Jesus, o Logos do Pai

JESUS – O LOGOS DO PAI

Um ensaio de espiritualidade a partir do Prólogo de São João

No logos estava a vida, e a vida era a luz dos homens (Jo 1,4).

Não há dúvidas que o Evangelho de São João é o mais apaixonante de todos, não só por sua conotação mística e teológica, como também pelo impacto do mistério que se descobre a cada página, cada texto, cada verso da narrativa. A maioria dos pesquisadores reputa-o como o texto de maior dificuldade de estudo de todo o Novo Testamento, mas mesmo assim, sua leitura é a mais procurada por quem deseja beber da fonte Jesus Cristo no ponto mais próximo à nascente.

Saindo dos três primeiros, chamados sinóticos, porque se inter-relacionam através de uma verdadeira sinopse, da qual Mc é fonte (os biblistas alemães dizem quelle), temos o Quarto Evangelho completamente diferenciado dos demais, mais aprofundado, com um ponderável tempero teológico, e nem sempre acessível a todos. Foi dito que o evangelista, pela profundidade de seu escrito, fazia altos vôos teológicos, muitas vezes inatingíveis para muitos.

Para caracterizar esses altos vôos, atribuiu-se a São João, a figura de uma águia. Assim, o prólogo de São João, considerado pelos biblistas a página mais sublime do Novo Testamento, constitui-se em um desafio à reflexão e à interpretação dos estudiosos de todos os tempos. Tal construção literária não é encontrada em nenhum outro livro do Novo Testamento.

O Quarto Evangelho foi escrito pelo apóstolo João († 104/5) em grego, entre os anos 95 e 102 de nossa era. É indispensável ao biblista, ou a quem deseja aprofundar-se na ciência bíblica, alguns conhecimentos da língua helênica. Escrito em grego, o Quarto Evangelho tem momentos de relato, mas também de pura poesia. A esse respeito, Orígenes († 253), considerado um dos “pais da Igreja”, afirmou que “... os Evangelhos são a parte escolhida da Escritura, e o Evangelho de João é a primícia dos Evangelhos”.

O TEXTO BÍBLICO

1 No princípio a Palavra (o Logos) já existia: a Palavra estava voltada para Deus, e a Palavra era Deus. 2 No começo ela estava voltada para Deus. 3 Tudo foi feito por meio dela, e, de tudo o que existe, nada foi feito sem ela. 4 Nela estava a vida, e a vida era a luz dos homens. 5 Essa luz brilha nas trevas, e as trevas não conseguiram apagá-la. 6 Apareceu um homem enviado por Deus, que se chamava João. 7 Ele veio como testemunha, para dar testemunho da luz, a fim de que todos acreditassem por meio dele. 8 Ele não era a luz, mas apenas a testemunha da luz. 9 A luz verdadeira, aquela que ilumina todo homem, estava chegando ao mundo. 10 A Palavra estava no mundo, o mundo foi feito por meio dela, mas o mundo não a conheceu11 Ela veio para a sua casa, mas os seus não a receberam. 12 Ela, porém, deu o poder de se tornarem filhos de Deus a todos aqueles que a receberam, isto é, àqueles que acreditam no seu nome. 13 Estes não nasceram do sangue, nem do impulso da carne, nem do desejo do homem, mas nasceram de Deus. 14 E a Palavra se fez homem e habitou entre nós. E nós contemplamos a sua glória: glória do Filho único do Pai, cheio de amor e fidelidade. 15 João dava testemunho dele, proclamando: “Este é aquele, a respeito de quem eu falei: aquele homem que vem depois de mim passou na minha frente, porque existia antes de mim”. 16 Porque da sua plenitude todos nós recebemos, e um amor que corresponde ao seu amor. 17 Porque a lei foi dada por Moisés, mas o amor e a fidelidade vieram através de Jesus Cristo. 18 Ninguém jamais viu a Deus: quem nos revelou Deus foi o Filho único que está junto ao Pai (Jo 1, 1-18)

1. No princípio...

Curiosamente, o Evangelho de São João, começa (1, 1) com a mesma alocução, igualmente reveladora e misteriosa que abre as páginas das Sagradas Escrituras: én arché (Gn 1, 1) que quer dizer no princípio. ou no começo. Isto nos leva a crer que, se no antigo texto, o hagiógrafo refere-se a um princípio (da criação), em que tudo está por fazer, onde Deus vai criar e manifestar seu poder, na nova literatura, o sentido nos leva a concluir que, quando o logos se faz carne, o homem renasce, para a vida nova, abundante, que Jesus veio inaugurar e propiciar. O estudo do logos é uma das questões mais intrincadas do Novo Testamento.

