Tesouros em vasos de barro
TESOUROS EM VASOS DE BARRO
Prof. Dr. Antônio Mesquita Galvão
Tem gente que não sabe conduzir os passos de sua vida. Outros insistem em gastar mal o seu dinheiro, suas energias, empregando-os em futilidades, em coisas de valor duvidoso, sem somar nada de proveitoso para suas vidas. Uma vida mal direcionada, sem sentido, é causa de todos os males existenciais.
O psicólogo e psiquiatra Viktor Frankl († 1997), um judeu que esteve preso no campo de Auschwitz em 1944, foi o fundador da escola austríaca de logoterapia, uma das dissidências da psicanálise freudiana surgidas em Viena e uma das muitas teorias sobre motivação básica do comportamento humano.
Por logoterapia se entende a psicoterapia centrada no sentido da vida, que nada mais é que a direção que o homem pode dar à sua vida mediante a descoberta do significado que ela possui, a possibilidade de ser livre e responsável. Na falta de um sentido surge o chamado “vazio existencial” que nada mais é que a angústia da pessoa que não tem claro um sentido para sua vida.
Quantas vezes você não se pegou pensando o sentido da vida? O que nos motiva a continuar nossa jornada? Qual o real objetivo de nossa existência? Estas e muitas outras perguntas fazem parte deste grande mistério chamado vida. Transforme sua experiência no mundo algo que possa valer e significar algo, seja exemplo para todos aqueles que o acompanham nesta incrível jornada.
A revista VEJA publicou há algum tempo, matéria sobre uma pesquisa feita nos Estados unidos. Nessa pesquisa foi perguntado o seguinte: Se a pessoa estivesse na presença de Deus, e se ela pudesse lhe fazer apenas uma pergunta, o que indagaria. Quarenta e seis por cento dos entrevistados responderam que perguntariam: “Qual o sentido da vida?”. Isto mostra como há muitas pessoas que não sabem qual a finalidade da vida; não sabem porque vivem. A vida para elas não tem significado. As conseqüências disso são fáceis deduzir. A vida fica vazia; a pessoa não se auto-realiza, não se sente feliz, podendo até chegar a distúrbios psicológicos e mesmo comportamentais.
Recordo, no fim da década de setenta, em uma das palestras dos Cursilhos de Cristandade, era dito que quando o agricultor quer saber para onde sopra o vento, ele joga para o ar um punhado de terra, para assim se orientar. Igualmente é preconizado que se jogue para o alto nosso tempo disponível, nosso dinheiro, nossos esforços e nossa saúde, e assim saberemos para onde está indo a nossa existência. Este é um diagnóstico bem simples para descobrirmos o sentido da nossa vida. Esta forma de observar nossa motivação de viver aponta também para nosso ideal.
Os conteúdos das pregações religiosas revelam que é Deus, e só ele, é capaz de preencher nossos vazios, nossas aspirações e espaços interiores. Hoje há muitas tendências escapistas e alienantes de certos espiritualismos de evasão, que insistem em nos conduzir a caminhos que não levam a nada, e antes disso, nos deprimem, esvaziam e são capazes de confundir nossa mente e encher de sombras o nosso coração. Tais doutrinas do mundo só concorrem para nossa infelicidade.
Entretanto, Jesus nos ensinou claramente qual é o sentido da vida, informando-nos que somos seres imortais, e que vivemos para realizar a nossa própria evolução espiritual. Ele chamou de edificar o Reino dos céus no nosso íntimo. Encontrei o significado da minha vida – disse Frankl – ajudando os outros a descobrirem um sentido para as suas. Em 1951, no seu livro Logos und Existenz (“O logos e a existência”) o psiquiatra completa os fundamentos antropológicos da logoterapia.
O pensamento de Frankl era que a motivação básica do comportamento do indivíduo é uma busca pelo sentido para sua vida e que a finalidade da terapia psicológica deve ser ajudá-lo a encontrar esse significado particular. Escreveu mais de trinta e dois livros sobre análise existencial e logoterapia, traduzidos como o primeiro, em inúmeras línguas. A liberdade de o homem escolher seu próprio destino e o caminho a seguir, em qualquer circunstância deve ser respeitada.
De acordo com a logoterapia (o Logos aqui definido como “significado”), o desejo de encontrar um significado para sua vida é a motivação fundamental no ser humano, uma fundamentação diferente do princípio do prazer proposto por Freud da psicanálise. Para Frankl, a principal preocupação do homem é estabelecer e perseguir um objetivo, e é esta busca que é capaz de dar sentido à sua vida, fazendo para ele valer a pena viver, e não a satisfação de seus instintos e o alívio de tensões como sustenta a psicanálise ortodoxa. Frankl teorizou que o indivíduo pode encontrar um sentido para sua vida por três vias:
1. criando um trabalho ou realizando um feito notável, ou ao
sentir-se responsável por terminar um trabalho que depende
fundamentalmente de seus conhecimentos ou de sua ação;
2. experimentando um valor, algo novo, ou estabelecendo um
novo relacionamento pessoal. Este é também o caso de uma
pessoa que está consciente da responsabilidade que tem em
relação a alguém que a ama e espera por ela;
3. pelo sofrimento, adotando uma atitude em relação a uma dor
inevitável, se tem consciência de que a vida ainda espera
muito de sua contribuição para com os demais. Nestes três
casos, a resposta do indivíduo então deixa de ser a perda de
tempo em conversas e meditação, e se torna a ação correta
e a conduta moral objetiva.
