adormecer.

Não obstante, ninguém que tivesse apenas lido o preâmbulo e o próprio conteúdo do sonho poderia ter a menor idéia do que este significava. Eu mesmo não fazia nenhuma idéia. Fiquei atônito com os sintomas de que Irma se queixou comigo no sonho, já que não eram os mesmos pelos quais eu a havia tratado. Sorri ante a idéia absurda de uma injeção de ácido propiônico e ante as reflexões consoladoras do Dr. M. Em sua parte final, o sonho me pareceu mais obscuro e condensado do que no início. Para descobrir o sentido de tudo isso, foi necessário proceder a uma análise detalhada.

ANÁLISE

O salão — numerosos convidados a quem estávamos recebendo. Passávamos aquele verão em Bellevue, numa casa que se erguia sozinha numa das colinas contíguas a Kahlenberg. A casa fora anteriormente projetada como um local de entretenimento e, por conseguinte, suas salas de recepção eram inusitadamente altas e semelhantes a grandes salões. Foi em Bellevue que tive o sonho, poucos dias antes do aniversário de minha mulher.

Na véspera, ela me dissera que esperava que alguns amigos, inclusive Irma, viessem visitar-nos no dia de seu aniversário. Assim, meu sonho estava prevendo essa ocasião: era aniversário de minha mulher, e diversos convidados, inclusive Irma, estavam sendo recebidos por nós no grande salão de Bellevue.

Repreendi Irma por não haver aceito minha solução;disse:

- “Se você ainda sente dores, a culpa é sua.” Poderia ter-lhe dito isso na vida de vigília, e talvez o tenha realmente feito. Era minha opinião, na época (embora desde então a tenha reconhecido como errada), que minha tarefa estava cumprida no momento em que eu informava ao paciente o sentido oculto de seus sintomas: não me considerava responsável por ele aceitar ou não a solução — embora fosse disso que dependia o sucesso. Devo a esse erro, que agora felizmente corrigi, o fato de minha vida ter-se tornado mais fácil numa ocasião em que, apesar de toda a minha inevitável ignorância, esperava-se que eu produzisse sucessos terapêuticos. — Notei, contudo, que as palavras que dirigi a Irma no sonho indicavam que eu estava especialmente aflito por não ser responsável pelas dores que ela ainda sentia.

Se fossem culpa dela, não poderiam ser minha culpa. Seria possível que a finalidade do sonho tivesse esse sentido.

Queixa de Irma: dores na garganta, abdômen e estômago; isso a estava sufocando. As dores de estômago estavam entre os sintomas de minha paciente, mas não tinham muito destaque; ela se queixava mais de sensações de náusea e repulsa. As dores na garganta e no abdômen, assim como a constrição da garganta, quase não participavam de sua doença. Fiquei sem saber porque teria optado pela escolha desses sintomas no sonho, mas não pude pensar numa explicação no momento.

Ela parecia pálida e inchada. Minha paciente sempre tivera uma aparência corada. Comecei a desconfiar que ela estivesse substituindo outra pessoa.

Fiquei alarmado com a idéia de não haver percebido alguma doença orgânica. Isso, como bem se pode acreditar, constitui uma fonte perene de angústia para um especialista cuja clínica é quase que limitada a pacientes neuróticos e que tem o hábito de atribuir à histeria um grande número de sintomas que outros médicos tratam como orgânicos.

Por outro lado, uma ligeira dúvida infiltrou-se em minha mente — vinda não sei de onde — no sentido de que meu receio não era inteiramente autêntico. Se as dores de Irma tivessem uma base orgânica, também nesse aspecto eu não poderia ser responsabilizado por sua cura; meu tratamento visava apenas a eliminar as dores histéricas. Ocorreu-me, de fato, que eu estava realmente desejando que tivesse havido um diagnóstico errado, pois, se assim fosse, a culpa por minha falta de êxito também estaria eliminada.