A partir do mistério da palavra criadora que se encarna, autêntica síntese da Boa Notícia, constata-se a complexidade do Quarto Evangelho, relatando de forma análoga ao kérygma das primeiras comunidades cristãs, o mistério do Deus encarnado. No princípio era o Verbo e o Verbo estava em Deus... Deste modo João inicia o Quarto Evangelho, com referência ao princípio de tudo. Se na primeira narrativa é retratada a criação, aqui João transmite à criação a mensagem de Jesus Cristo, que pelo amor do Pai fez-se carne para nos salvar.

O verbete no princípio, nos escritos joaninos torna-se como um hino religioso que exalta a existência de Deus, anterior a todos os eventos humanos, cósmicos e de qualquer espécie de vida. Esse novo princípio refere-se à instauração, no seio da humanidade, dos tempos do Messias, em que a nódoa do pecado é apagada, e em seu lugar os crentes são marcados com o sinal do Cordeiro (cf. Ap 7).

A expressão grega én arché com que São João abre seu evangelho, significa, conforme já vimos, no começo, ou em princípio, como também a partir da fonte, ou no fundamento, capitulando. A Bíblia hebraica (nosso Antigo Testamento) tem início, no Gn 1,1 com a palavra berešit, que quer dizer exatamente o mesmo que o én arché grego, utilizado no Novo Testamento. Para o filósofo Heráclito (†475 a.C.), o arché representava a consistência do ser. João enfatiza o no princípio justamente por causa do ensinamento de algumas escolas rabínicas, para as quais a Lei (a torá) se identificava com a sabedoria de Deus, sendo considerada preexistente, dotada igualmente de um princípio criador.

Situados no mesmo plano desde o princípio, Jesus e o Pai formam, com o Espírito, aquela noção de unidade que conhecemos sob o nome de Santíssima Trindade. Ao dizer “Quem me viu, vê o Pai; ele e eu somos um” (cf. Jo 1, 18; 14,6.9), Jesus está proclamando sua co-eternidade (sem princípio nem fim), junto a Deus, assim como se declara co-igual ao Pai em divindade, poder e dignidade. A compreensão, pelo menos até onde é possível, desse mistério trinitário, pode nos ajudar a compreender as noções fundamentais do prólogo, onde as expressões princípio, logos e glória são chave-de-leitura para todo o texto.

Na verdade, vemos que o prólogo do Quarto Evangelho é constituído de apenas 18 versículos, porém de extrema densidade teológica, cuja compreensão requer unção, entrega e algum conhecimento prévio. Uma das realidades dogmáticas de nossa fé cristã nos diz que “Os Três Divinos são co-eternos, co-iguais, simultâneos e relacionais”. Vendo (e compreendendo, até onde se pode) essa relação de pericórese entre os Três Divinos, é possível entender a ação de Deus, cuja palavra, o logos, se encarna por ação do Espírito. Essa noção é indispensável para a fixação do estudo ora proposto.

2. O Logos...

Histórica e culturalmente, a partir das construções da filosofia clássica, logos retrata a razão divina que atua como princípio ordenador do universo. Heráclito foi o primeiro a utilizar o termo logos com uma dimensão nitidamente metafísica. Quando afirma que “a esse logos jamais haverão de conhecer suficientemente” o efésio, mesmo sendo um pagão, nos leva a penetrar no mistério de Deus, cuja palavra cria e dá vida. Trata-se da afirmação do logos como uma causa imanente de tudo quanto existe.

No Evangelho de João, Jesus Cristo é identificado como o logos encarnado, embora os primeiros cristãos o identificassem como a vontade de Deus, ou a idéia (forma platônica) da mente divina. Jesus é o logos do Pai, a palavra-projeto (v. 1) que se converte em palavra-eficaz-criadora, não sendo só projeto, mas veículo da vontade criadora de Deus (vv. 3s). A importância do logos é que ele transcende o projeto e a criação, revelando-se igualmente palavra-expressão, onde/como manifesta e exprime o amor de Deus pela humanidade. Por fim, ocorre a palavra-comunicação, quando Jesus dá-se a conhecer como luz que brilha (v. 5) e ilumina (v. 9).