Não se trata, portanto, de um sentido para a vida em termos gerais, mas um sentido pessoal para a vida de cada indivíduo, que este escolhe, mas também pode criar. Há pessoas que julgam ter encontrado o sentido da vida na conquista dos valores transitórios da existência física.
Porém, mais cedo ou mais tarde vão percebendo que esses valores (dinheiro, poder, saúde, fama, prestígio) não guardam a importância que julgavam. E como não temos controle sobre esses valores, cedo ou tarde, sofreremos a perda deles, por várias maneiras. Conforme as circunstâncias, até certo tempo a vida nos dá; depois ela toma aquilo que deu.
Há muitas pessoas que experimentam tantas dificuldades, não conseguem amealhar os valores materiais e se consideram injustiçadas, infelizes. Podemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz. (Platão, séc. IV a.C.).
A vida só pode ser compreendida, olhando-se para trás; mas só pode ser vivida, olhando-se para frente (S. Kierkergaard).
Muitos não sabem construir suas vidas. Eles se esquecem de capitalizar na eternidade, incapazes de adquirir tesouros no céu... Há moradias no céu que nós mesmos construímos. Conta uma fábula que um homem rico morreu e foi para o céu. Caminhando pelas ruas, viu mansões fantásticas. Ao passar por uma delas, o anjo que o acompanhava informou: “Esta casa é do seu jardineiro”. O homem pensou: “Se o jardineiro tem uma mansão dessas, a minha será muito melhor”. Depois de andarem muito, chegaram a umas ruas mais modestas, sem pavimentação, com casas mais simples. O anjo fez uma parada e mostrou uma choupana, dizendo: “Esta é sua casa!”. O ricaço protestou: “A casa do meu jardineiro é uma mandão, e para mim sobra uma choupana?”. Com paciência o anjo informou: “Os materiais para a construção dessas casas são as boas obras mandadas por vocês, lá da terra. Você mandou muito pouco, e só foi possível construir uma casa para você com aquilo que sobrou da moradia do seu jardineiro...”.
Nesta concepção, os tesouros da vida se sinonimizam com as virtudes e com as boas ações que praticamos. A expressão “tesouros em vasos de barro” que titula esta meditação é utilizada pelos especialistas em Bíblia para caracterizar a riqueza das Sagradas Escrituras circulando muitas vezes na sociedade humana, nem sempre digna e ética. Na psicologia emprega-se a mesma expressão para uma referência ao espírito humano (imortal) contido no invólucro perecível (e muitas vezes corrupto) da matéria.
Por sentido de vida entende-se o ato de imprimir à existência um rumo que a valorize, que faça a todos felizes e transmita essa alegria aos demais. Esse sentido constrói os fundamentos de uma vida feliz e produtiva. Uma vida com sentido é algo que se elabora com o tempo, com esforço e dedicação. É saber orientar os passos na direção da felicidade, do convívio, da edificação moral e espiritual, assim como adotar valores morais e ideais pelos quais valha a pena viver e até mesmo morrer se for preciso.
A respeito de viver os valores vivenciais, há um antigo adágio espanhol, que afirma que “a vida é um banquete, embora a maioria dos idiotas ande por aí, morrendo de fome”. Sob esse prisma, viver uma vida com pleno sentido é, entre outras coisas, aproveitar o hoje, para não lamentar depois. A vida, por ser o corolário de realizações, não pode ficar restrita a um modesto aqui-agora, mas deve projetar-se para mais além.
Conta a história que um pescador se dirigiu à beira do mar para dar início a seu dia de trabalho. Ainda estava escuro. Enquanto ele preparava o barco e as redes, tropeçou em um saquinho cheio de pedras, que alguém deixou caído na areia da praia. Contrariado pelo tropeço, começou a jogá-las uma a uma no mar. Nisso amanheceu, e a claridade fez com que ele divisasse melhor as pedrinhas, e constatou que eram pedras preciosas. Só lhe restou uma na mão. Ele sentiu, quase em desespero que, se não tivesse jogado todas as pedras fora, poderia estar rico a partir daquele momento. E se perguntava por que não havia prestado melhor atenção ao saquinho que tivera aos seus pés.
Na vida, a madrugada escura é o tempo que imaturidade e de ignorância que nos assola e atormenta. Fazemos mil coisas erradas sem avaliar as conseqüências. É aí que se situam os erros que iremos lamentar no futuro. O clarear do dia é a iluminação da consciência, a experiência de vida, o conhecimento.
A pedra que restou pode ser vista como a esperança, o dinamismo interior para buscar um sentido para vida, sem esmorecer. Esta é uma parábola que serve para todos. As pedras jogadas foram podem ser nossos bens e riquezas, mas também a saúde, a energia física, o tempo, e principalmente, quem sabe, os valores espirituais, como as amizades, o amor, as relações afetivas, a fé e a esperança.