Levei-a até à janela para examinar-lhe a garganta. Ela mostrou alguma resistência, como fazem as mulheres com dentaduras postiças. Pensei comigo mesmo que realmente não havia necessidade de ela fazer aquilo. Eu nunca tivera nenhuma oportunidade de examinar a cavidade bucal de Irma. O que ocorreu no sonho fez-me lembrar um exame que eu efetuara algum tempo antes numa governanta: à primeira vista, ela parecera a imagem da beleza juvenil, mas, quando chegou o momento de abrir a boca, ela tomou providências para ocultar suas chapas. Isso levou a lembranças de outros médicos e de pequenos segredos revelados no decurso dos mesmos — sem que isso satisfizesse a nenhuma das partes. “Não havia realmente necessidade de ela fazer aquilo” tencionava, sem dúvida, em primeiro lugar, ser um cumprimento a Irma; mas desconfiei de que teria outro sentido além desse. (Quando se procede atentamente a uma análise, tem-se a sensação de haver ou não esgotado todos os pensamentos antecedentes esperáveis.) A forma pela qual Irma postou-se à janela me fez de repente recordar outra experiência. Irma tinha uma amiga íntima de quem eu fazia uma opinião muito elevada. Quando visitei essa senhora certa noite, encontrei-a perto de uma janela na situação reproduzida no sonho, e seu médico, o mesmo Dr. M., dissera que ela apresentava uma membrana diftérica. A figura do Dr. M. e a membrana reaparecem posteriormente no sonho. Ocorreu-me então que, nos últimos meses, eu tivera todos os motivos para supor que essa outra senhora também fosse histérica.

Na verdade, a própria Irma me revelara involuntariamente esse fato. Que sabia eu de seu estado? Uma coisa, precisamente: que, tal como a Irma de meu sonho, ela sofria de sufocação histérica. Assim, no sonho, eu substituíra minha paciente por sua amiga. Recordei-me, então, de que muitas vezes me entretivera com a idéia de que também ela pudesse pedir-me que a aliviasse de seus sintomas. Eu próprio, contudo, julgara isso improvável,visto que ela era de natureza muito reservada. Era resistente, como apareceu no sonho. Outra razão era que não havia necessidade de ela fazer aquilo: até então, mostrara-se forte o bastante para manejar seu estado sem nenhuma ajuda externa.

Restavam ainda algumas características que eu não podia atribuir nem a Irma, nem a sua amiga: pálida; inchada; dentes postiços. Os dentes postiços levaram-me à governanta que já mencionei; sentia-me agora inclinado a me contentar com dentes estragados. Pensei então numa outra pessoa à qual essas características poderiam estar aludindo.

Mais uma vez, não se tratava de uma das minhas pacientes, nem eu

gostaria de tê-la como tal, pois havia observado que ela ficava acanhada em minha presença e não achava que pudesse vir a ser uma paciente acessível. Era geralmente pálida, e certa vez, quando estava gozando de ótima saúde, parecera inchada. Portanto, eu estivera comparando minha paciente Irma com duas outras pessoas que também teriam sido resistentes ao tratamento.

Qual poderia ter sido a razão de eu a haver trocado, no sonho, por sua amiga? Talvez fosse porque eu teria gostado de trocá-la: talvez sentisse mais simpatia por sua amiga, ou tivesse uma opinião mais elevada sobre a inteligência dela, pois Irma me parecera tola por não haver aceito minha solução. Sua amiga teria sido mais sensata, isto é, teria cedido mais depressa. Assim, teria aberto a boca como devia e me dito mais coisas do que Irma.

O que vi em sua garganta: uma placa branca e os ossos turbinados recobertos de crostas. A placa branca fez-me recordar a difterite e tudo mais da amiga de Irma, mas também uma doença grave de minha filha mais velha, quase dois anos antes, e o susto por que passei naqueles dias aflitivos.

As crostas nos ossos turbinados fizeram-me recordar uma preocupação sobre meu próprio estado de saúde. Nessa época, eu vinha fazendo uso freqüente da cocaína para reduzir algumas incômodas inchações nasais, e ficara sabendo alguns dias antes que uma de minhas pacientes, que seguira meu exemplo,desenvolvera uma extensa necrose da membrana mucosa nasal. Eu fora o primeiro a recomendar o emprego da cocaína, em 1885, e essa recomendação trouxera sérias recriminações contra mim. O uso indevido dessa droga havia apressado a morte de um grande amigo meu. Isso ocorrera antes de 1895 [a data do sonho].

Chamei imediatamente o Dr. M., e ele repetiu o exame. Isso correspondia simplesmente à posição ocupada por M. em nosso círculo. Mas o “imediatamente” foi curioso o bastante para exigir uma explicação especial. Fez-me lembrar um evento trágico em minha clínica. Certa feita, eu havia provocado um grave estado tóxico numa paciente, receitando repetidamente o que, na época, era considerado um remédio inofensivo (sulfonal), e recorrera às pressas à assistência e ao apoio de meu colega mais experiente.

Havia um detalhe adicional que confirmou a idéia de que eu tinha esse incidente em mente. Minha paciente — que sucumbiu ao veneno — tinha o mesmo nome que minha filha mais velha. Isso nunca me ocorrera antes, mas me pareceu agora quase que um ato de retaliação do destino. Era como se a substituição de uma pessoa por outra devesse prosseguir noutro sentido: esta Mathilde por aquela Mathilde, olho por olho e dente por dente. Era como se eu viesse coligindo todas as ocasiões de que podia me acusar como prova de falta de conscienciosidade médica.