Deste modo, intui-se que o logos, conforme nos vem descrito no prólogo, não só se ouve e sente, como também se vê (v. 14), revelando-nos o Pai, da glória e da sabedoria. Dentro do Novo Testamento, é possível distinguir quatro padrões primitivos do pensamento cristológico.

O mais antigo tem dois ângulos: Jesus é mostrado como o profeta do final dos tempos, a serviço de Deus, e também como o Messias, “Filho do Homem”. Na segunda formulação, o Jesus terreno foi considerado um profeta, servo dos últimos dias. Ao mesmo tempo proclamado como Senhor, Cristo e Filho de Deus na sua ressurreição e exaltação. No terceiro padrão, os títulos posteriores à ressurreição de Cristo foram aplicados a Jesus em sua vida terrena.

O propósito era articular a conexão entre o ministério terreno de Jesus e seu papel como salvador. Por fim, no quarto padrão, expressado nos hinos cristológicos da Igreja judaico-helenista (corrente dentro do judaísmo mais ligada à cultura grega), e especialmente a partir de São Paulo (Ef 1, 3-14; Fl 2, 6-11; Cl 1, 15-20) Jesus era identificado com a sabedoria divina, o logos de Deus.

Em Jesus, a expressão logos avança e progride. Primeiramente é força que cria e transforma; depois, é pessoa, gerada (não-criada) que age, distinta do Pai; por fim, é vista como consubstancial ao Pai e a seu Espírito. O certo e indiscutível é que este logos aparece essencialmente como o mediador exclusivo entre Deus e o mundo.

Para o neoplatônico Fílon, o logos que é o maior dom de Deus, bem como sua imagem mais acessível à humanidade, cura a alma, iluminando-a. O Espírito (pnêuma) divino guia os passos do espírito (nous) humano para a verdade. O logos assume, assim, o lugar arquetípico das idéias (noetós) e do cosmo (mundo sensível e inteligível).

Curiosamente, o termo logos só aparece nos escritos do evangelista João. Ali ele é colocado em cinco oportunidades estratégicas, a saber: Jo 1, 1.2.14; 1Jo 1,1 (prólogo das cartas); Ap 19, 13. Na maioria das traduções da língua portuguesa, no trecho do Ap 19, 13, aparece “palavra do Senhor” ou “verbo de Deus”, quando no original encontramos hô logos tou Theou. A palavra de Deus, em toda a Escritura nos traz e revela um rico conteúdo teológico, evidenciando não apenas uma atividade literária, mas também uma atitude dinâmica e prática. Assim, vemos que a palavra de Deus

• é criadora... “Deus disse, faça-se...”(Gn 1, 3. 6, etc.);

• envia em missão (Gn 12, 1);

• é pura como prata (Sl 12, 7);

• é maçã de ouro em bandeja de prata (Pv 25, 11);

• realiza-se para sempre (Is 40, 8);

• como a chuva que cai, não volta sem realizar o que foi

prometido (Is 56, 10s);

• nem só de pão vive o homem, mas da palavra que sai da

boca de Deus (Mt 4, 4);

• quem permanece na palavra (verdade) liberta-se (Jo 8, 31s);

• deve ser pregada oportuna e inoportunamente (2Tm 4, 2);

• João foi perseguido e exilado por causa da palavra (Ap 1, 9).

3. O Logos existia...

Nós sabemos a existência do logos como a presença absoluta e abrangente de Deus. Ignorado por uns, rejeitado por outros (homens, mundo, os seus), adorado pela maioria, Deus, por sua palavra que cria, se encarna e passa a viver no meio da humanidade, tornando-se presença, vida, luz e graça. Lamentavelmente, a aceitação desse logos não é unânime nem uniforme, porque ele é luz, e muitos homens preferem as trevas (cf. Jo 3, 19).

Nos vv. 1 lemos que o logos (a Palavra, o Verbo, conforme a edição que se usar) estava voltado para Deus. Essa afirmação é repetida, por razões enfáticas no v. 2. Esse estar voltado, én prós, no grego tem inúmeros significados, o que ensejou, tempos afora, uma gama de traduções, todas tendentes ao mesmo sentido. Assim, o én prós do evangelho, significa junto de, voltado a, ao lado de, em nome de, por amor a, à maneira de, dentro de.

