'Carpe diem'

E não podíamos pensar em coisas feias. E “qualquer coisa” era coisa feia

Eis que hoje é domingo. Dia do Senhor. “Domenica” para os italianos e “dimanche” para os franceses. E já foi o “dia do Sol”. E ainda o é em inglês: “Sunday”.

Hoje, infelizmente, por ser domingo, também será, no período da tarde, a ocasião da semana mais propícia para a prática do suicídio. Os indutores desse ato extremo serão esses abomináveis programas de televisão. Uma verdadeira tragédia, porque transformaram o domingo num dia “idiotizante”. Sobrará aos sobreviventes o tal do “Fantástico”. Quem não sente “a alma em carne viva”, como diria Nelson Rodrigues, ao ouvir os sons do “Fantástico”?

Entretanto, na nossa infância esse dia tinha outro sabor, ou odor. É bem verdade que, às vezes, era também cerimonioso. Era quando purgávamos nossos pecados. Íamos confessar no sábado e ficávamos em jejum até a comunhão no domingo. E não podíamos pensar em coisas feias. E “qualquer coisa” era coisa feia. Os nossos hormônios tinham de ser sublimados. Tudo era feio. O coração ficava preto quando pensávamos em coisas feias...

Nas aulas de catecismo aprendíamos mais a temer do que a amar a Deus. Com que inveja, naquelas ocasiões, víamos os “protestantes” ir para o recreio. Ficávamos imaginando, pelo barulho, o futebol deles com aquelas bolas de pano, ícones esféricos e emblemáticos da nossa infância.

A professora de catequese só nos falava de pecado, limbo, purgatório e inferno. E demônios. Muitos. E nós, nem aí, ligados que estávamos nos sons da pelada externa. Pelada no sentido futebolístico, é claro.

Certa vez, numa dessas peladas, um sapato adentrou a nossa sala pela janela, em movimento roto-translatório, descrevendo uma parábola, no sentido matemático do termo. Invasão decorrente de um potente e frustrante chute. Talvez por causa daquelas meias de algodão que sapatos escorregadios também engoliam e que, por isso, vivíamos esticando até ficarem com aquelas bocas enormes. E aquele sapato, quebrando o vidro da janela, certamente foi uma coisa engendrada por um demônio que não gostava de futebol. Foi um castigo para os ímpios. Ainda mais em se tratando de um sapato de um pé esquerdo. Coisa sintomaticamente sinistra!

E nós, engolindo as gargalhadas, continuávamos treinando para a confissão e a missa. Alguns, os mais espertinhos, confessavam na igreja de São Bento, pois constava que os padres de lá, já velhinhos, andavam meio surdos e passavam amenas penitências aos pecadores de pensamentos feios...

E a missa, então? Algo inacabável e ininteligível, pois que em latim, como diria Jânio Quadros. Só ficávamos ansiosamente na espera, se entendêssemos, de algo como um “carpe diem” (frase em latim que aprendi posteriormente) para logo podermos, como é dito no nosso adorável dialeto caipira, “carpir no pé” rumo ao supremo prazer do dia: jogar futebol naqueles campinhos de terra, com traves mambembes e sem rede. E, por isso, o gol quase sempre era decidido no grito (“Un país habrá llegado al máximo de su civismo cuando en él se puedan celebrar los partidos de fútbol sin árbitros”, conforme um humorista espanhol, se é que alguém conhece algum espanhol com bom humor).

Voltando ao nosso futebol dominical, às vezes jogávamos no “segundo” e no “primeiro” quadro. O jogo de camisas era único, quando havia (quando não havia, era “camisa” contra “sem-camisa”). E, nas raras vezes em que havia, tínhamos de colocar camisas já suadas, pegajosas e com aquela catinga, numa época de não-existência de desodorantes. Entretanto, éramos felizes. Fedidos, mas felizes.

E, ganhando, empatando ou perdendo, uma nova semana vinha para, ciclicamente, acumularmos novos pensamentos feios.

Não sabíamos que “semana” vem de “sete manhãs”. E que nós, de língua portuguesa, fomos os que mantiveram a denominação dos dias da semana conforme preconizado em primitivo calendário litúrgico: “prima feria”, “secunda feria” até a “sexta feria”; e o sábado, que para os judeus era o dia do descanso. Constantino, no ano 321, mudou a “prima feria” para “Dominicus” (o dia do Senhor). E “feria”, que significava festa, acabou virando feira. E atualmente temos segunda-feira, terça-feira, etc.

Os dias tinham inicialmente a designação dos “planetas” então conhecidos: Sol, Lua, Marte, Mercúrio, Júpiter, Vênus e Saturno. Em inglês ainda temos o sábado como Saturday. Em italiano, temos “domenica, lunedì, martedì, mercoledì, giovedì, venerdì e sabato”. E as designações são similares em espanhol e no francês. Vemos, pois, que o sábado judaico manteve sua forte influência nas línguas latinas. Já em inglês e no alemão, temos outras divindades celtas e germânicas para designação de alguns dias, além da utilização de alguns dos planetas a que nos referimos.

Enfim, independentemente de tudo o que dissemos, domingo é domingo. Um senhor dia!

E, neste dia, a todos: “carpe diem” (“colha o dia”). Aproveitem o dia!

Adalberto Nascimento é engenheiro - (dal@globo.com) - e escreve a cada duas semanas neste espaço.

http://www.cruzeironet.com.br/run/28/242260.shl

Douglas Lara
Enviado por Douglas Lara em 03/12/2006
Código do texto: T308337