O Dr. M. estava pálido, tinha o queixo bem escanhoado e claudicava ao andar. Isso era verdade apenas na medida em que sua aparência doentia costumava deixar aflitos os seus amigos. As duas outras características só podiam aplicar-se a outra pessoa. Pensei em meu irmão mais velho, que mora no exterior, tem o rosto escanhoado e com quem, se bem me recordo, o M. do sonho se parecia muito. Tínhamos recebido notícias, alguns dias antes, de que ele estava puxando de uma perna em virtude de uma infecção artrítica no quadril. Devia ter havido alguma razão, refleti, para que eu fundisse essas duas figuras numa só no sonho. Lembrei-me então de que tinha uma razão semelhante para estar mal-humorado com cada um deles: ambos haviam rejeitado certa sugestão que eu lhes fizera havia pouco tempo.

Meu amigo Otto estava agora de pé ao lado da paciente, e meu amigo Leopold a examinava e indicava que havia uma área surda bem abaixo, à esquerda. Meu amigo Leopold era também médico e parente de Otto. Como ambos se haviam especializado no mesmo ramo da medicina, era seu destino competirem um com o outro, e freqüentemente se traçavam comparações entre eles.

Ambos haviam trabalhado como meus assistentes durante anos, quando eu ainda chefiava o departamento de neurologia para pacientes externos de um hospital infantil. Cenas como a representada no sonho muitas vezes ocorreram ali. Enquanto eu discutia o diagnóstico de um caso com Otto, Leopold examinava a criança mais uma vez e fazia alguma contribuição inesperada para nossa decisão. A diferença entre o caráter de ambos era como a existente entre o meirinho Bräsig e seu amigo Karl: um se destacava por sua rapidez, ao passo que o outro era lento, porém seguro.

Se no sonho eu estabelecia um contraste entre Otto e o prudente Leopold, evidentemente o fazia em favor do segundo. A comparação era semelhante à que eu fazia entre minha desobediente paciente Irma e sua amiga, que eu considerava mais sensata do que ela. Percebia então outra das linhas ao longo das quais se ramificava a cadeia de pensamentos no sonho: da criança doente para o hospital infantil. — A área surda bem abaixo, à esquerda parecia-me coincidir em todos os detalhes com um caso específico em que Leopold me impressionara por sua meticulosidade.

Tive também uma idéia vaga sobre algo da ordem de uma afecção metastática, mas isso também pode ter sido uma referência à paciente que eu gostaria de ter em lugar de Irma. Até onde eu pudera julgar, ela havia produzido uma imitação de tuberculose.

Uma parte da pele do ombro esquerdo estava infiltrada.

Vi imediatamente que isso era o reumatismo em meu próprio ombro, que observo invariavelmente quando fico acordado até altas horas da noite. Além disso, as palavras do sonho eram muito ambíguas: “Notei isso, tal como ele…” Ou seja, notei-o em meu próprio corpo.

Impressionou-me também o enunciado incomum: “uma parte da pele estava infiltrada”. Estamos habituados a falar em “infiltração póstero-superior esquerda”, o que se referia ao pulmão e, portanto, mais uma vez, à tuberculose.

Apesar de seu vestido. Isso, de qualquer modo, fora apenas uma interpolação. Naturalmente, costumávamos examinar as crianças no hospital despidas: e isso seria um contraste com a maneira como as pacientes adultas têm de ser examinadas.

Lembrei que se dizia de um famoso clínico que ele jamais fizera um exame físico de seus pacientes a não ser através das roupas. Não consegui ver nada além disso. E francamente, não senti nenhum desejo de penetrar mais a fundo nesse ponto.

O Dr. M. disse: “É um infecção, mas não tem importância. Sobrevirá uma disenteria e a toxina será eliminada.” A princípio, isso me pareceu ridículo. Não obstante, como todo o resto, tinha de ser analisado com cuidado.

Quando passei a investigar mais de perto, pareceu-me ter uma espécie de sentido, apesar de tudo. O que descobri na paciente foi uma difterite local. Lembrei-me de uma discussão, na época da doença de minha filha, sobre difterite e difteria, sendo esta a infecção geral que decorre da difterite local. Leopold indicara a presença de uma infecção geral dessa natureza a partir da existência de uma área surda, que assim poderia ser considerada como um foco metastático.

Eu parecia pensar, é verdade, que essas metástases de fato não ocorrem com a difteria: aquilo me fazia pensar, ante, em piemia.