A expressão (v. 1) o logos estava (junto de/em Deus, estranha ao grego clássico, pois une um verbo de quietude com uma proposição de movimento, admite as diversas traduções possíveis, aludidas linhas atrás. A expressão repete-se no v. 2, reforçando assim a estreita relação do logos com o Pai, dizendo expressamente que o logos era Deus.

Nota-se também que o logos não está fora de Deus, como estão as criaturas: está dentro dele, mas distinto dele. A teologia encontrou nesta designação do logos a forma mais apta para exprimir não apenas a função reveladora, mas também a relação do Filho com o Pai, no mistério da vida de Deus, a Santíssima Trindade.

A primeira preocupação de São João – e isto nos parece bem cristalino – é deixar claro que o logos (Jesus Cristo) é Deus. Ora, depois de demonstrar a divindade do ungido, pela analogia com o Pai, torna-se fácil provar sua eternidade, e existência desde o princípio (preexistência a todas as coisas criadas e não criadas). Só Deus existe desde sempre, sem princípio nem fim. Afirma-se que o logos é Deus. Ora, Deus é eterno. O logos – por ser Deus – é eterno, sem princípio nem fim.

Prosseguindo, o evangelista amplia a argumentação a respeito da divindade do logos, ao dizer que “Tudo foi feito por meio dela (a palavra, o logos) e, de tudo o que existe, nada foi feito sem ela” (v. 3). Em sua linguagem sapiencial, o livro dos Salmos refere-se à palavra criadora de Deus: “Pela palavra de Javé se fez o céu, seus exércitos, pelo sopro de sua boca” (Sl 33, 6).

Fica-nos a certeza, iluminada pela fé, que o logos não é criado, mas passam por ele todas as coisas criadas. Quando o Credo Niceno-constantinopolitano fala em gerado, não-criado, refere-se a Jesus, o logos de Deus, que é gerado no seio de Maria, para se tornar homem, mas não foi criado, pois é eterno. O texto original nos traz uma nuança que escapa à maioria dos tradutores. João afirma kai xoris, autou eguéneto oudá: e sem ele nada subsiste (nada é nascido).

Como logos que existe sempre, Jesus é o mesmo, ontem, hoje e sempre (cf. Hb 13, 8). A plenitude do logos é perene; existe desde sempre: antes da criação, hoje e para sempre. Sobre a existência de Jesus, sua presença desde a criação, Mestre Eckhart († 1328) afirmou que “A criatura, em si mesma, é um puro nada; vive mas não possui existência em si ou por si” (In: A Palavra de Deus. Tubingen, 1927).

Destarte, conforme o místico alemão, fora do logos, que é Jesus filho de Deus, Deus de Deus, luz da luz, nada existe, nada prospera, nada subsiste. O texto de São João é pródigo em relatar sinais de Jesus. Começa revelando-o como o logos do Pai e avança, declarando-o aquele que realiza os sinais.

Os semêion (sinais) de Jesus são muitos, uns taumatúrgicos outros pedagógicos, como por exemplo a retirada dos pombos e ovelhas (cf. Jo 2, 14ss), sinal do povo humilde do recinto do templo, cuja teologia se tornara caduca. Em São João vemos que o logos faz do mundo sua morada (1, 14), para que o homem se levantasse (anástassis) da servidão do pecado e fosse viver com Deus (14, 20) nas moradas eternas (14,2).

4. Uma luz nas trevas

A oposição entre luz e trevas, graça e pecado, cativeiro e libertação é o ponto alto da dialética joanina, e o que mais fascina o leitor e aquele que se atreve a aprofundar-se no estudo do Quarto Evangelho. No ato criador (Gn 1,3s) ocorre a separação da luz e das trevas. O Novo Testamento se encerra, no livro do Apocalipse, com a história da salvação confirmada por uma nova criação (Ap 21, 5), onde Deus é a única luz da humanidade (21, 23).

Cristo, como luz do mundo, se revela como realidade e dom de Deus, seja no cumprimento dos oráculos proféticos, seja em sua presença no meio do povo, na dimensão pastoral, fraterna e escatológica. Quando o anjo vai anunciar o nascimento de Jesus aos pastores, conta o evangelista, que a glória de Deus os envolveu em uma grande luz (cf. Lc 2, 9). Essa teofania vem ao encontro da profecia: “... o povo que andava nas trevas verá uma grande luz” (Is 9, 1).