Há pessoas que não prestam atenção naquilo que fazem, depois passam o resto da vida a lamentar a falta de sentido em suas vidas, chorando por fatos e tempos que não voltam mais. Para desfrutar do sentido real é necessário cuidado, vigilância e eleição de objetivos válidos.
É interessante observar que o assunto “sentido da vida” é tema recorrente na maioria dos cursos de humanismo, classes de auto-ajuda, retiros eclesiais (Cursilho, Emaús, Encontro de Casais, etc.), bem como em atividades de desenvolvimento de recursos humanos. Nesses eventos, a matéria é apresentada de acordo com a ideologia, dinâmica ou dogmática de cada segmento expositor.
Na escola primária aprendemos que na natureza existem três reinos: o vegetal, o mineral e o animal. Para todos os três há um projeto específico de Deus. O vegetal é projetado para ser vegetal, e se realiza desta forma. O mineral, a mesma coisa; no reino animal, os irracionais vêm à vida para servirem de alimento, de montaria, de guarda ou companhia para as pessoas. E pela vida afora eles cumprem a tarefa para a qual foram planejados.
E o animal racional? O homem foi projetado para ser feliz e se realizar? E por que não consegue ser feliz? Simplesmente porque é incapaz de descobrir um sentido para sua vida.
Na vida falamos muito em amor. Amar e ser amado é o sonho de todas as pessoas. A virada do milênio trouxe o ser humano de volta à espiritualidade e à afetividade. O homem moderno busca a Deus do mesmo modo que procura relacionar-se afetivamente com outras pessoas, seja no âmbito da philia, do agápe ou do éros. O tempo do indivíduo “durão”, indiferente ou auto-suficiente, parece que passou definitivamente.
Cada um descobriu que vida com sentido é vida vivida no amor, no encontro, no convívio e na partilha de sentimentos e de expectativas. É sob essa perspectiva que ocorre a descoberta do dinamismo, da cor e da fantasia que envolve a otimização de uma vida que valha a pena ser vivida. Hoje em dia, mesmo sem desenvolver a atitude afetiva em sua integralidade, o ser humano não sabe mais viver sem amar e ser amado. O sentimento faz parte de sua essência.
Os místicos agrupam as coisas boas da vida em luz e bem. Enquanto a primeira serve para iluminar os caminhos, o bem consolida as atividades positivas, as virtudes e as atitudes perfiladas à ética. Nesse particular, não é prudente ser orgulhoso do que temos e do que fazemos. Só em Jesus nos gloriamos, tendo orgulho de pertencer à lista dos amigos dele (Gl 6,14). O cristão só tem motivos de gloriar-se na cruz de Cristo.
Na busca da descoberta do sentido da vida é preciso conhecer o homem todo, vivo em todas as dimensões. Eu tenho um conhecido, um parceiro de caminhada que depois de ler “Construir o Homem e o Mundo”, de Michel Quoist, (Ed. Duas Cidades, 1980) fascinou-se pela teoria onde o ex-padre francês, aborda, com muita sabedoria a respeito das “Duas dimensões do homem”. Nesse contexto, o homem-total seria aquele em relação com Deus e com seus circunstantes. A teoria do autor é boa, e seria ótima se ele somasse à dimensão terrena o si-próprio e o outro. Nesse aspecto, o real sentido da vida é dar mais valor ao que se tem (essência) do que ao que se perdeu (acidental).
Aí, ao invés de duas dimensões, o homem teria três referenciais de encontro: com Deus (que eu te conheça... conforme Santo Agostinho), consigo (gnôti s’eautón = conhece a ti mesmo, de Sócrates) e com o outro, em suas necessidades (eu tive fome e me deste de comer...). O homem se realiza através desses três encontros. Ao encerrar esta reflexão valho-me de uma sentença de Viktor Frankl, que recomenda:
Quem quiser encontrar ou reencontrar a felicidade deve
descobrir o sentido de sua vida (in: Der unbewußte Gott. “O
Deus inconsciente”).
A par da filosofia e da psicanálise agrega-se a atitude da espiritualidade, pois é Deus que dá o crescimento da vida humana na direção do Alto, como ensina São Paulo
Eu plantei, Apolo regou, mas é Deus que dá o crescimento
(1 Cor 3,6).
A natureza nos revela que a seiva é a vida da árvore, escondida dentro da solidez de seu tronco. Assim também o amor é a força, a energia e o dinamismo que movimenta a vida humana, dando-lhe sentido e proporcionando que emerjam daí os valores mais preciosos para o ser, a sociedade e a natureza humana. Como o fruto contém a semente de uma nova árvore, o amor traz consigo o germe de uma vida nova.
Palestra proferida em uma casa de formação em Santa Catarina (Concórdia), abril de 2010. O autor é Biblista, Doutor em Teologia Moral e escritor, com mais de cem obras escritas, entre elas “O sentido da vida – A vida humana em busca dos valores maiores” (em elaboração). Pregador de retiros (padres, leigos, religiosos e casais), novenas e romarias. E-mail para contatos: kerygma.amg@terra.com.br