Não tem importância. Isso foi dito como consolo. Parecia ajustar-se da seguinte forma no contexto: o conteúdo da parte procedente do sonho fora que as dores de minha paciente eram decorrentes de uma grava infecção orgânica. Tive a sensação de que, dessa maneira, eu estava apenas tentando desviar a culpa de mim mesmo.

O tratamento psicológico não podia ser responsabilizado pela persistência de dores diftéricas. Não obstante, experimentei uma sensação de constrangimento por ter inventado uma moléstia tão grave para Irma, apenas para me inocentar. Parecia cruel demais. Assim, precisava de uma certeza de que no fim tudo ficaria bem, e me pareceu que colocar as palavras de consolo precisamente na boca do Dr. M. não fora má escolha.

Assim sendo, porém, eu estava adotando uma atitude superior em relação ao sonho, e isso, por si só exigia explicação.

E por que o consolo era tão disparatado?

Disenteria. Parecia haver alguma idéia teórica remota de que o material mórbido pode ser eliminado pelos intestinos. Seria possível que eu estivesse tentando zombar do espírito fértil do Dr. M. na produção de explicações artificiais e no estabelecimento de ligações patológicas inesperadas? Ocorreu-me então outra coisa relacionada com a disenteria.

Alguns meses antes, eu aceitara o caso de um rapaz com extremas dificuldades associadas à defecação, que fora tratado por outros médicos como um caso de “anemia acompanhada de desnutrição”. Eu havia identificado o caso como histeria, mas não me sentira disposto a tentar nele meu tratamento psicoterápico e o mandara fazer uma viagem marítima.

Alguns dias antes, recebera dele uma carta desesperadora, enviada do Egito, dizendo que ali tivera um novo ataque e que um médico declarara tratar-se de disenteria. Suspeitei que o diagnóstico fosse um erro, por parte de um clínico inexperiente que se deixara enganar pela histeria. Mas não pude deixar de me recriminar por haver colocado meu paciente numa situação em que poderia ter contraído algum mal orgânico além de seu distúrbio intestinal histérico. Além disso, “disenteria” não soa muito diferente de “difteria” — palavra de mau agouro que não ocorreu no sonho.

Sim, pensei comigo mesmo, devo ter zombado do Dr. M. por meio do prognóstico consolador: “Sobreviverá uma disenteria etc.”, pois voltou a me ocorrer que, anos antes, ele próprio me contara uma história divertida de natureza semelhante sobre outro médico. O Dr. M. fora convocado por ele para dar um parecer sobre um paciente gravemente enfermo, e se sentira obrigado a salientar, em virtude da visão muito otimista assumida por seu colega, que encontrara albumina na urina do paciente.

O outro, porém, não se dera absolutamente por achado: “Não tem importância”, dissera, “a albumina logo será eliminada!” — Não pude mais sentir nenhuma dúvida, portanto, de que essa parte do sonho expressava desprezo pelos médicos que não conhecem a histeria. E, como que para confirmar isso, outra idéia cruzou-me a mente: “Será que o Dr. M. se apercebe de que os sintomas de sua paciente (a amiga de Irma) que dão margem ao fervor da tuberculose também têm uma base histérica? Terá ele identificado essa histeria? Ou será que se deixou levar por ela?”

Mas qual poderia ser minha motivação para tratar tão mal esse meu amigo? A questão era muito simples. O Dr. M. concordava tão pouco com minha “solução” quanto a própria Irma. Assim, nesse sonho eu já me havia vingado de duas pessoas: de Irma, com as palavras “Se você ainda sente dores, a culpa é toda sua”, e do Dr. M., com o enunciado do consolo absurdo que pus em sua boca.

Tivemos pronta consciência da origem da infecção. Esse conhecimento instantâneo no sonho foi notável. Só que, pouco antes, não tínhamos tido nenhum conhecimento disso, pois a infecção só foi revelada por Leopold.

Quando ela não estava se sentindo bem, meu amigo Otto lhe aplicara uma injeção. Otto efetivamente me contara que, durante sua curta estada com a família de Irma, fora chamado a um hotel das imediações para aplicar uma injeção em alguém que de repente se sentira mal.

Essas injeções me fizeram recordar mais uma vez meu infeliz amigo que se envenenara com cocaína [ver em [1]]. Eu o havia aconselhado a só usar a droga internamente [isto é, por via oral], enquanto a morfina era retirada; mas ele de imediato se aplicara injeções de cocaína.

Um preparado de propil… propilos… ácido propiônico. Como teria eu chegado a pensar nisso? Na noite anterior, antes de eu redigir o caso clínico e ter o sonho, minha mulher abrira uma garrafa de licor na qual aparecia a palavra “Ananas” e que fora um presente de nosso amigo Otto, pois ele tem o hábito de dar presentes em todas as ocasiões possíveis. Seria de esperar, pensei comigo mesmo, que ele algum dia encontrasse uma esposa para curá-lo desse hábito.