A evocação misteriosa do poder de Deus se retrata através de uma luz. É por esta razão que os padres conciliares proclamaram Jesus como “Deus de Deus, luz da luz”, ato de fé que toda a Igreja professa desde o século IV. Quem ignora o amor, preconizado por Jesus (cf. Jo 13, 34s) despreza a Deus, rejeita a luz e as trevas tomam conta dele.

Deus é luz e nele não há trevas. Se dizemos que estamos em comunhão com Deus e no entanto andamos nas trevas, somos mentirosos e não colocamos em prática a verdade. Mas se caminhamos na luz, como Deus está na luz, estamos em comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus, o Filho de Deus nos purifica de todo pecado (1Jo 1, 5ss).

A dialética luz e trevas representa a eterna oposição entre o bem e o mal, que ocorre no mundo e no coração do ser humano. Jesus é a vida do ser (cf. Jo 10, 10), essa vida torna-se luz para os homens. Trevas, sombras e escuridão, na Bíblia, são sinônimos de coisas negativas, cuja origem lembra o Maligno. Trevas é o lugar (ou estado) do homem que se acha privado da luz de Deus. A graça de Deus, pelo batismo, inicialmente, retira o homem das trevas (cf. Ef 5, 8; Cl 1, 13).

A partir do v. 5, mais três expressões de ponderável densidade teológica se somam ao estudo do logos, e são luz, (fôs), sombra, (skotós) e vida (dzoé). Quando Jesus anuncia a “vida abundante” (cf. Jo 10,10) que veio trazer, ele usa hina dzoén perísson (uma vida desmedida). A cultura palestina, permeada por toques helenistas, afirmava que “... é preciso andar na luz de Deus” (Is 2, 5); “... tua Palavra é luz para meus passos” (Sl 119, 105).

Jesus se apresenta como luz, e uma luz que é sinônimo de vida: “... eu sou a luz do mundo! quem me segue não anda nas trevas!” (Jo 8, 12). Os vv. 4-9 falam em Jesus, o logos do Pai, como aquele que é portador da vida: “Nele estava a vida e a vida era luz dos homens...”.

Bem no final (v. 5) lemos, com relação ao confronto trevas e luz, dizendo que as trevas não a (à luz) extinguiram. O verbo tem vários outros sentidos, entre eles, prevalecer, entender, subjugar, apropriar-se, etc.. Desde o princípio, a luz de Deus suplanta as trevas do caos.

Enquanto as trevas (o mal) tentam abafar a luz, no futuro a criação renovada, representada pela figura apocalíptica da Jerusalém Celeste, estará despida de toda a luz humana, mas iluminada tão-somente pela luminosidade do trono de Deus e do Cordeiro: “A cidade não precisa de sol nem de lua para ficar iluminada, pois a glória de Deus a iluminará e sua lâmpada é o Cordeiro” (Ap. 21, 23).

O evangelho de São João não cansa de profligar o poder das trevas e da morte, revelando a superveniência da luz, da verdade e da vida. No v. 9 vemo-lo falando em a luz verdadeira, referindo-se a Cristo, luz que ilumina toda a humanidade, pois homem algum fica excluído da graça de Deus.

A função pedagógica do prólogo do Quarto Evangelho é mostrar o lado negativo, como o pecado (não receberam o logos), as trevas e o desprezo à verdade, mas também revelar o bem de Deus, como o logos é luz, vida e verdade. Quem está nas trevas carece de vida, vive numa iminência de morte, mas se se tornar dócil á Palavra, é possível mudar, abandonando as trevas-morte, passando para a luz-vida, num autêntico nascer de novo (cf. Jo 3, 3), uma anástassis (ressurreição, cf. 5, 25).

O desejo de Deus, desde o princípio, mesmo antes de criar, é que o homem tenha vida e luz.

No prólogo o verbete luz aparece seis vezes nos primeiros nove versículos, o que evidencia a intenção do evangelista em unir os juízos logos e fôs; Palavra e Luz, legítimos atributos da dzoé, a vida permanente e abundante que a divindade, fazendo-se carne, quer perpassar à humanidade.