O licor exalava um cheiro tão acentuado de álcool amílico que me recusei a tocá-lo. Minha mulher sugeriu que déssemos a garrafa aos criados, mas eu — com prudência ainda maior — vetei a sugestão, acrescentando, com espírito filantrópico, que não havia necessidade de eles serem envenenados tampouco. O cheiro do álcool amílico (amil…) evidentemente avivou em minha mente a lembrança de toda a seqüência — propil, metil, e assim por diante — e isso explicava o preparado propílico no sonho.

É verdade que efetuei uma substituição no processo: sonhei com propilo depois de ter cheirado amila. Mas as substituições dessa natureza talvez sejam válidas na química orgânica.

Trimetilamina. Vi a fórmula química dessa substância em meu sonho, o que testemunha um grande esforço por parte de minha memória. Além disso, a fórmula estava impressa em negrito, como se tivesse havido um desejo de dar ênfase a alguma parte do contexto como algo de importância muito especial.

Para que era, então, que minha atenção deveria ser assim dirigida pela trimetilamina? Para uma conversa com um outro amigo, que há muitos anos se familiarizara com todos os meus escritos, durante a fase em que eram gerados, tal como eu me familiarizara com os dele.

Na época, ele me havia confiado algumas idéias sobre a questão da química dos processos sexuais e mencionara, entre outras coisas, acreditar que um dos produtos do metabolismo sexual era a trimetilamina. Assim, essa substância me levava à sexualidade, fator ao qual eu atribuía máxima importância na origem dos distúrbios nervosos cuja cura era o meu objetivo.

Minha paciente, Irma, era uma jovem viúva; se eu quisesse encontrar uma desculpa para o fracasso de meu tratamento em seu caso, aquilo a que melhor poderia recorrer era, sem dúvida, o fato de sua viuvez, que os amigos dela ficariam tão contentes em ver modificado. E de que modo quão estranho, pensei comigo, um sonho como esse se concatena! A outra mulher que eu tinha como paciente no sonho em lugar de Irma, era também uma jovem viúva.

Comecei a imaginar por que a fórmula de trimetilamina teria sido tão destacada no sonho. Numerosos assuntos importantes convergiam para aquela única palavra. A trimetilamina era uma alusão não só ao fator imensamente poderoso da sexualidade, como também a uma pessoa cuja concordância eu recordava com prazer sempre que me sentia isolado em minhas opiniões. Com certeza esse amigo, que desempenhou papel tão relevante em minha vida, deveria reaparecer em outros pontos desses fluxos de pensamentos. Sim, pois ele tinha um conhecimento especial das conseqüências das afecções do nariz e de suas cavidades acessórias, e chamara a atenção do mundo científico para algumas notáveis relações entre os ossos tribunais e os órgãos sexuais femininos. (Cf. as três estruturas recurvadas na garganta de Irma.)

Eu tomara providências para que Irma fosse examinada por ele, para ver se suas dores gástricas poderiam ser de origem nasal. Mas ele próprio sofria de rinite supurativa, o que me causava angústia; e houve sem dúvida uma alusão a isso na piemia que me ocorreu vagamente em relação às metástases do sonho.

Injeções como essas não deveriam ser aplicadas de forma tão impensada. Aqui, uma acusação de irreflexão era feita diretamente contra meu amigo Otto. Pareceu-me recordar ter pensado em qualquer coisa da mesma natureza naquela tarde, quando as palavras e a expressão dele pareceram demonstrar que estava tomando partido contra mim. Fora uma idéia mais ou menos assim: “Com que facilidade os pensamentos dele são influenciados! Com que descaso ele tira conclusões apressadas!” — Independentemente disso, essa frase no sonho lembrou-me mais uma vez meu amigo morto, que com tanta pressa recorrera a injeções de cocaína. Como já tive ocasião de dizer, eu nunca havia considerado a idéia de que a droga fosse ministrada por injeções. Notei também que, ao acusar Otto de irreflexão no manuseio de substâncias químicas, eu estava mais uma vez aludindo a história da infeliz Mathilde, que dera margem à mesma acusação contra mim. Aqui, eu estava evidentemente reunindo exemplos de minha conscienciosidade, mas também do inverso.

E, provavelmente, a seringa não estava limpa. Essa era mais uma acusação contra Otto, porém derivada de uma fonte diferente. Ocorre que, na véspera, eu encontrara por acaso o filho de uma velhinha de oitenta e dois anos em que eu tinha de aplicar uma injeção de morfina duas vezes ao dia. No momento, ela se encontrava no campo e, disse-me o filho, estava sofrendo de flebite. Eu logo pensara que deveria ser uma infiltração provocada por uma seringa suja.