5. Um homem chamado João

Aqui cabe análise à atividade de um homem, que veio à frente, como um precursor, para preparar os caminhos de Jesus: João, filho de Isabel e Zacarias, que teve a expressão batista agregada ao nome. Na verdade, batista quer dizer “aquele que batiza”, e longe de ser um nome, como os tantos João Batista que conhecemos hoje, revela sua função:

Apareceu um homem enviado por Deus, que se chamava João. Ele veio como testemunha, para dar testemunho da luz, a fim de que todos acreditassem por meio dele. Ele não era a luz, mas apenas a testemunha da luz (Jo 1,6ss).

Ao dizer que apareceu um homem, o evangelista frisa um mandato especial, enviado por Deus, além do objetivo específico de sua missão: dar testemunho da luz. A missão de João, conferida por Deus, era dar testemunho, ou seja, declarar-se em favor da luz João está encarregado de apontar a possibilidade da vida, despertando em todos o desejo e a esperança Por meio de João saber-se-á que existe a zona da luz e que vai ser possível escapar das trevas.

Personagem importante do início da vida pública de Jesus e da fase vestibular do evangelho, João Batista é aí colocado como uma sentinela colocada no alto da muralha pronto para anunciar que o dia vai nascer, que o sol está pronto a dissipar as trevas (cf. Sl 130, 6s; Jr 31, 6). Ele prega uma radical metánoia, ou seja, uma mudança de vida, a partir do coração (cf. Lc 3, 10-14).

O simbolismo da luz que ele anuncia, metonímia do Deus-encarnado, perpassa todo o Quarto Evangelho. A presença de João Batista no prólogo se firma em um importante pilar, que deve ser o objetivo, hoje, de todo o cristão: não sendo a luz, reconhecer sua importância, dando testemunho dela e refletindo-a ao mundo. Igual a Jesus, ele denunciou o arcaísmo do templo, das tradições, das atitudes dos sacerdotes, dos sacrifícios cruentos, mudando a circuncisão pelo batismo.

6. O Logos e o mundo

O Cristo do evangelho joanino realiza seu ministério quase todo ele em Jerusalém. Nessa coletânea de narrativas, Jesus não fala em parábolas ou frases lapidares, mas expõe a sua doutrina em longos discursos, impregnados da mais pura teologia, que vão direto ao assunto. No prólogo, por exemplo, vamos encontrar referências bem claras à palavra mundo, nos vv. 10 e 11. A Palavra (o logos) estava no mundo, o mundo foi feito por meio dela, mas o mundo não a conheceu. Ela veio para a sua casa, mas os seus não a receberam (Jo 1, 10s).

Culturalmente, vamos encontrar mundo, em Platão, por exemplo, como éon, ou seja, tempo de vida. A expressão cosmos refere-se ao mundo físico, terra, mares, montanhas, etc. No hebraico, mundo aparece como olam há-zeh (duração do mundo). Na Bíblia, o mundo é qualificado, de acordo com o sentido que o hagiógrafo quer lhe emprestar: mundo atual (de Jesus), futuro (da glória de Deus), mundo perverso (Gl 1, 4).

Diz o evangelho que o mundo não recebeu a Jesus. Afinal, mundo, o que é? E por que esse mundo não o recebeu? O mundo é mau? O mundo físico foi criado por Deus como coisa perfeita. Após completar sua obra, o Criador viu que tudo era muito bom. Deste modo, mundo, subentende, na Bíblia, vários sentidos:

• céu e terra (criação de Deus)

manifesta a sabedoria e a generosidade de Deus, que organizou tudo como uma obra de arte, terna, harmoniosa e una (cf. Pv 8, 22-31); esse mundo, segundo alguns modernos especialistas em escatologia, não terá fim, mas será renovado: Deus não criaria tanta beleza e perfeição para destrui-las depois;

• mundo de pecado

é a criação corrompida pelo pecado, egoísmo e intransigência do homem; o mundo de pecado é obra do homem, com violência, morte e crimes contra a natureza; trata-se de um mundo de ambigüidade; esse mundo tem um “príncipe” (o diabo), e terá fim;

• mundo futuro

trata-se do mundo restaurado, os “novos céus e nova terra” (cf. Ap 21) associado à história da salvação; é um mundo de solidariedade, renovado por Jesus, aquele que “tira o pecado do mundo” (cf. Jo 1, 29).

A humanidade, dominada pelo mal se nega a receber a luz e deixar-se interpelar pela Palavra. Em algumas traduções se lê, no v. 11 que veio para o que é seu... Para exprimir esse seu, o evangelista utiliza eís tá ídia, para caracterizar algo de seu, peculiar, como que uma propriedade. Ao invés de “veio para sua casa” o correto da tradução citação “veio para a propriedade dele.

O que seria esse seu? O povo judeu? Israel, como nação? Os judeus do tempo de Jesus seriam mais piedosos que os cristãos de hoje? Os crentes de hoje são mais santos e fiéis que os do antigo “povo escolhido”? Ora, sabemos que o logos estava em Deus e era Deus, assim todo o processo de criação tem nele origem e consequência. Com isto se pode dizer que o mundo criado por ele o rejeitou, o que, convenhamos, é um absurdo. Assim também é absurda a rejeição a ele imposta pelos homens de hoje.

Genericamente, mundo significa o cosmos, o universo criado, a natureza, etc. (17, 5.24), mas também traz consigo uma conotação pejorativa, como algo submetido ao poder de Satanás (12, 31; 14, 30), aquela instância que não se submete ao poder de Deus e teima em não acolher seu Cristo (16, 8-11). Aqui, mundo é o oposto de Céu. O mundo cósmico, composto de rios, florestas, desertos, montanhas, céu e estrelas não rejeitou a Jesus. Desde o AT que o profeta anuncia todos os elementos da criação em constante ato de louvor e adoração a Deus (cf. Dn 3, 52-90).

Quando José e Maria apresentam Jesus, então com oito dias de idade, no templo, a profecia de Simeão caracteriza, não só a atuação de Jesus, mas de todo o cristianismo: sinal de contradição (cf. Lc 2, 34). Por todos os tempos, a fé cristã sempre esteve em choque com o mundo.

Dentro de uma metáfora, o evangelista diz que o logos “veio para sua casa...”, para aquilo que ele fez e suas criaturas houveram por bem dizer-lhe não. Não há dúvidas que o mundo, as pessoas, as coisas e os animais, enfim, toda a criação, pertence a Deus: “Portanto, se vocês me obedecerem e observarem a minha aliança, vocês serão minha propriedade especial, porque a terra toda me pertence” (Ex 19, 5). Jesus apresenta uma proposta de mudança. Ele traz consigo o novum de Deus, e toda a mudança choca, traumatiza e produz medo. Com relação às mudanças, nós as rejeitamos e tememos com a mesma intensidade com que as buscamos. Assim, é bem-aventurado quem não se escandaliza dele (cf. Mt 11, 6).

Jesus veio para o mundo e para os corações, propriedades suas, e estas não o reconheceram como o sumo bem, e por isso não o acolheram, porque, certamente, estavam com outras preocupações, como guerras, disputas, propriedades, competições, vaidades, prazeres, etc. Este é um quadro daquele tempo e também de hoje. Se Jesus chegasse hoje, não teríamos tempo para ele, não o reconheceríamos, assoberbados pela azáfama de nossos afazeres. A Bíblia diz que o mundo, numa idéia geral de humanidade, é a “posse de Deus” (cf. Ex 19, 5).

Quando o Pai, por amor deu seu Filho único para resgate e salvação do mundo (cf. 3, 16; 6, 33), ele tinha em mente o mundo de pessoas, livres e fiéis, capazes de acolher seu Filho, ungido com a missão de libertar, salvar e curar. O Criador espera que esse mundo, isento do pecado e da maldade saiba acolher o Cordeiro, o logos de Deus, para as núpcias eternas (cf. Ap 22).

Quem se recusa – mesmo sendo um simples posseiro neste mundo de Deus – a receber o logos, continuará nas trevas. Quem permanece na escuridão não dá chance que a luz venha a ele, e as trevas crescem cada vez mais. “Assim, se a luz que existe em você é trevas, como serão grandes suas trevas!” (Mt 6, 23).

7. Os filhos de Deus

Há um processo dialético, onde teses opostas, como luzes e trevas, graça e pecado, Deus e o mundo, se confrontam. Tal forma de raciocínio filosófico tão comum no Quarto Evangelho serve para revelar dois comportamentos distintos da humanidade: uns acolheram a Jesus e outros não. “A Palavra (o logos), porém, deu o poder de se tornarem filhos de Deus a todos aqueles que a receberam, isto é, àqueles que acreditam no seu nome” (v. 12)

Os que se dispõem a acolher a Jesus, em suas vidas, em seus corações, esses recebem – diz o Evangelho – o poder de se tornarem filhos de Deus. É bom notar que esse incomensurável dom não se trata de uma possibilidade ou da faculdade de, conforme o andamento da história, de se tornarem filhos de Deus, mas de eksousia, um poder, algo bem mais radical, iminente e eficaz. O processo de semelhança ao Pai é paralelo e indissociável da identificação com Jesus. “Quem me recebe, recebe aquele que me enviou...” (13, 20).