Orgulhava-me do fato de, em dois anos, não haver causado uma única infiltração; empenhava-me constantemente em me certificar de que a seringa estava limpa. Em suma, eu era consciencioso. A flebite remeteu-me mais uma vez a minha mulher, que sofrera de trombose durante uma das vezes em que estava grávida, e então me vieram à lembrança três situações semelhantes, envolvendo minha esposa, Irma e a falecida Mathilde. A identidade dessas situações evidentemente me permitira, no sonho, substituir as três figuras entre si.

Acabo de concluir a interpretação do sonho. Enquanto a efetuava, tive certa dificuldade em manter à distância todas as idéias que estavam fadadas a ser provocadas pela comparação entre o conteúdo do sonho e os pensamentos ocultos por trás dele. Entrementes, compreendi o “sentido” do sonho. Tomei consciência de uma intenção posta em prática pelo sonho e que deveria ter sido meu motivo para sonhá-lo. O sonho realizou certos desejos provocados em mim pelos fatos da noite anterior (a notícia que me foi dada por Otto e minha redação do caso clínico.)

Em outras palavras, a conclusão do sonho foi que eu não era responsável pela persistência das dores de Irma, mas sim Otto. De fato, Otto me aborrecera com suas observações sobre a cura incompleta de Irma, e o sonho me proporcionou minha vingança, devolvendo a reprimenda a ele. O sonho me eximiu da responsabilidade pelo estado de Irma, mostrando que este se devia a outros fatores — e produziu toda uma série de razões.

O sonho representou um estado de coisas específico, tal como eu desejaria que fosse. Assim, seu conteúdo foi a realização de um desejo, e seu motivo foi um desejo.

Tudo isso saltou aos olhos. Mas, muitos dos detalhes do sonho também se tornaram inteligíveis para mim do ponto de vista da realização de desejos. Não só me vinguei de Otto por se apressar demais em seu tratamento médico (ao aplicar a injeção), como também me vinguei dele por ter-me dado o licor que tinha cheiro de álcool amílico.

E, no sonho, encontrei uma expressão que ligava as duas reprimendas: a injeção era um preparado de propil. Isso não me satisfez, e levei minha vingança mais longe, estabelecendo um contraste entre ele e seu concorrente mais digno de confiança. Eu parecia estar dizendo: “Gosto mais dele que de você.”

Mas Otto não foi a única pessoa a sofrer os efeitos da minha ira. Vinguei-me também de minha paciente desobediente, trocando-a por outra mais sensata e menos resistente. Também não permiti que o Dr. M. escapasse às conseqüências de sua contradição, mas lhe mostrei, por meio de uma alusão clara, que ele era um ignorante no assunto (“Sobrevirá uma disenteria, etc.”).

Com efeito, eu parecia estar lhe voltando as costas para recorrer a alguém dotado de maiores conhecimentos (a meu amigo que me falara de trimetilamina), tal como me voltara de Irma para sua amiga e de Otto para Leopold. “Levem essa gente daqui! Em vez deles dêem-me três outros de minha escolha! Então ficarei livre dessas recriminações imerecidas!” A falta de fundamento das recriminações me foi provada no sonho de maneira extremamente complexa.

Eu não merecia a culpa pelas dores de Irma, já que ela própria era culpada, por se recusar a aceitar minha solução. Eu não tinha nada a ver com as dores de Irma, já que eram de natureza orgânica e totalmente incuráveis pelo tratamento psicológico. As dores de Irma podiam ser satisfatoriamente explicadas por sua viuvez (cf. a trimetilamina), que eu não tinha meios de alterar.

As dores de Irma tinham sido provocadas pelo fato de Otto ter-lhe aplicado, sem a devida cautela, uma injeção de uma droga inadequada — coisa que eu nunca teria feito. As dores de Irma eram o resultado de uma injeção com agulha suja, tal como a flebite da velhinha de quem eu cuidava — ao passo que eu nunca provoquei nenhum dano com minhas injeções.

Notei, é verdade, que essas explicações das dores de Irma (que contribuíam para me isentar de culpa) não eram inteiramente compatíveis entre si e, a rigor, eram mutuamente excludentes. Toda a apelação — pois o sonho não passara disso — lembrava com nitidez a defesa apresentada pelo homem acusado por um de seus vizinhos de lhe haver devolvido danificada uma chaleira tomada de empréstimo. O acusado asseverou, em primeiro lugar, ter devolvido a chaleira em perfeitas condições; em segundo, que a chaleira tinha um buraco quando a tomara emprestada; e, em terceiro, que jamais pedira emprestada a chaleira a seu vizinho. Tanto melhor: se apenas uma dessas três linhas de defesa fosse aceita como válida, o homem teria de ser absolvido.

Alguns outros temas, que não estavam ligados de forma tão evidente a minha absolvição pela doença de Irma, desempenharam seu papel no sonho: a doença de minha filha e a da minha paciente do mesmo nome, o efeito prejudicial da cocaína, o distúrbio de meu paciente que se encontrava em viagem pelo Egito, minha preocupação com a saúde de minha mulher e de meu irmão e do Dr. M., meus próprios males físicos, e minha aflição por meu amigo ausente que sofria de rinite supurativa.

Mas, ao considerar todas essas coisas, vi que podiam ser todas enfeixadas num único grupo de idéias e rotuladas, por assim dizer, como “interesse por minha própria saúde e pela saúde de outras pessoas — conscienciosidade profissional.” Veio-me à mente a obscura impressão desagradável que experimentara quando Otto me trouxe a notícia do estado de Irma. Esse grupo de idéias que haviam desempenhado um papel no sonho permitiu-me, retrospectivamente, traduzir em palavras aquela impressão passageira. Era como se ele me houvesse dito: “Você não leva seus deveres médicos com a devida seriedade. Você não é consciencioso; não cumpre o que se comprometeu a fazer.”

A partir daí, foi como se esse grupo de idéias se tivesse colocado a minha disposição, para que eu pudesse apresentar provas de como eu era extremamente consciencioso, da profundidade com que me interessava pela saúde de meus parentes, amigos e pacientes.

Foi um fato digno de nota que esse material tenha também incluído algumas lembranças desagradáveis, que mais davam apoio à acusação de meu amigo Otto do que a minha própria defesa. O material era, como se poderia dizer, imparcial; mas, não obstante, havia uma ligação inconfundível entre esse grupo mais amplo de pensamentos subjacentes ao sonho e o tema mais restrito do sonho, que me deu margem ao desejo de ser inocentado da doença de Irma.

Não tenho a pretensão de haver desvendado por completo o sentido desse sonho, nem de que sua interpretação esteja sem lacunas.

Poderia dedicar muito mais tempo a ele, tirar dele outras informações e examinar novos problemas por ele levantados. Eu próprio conheço os pontos a partir dos quais outras linhas de raciocínio poderiam ser seguidas.

Mas as considerações que surgem no caso de cada um de meus próprios sonhos me impedem de prosseguir em meu trabalho interpretativo.

Se alguém se vir tentado a expressar uma condenação apressada de minha reticência, recomendo-lhe que faça a experiência de ser mais franco do que eu. No momento, estou satisfeito com a obtenção dessa parcela de novos conhecimentos. Se adotarmos o método de interpretação de sonhos que aqui indiquei, verificaremos que os sonhos têm mesmo um sentido e estão longe de constituir a expressão de uma atividade fragmentária do cérebro, como têm alegado as autoridades. Quando o trabalho de interpretação se conclui, percebemos que o sonho é a realização de um desejo.”

(e assim o mestre encerrou a análise)

CONFRONTANDO O MESTRE

Sem querer "expressar uma condenação apressda" das reticências do mestre, tão pouco sem querer afrontar o mestre, eu me atrevo a fazer outra leitura desse sonho, seguindo a mesma técnica e cronologia usadas por ele, levando em conta as observações, porém sem a sua crítica que, conforme ele disse nessa mesma obra, a crítica de quem sonha acaba por nos desviar da verdadeira intenção do sonho, afinal o sonho é uma forma do inconsciente comunicar ao consciente o que ele se nega a ver, ou seja a dificuldade de se ver o óbvio.

Diferentemente da forma complacente com que Freud entendeu “sentido” do seu sonho, eu faço uma leitura imparcial do motivo do sonho, que ele creditou a “certos desejos” provocados na noite anterior com a crítica feita por Otto e a redação do caso clínico de Irma.

Freud concluiu que a “finalidade” do sonho foi criar uma complexa justificativa que o eximia das críticas que Otto. Segundo ele o sonho o eximiu da “responsabilidade pelo estado de Irma, mostrando que este se devia a outros fatores — e produziu toda uma série de razões”

Ao meu ver, o mestre se esquivou diante da sua consciência, que através do sonho lhe fazia uma série de acusações, as quais ele não teve coragem de enfrentar, tendo como proteção a auto-crítica, que ele mesmo admite, não raro, ser um fator de desvio dos verdadeiros objetivos dos sonhos.

Ninguém melhor para despertar nossa consciência do que as críticas de um velho amigo, no caso de freud o médico Otto, que fez a consciência dele apresentar uma série de acusações graves, por faltas que ele cometeu e as reconhece nas suas observações, sem se aperceber da gravidade delas:

Freud diz que o sonho o fez recordar:

• A placa branca o fez lembrar “a difterite e tudo mais da amiga de Irma, mas também uma doença grave de minha filha mais velha, quase dois anos antes, e o susto por que passei naqueles dias aflitivos.”

• “as crostas nos ossos turbinados fizeram-me recordar uma preocupação sobre meu próprio estado de saúde. Nessa época, eu vinha fazendo uso freqüente da cocaína para reduzir algumas incômodas inchações nasais,”

• “e que ficara sabendo alguns dias antes que uma de minhas pacientes, que seguira meu exemplo, desenvolvera uma extensa necrose da membrana mucosa nasal.”

• “Que eu fora o primeiro a recomendar o emprego da cocaína, em 1885, e essa recomendação trouxera sérias recriminações contra mim. O uso indevido dessa droga havia apressado a morte de um grande amigo meu.”

• “fez-me lembrar um evento trágico em minha clínica. Certa feita, eu havia provocado um grave estado tóxico numa paciente, receitando repetidamente o que, na época, era considerado um remédio inofensivo (sulfonal), e recorrera às pressas à assistência e ao apoio de meu colega mais experiente”. “Minha paciente — que sucumbiu ao veneno — tinha o mesmo nome que minha filha mais velha. Isso nunca me ocorrera antes, mas me pareceu agora quase que um ato de retaliação do destino. Era como se a substituição de Mathilde por aquela Mathilde”

• “Era como se eu viesse coligindo todas as ocasiões de que podia me acusar como prova de falta de conscienciosidade médica.”

• “Vi imediatamente que isso era o reumatismo em meu próprio ombro, que observo invariavelmente quando fico acordado até altas horas da noite... “uma parte da pele estava infiltrada”. Estamos habituados a falar em “infiltração póstero-superior esquerda”, o que se referia ao pulmão e, portanto, mais uma vez, à tuberculose.”

• Minha paciente, Irma, era uma jovem viúva... o fato de sua viuvez, que os amigos dela ficariam tão contentes em ver modificado.... a outra mulher que eu tinha como paciente no sonho em lugar de Irma, era também uma jovem viúva.

• “Apesar de seu vestido. Isso, de qualquer modo, fora apenas uma interpolação. Naturalmente, costumávamos examinar as crianças no hospital despidas: e isso seria um contraste com a maneira como as pacientes adultas têm de ser examinadas. Lembrei que se dizia de um famoso clínico que ele jamais fizera um exame físico de seus pacientes a não ser através das roupas.”

"Notei, é verdade, que essas explicações das dores de Irma (que contribuíam para me isentar de culpa) não eram inteiramente compatíveis entre si e, a rigor, eram mutuamente excludentes. Toda a apelação — pois o sonho não passara disso — lembrava com nitidez a defesa apresentada pelo homem acusado por um de seus vizinhos de lhe haver devolvido danificada uma chaleira tomada de empréstimo. O acusado asseverou, em primeiro lugar, ter devolvido a chaleira em perfeitas condições; em segundo, que a chaleira tinha um buraco quando a tomara emprestada; e, em terceiro, que jamais pedira emprestada a chaleira a seu vizinho. Tanto melhor: se apenas uma dessas três linhas de defesa fosse aceita como válida, o homem teria de ser absolvido."

"Eu não merecia a culpa pelas dores de Irma, já que ela própria era culpada, por se recusar a aceitar minha solução. Eu não tinha nada a ver com as dores de Irma, já que eram de natureza orgânica e totalmente incuráveis pelo tratamento psicológico. As dores de Irma podiam ser satisfatoriamente explicadas por sua viuvez (cf. a trimetilamina), que eu não tinha meios de alterar. As dores de Irma tinham sido provocadas pelo fato de Otto ter-lhe aplicado, sem a devida cautela, uma injeção de uma droga inadequada — coisa que eu nunca teria feito."

i) Ele admite que mantinha laços muito cordiais de amizade com uma jovem senhora a que prestava tratamento psicanalítico, mas não menciona de imediato que a mesma era viúva e que É fácil compreender que uma relação mista como essa pode constituir uma fonte de muitos sentimentos conturbados no médico, em particular no psicoterapeuta. pela Que o sonho representou a realização de desejos, de como ele gostaria que fosse e que, pelos detalhes, ele entendeu o desenvolvimento do sonho, onde ele não só se vingou de Otto pela crítica, como também se vingou por ele lhe ter-lhe dado um licor que tinha cheiro de álcool amílico, além da comparação que fez entre ele e seu concorrente mais digno de confiança.