A expressão filhos de Deus, na carta aos romanos, aparece cinco vezes, de onde destacamos: “Os que são guiados pelo Espírito Santo são filhos de Deus” (Rm 8, 14). Ser filho de Deus é ser irmão do Filho, cidadão do Reino, herdeiro das promessas, bem como crer e professar sua fé na Santíssima Trindade. Escutar a voz de Deus é estar atento à sua passagem, receber, acolher o dom. Jesus, o logos do Pai, veio revelar o nome de Deus aos homens (cf. Jo 17, 6). Assim, os que crêem em Jesus, e acolhem sua palavra, serão exaltados e chamados de téckna theou (filhos de Deus). Ora, se são filhos de Deus são também filhos da ressurreição (cf. Lc 20, 36).

No Quarto Evangelho a teologia da filiação divina aparece como um ponderável divisor de águas, entre o formalismo judaico e a opção apaixonada do cristianismo. Jesus diz que “é preciso renascer”, pelo batismo, para efetivamente fazer jus a essa filiação (cf. Jo 3, 5). Embora uma parte da humanidade ignore o logos (cf. 1Jo 3, 1) essa vida de filhos de Deus é uma realidade, atual, revelada e comprometedora. “Todos são filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo” (Gl 3, 26).

O dinamismo, contido na expressão filhos, dá uma conotação solene à frase: o ato de acolher o logos confere, àquele que age desta forma, o poder conferido aos filhos de Deus. Essa capacidade é outorgada pelo Pai àqueles que têm a coragem e a generosidade em nascer de Deus (1,13). Existem muitas passagens, respigamos algumas, talvez mais conhecidas:

• ... digam, Pai nosso que estás no céu... (Mt 6, 9);

• ... os pacíficos serão chamados de filhos de Deus (Mt 5, 9);

• ... os caridosos serão filhos de Deus (Lc 6, 35);

• ... os que ressuscitam são filhos de Deus... (Lc 20, 36);

• ... subo para junto de meu Pai, que é Pai de vocês, do meu

Deus que é Deus de vocês... (Jo 20, 17).

O amor e a fraternidade são pré-requisitos para a eficácia dessa filiação: “Quem não pratica a justiça e não ama o irmão, não é filho de Deus” (1Jo 3, 10). Ao ser humano, gerado na carne e no sangue, é impossível livrar-se dessa característica. Aqui, carne, sangue e desejo, indicam, justamente, o aspecto mais negativo da humanidade de cada um, em oposição ao nascimento divino, em corpo e espírito, soma e pneuma.

A transposição de uma realidade (carne) para outra (espírito) exige uma ruptura, chamada “nascer do Alto” (cf. Jo 3, 3), da “água e do espírito” (3, 5) em que o ser, mesmo vivendo carne, que é sua origem, situa-se com os olhos voltados ao alto. O nascer da carne revela uma gênese humana, espontânea. Ao contrário, nascer do espírito (3, 6) quer dizer nascer a partir de uma humanidade resgatada pelo sangue de Jesus, o que o batismo tipifica.

Nascer de Deus equivale, portanto, a nascer do Espírito que procede da carne e do sangue de Jesus, aceitando sua carne e seu sangue, sua vida e sua morte. É somente pelo desígnio de Jesus (carne+sangue+espírito) de dar a vida, que se identifica com o desígnio do Pai (6,39s) e se traduz em sua morte, que é possível ao homem um novo nascimento.

Um filho de Deus, na legítima acepção da palavra, torna-se um vencedor, vive na Luz, com o poder de vencer, a maldade do mundo, o pecado, a morte. A palavra vencedor, niká, aparece várias vezes no NT. “Ao vencedor darei um prêmio: vai sentar-se comigo no meu trono, como eu também venci, e estou sentado com meu Pai no trono dele” (Ap 21).

8. E o Logos se fez homem

O grande mistério da encarnação, que foge à compreensão de todos, reside justamente na constatação de um Deus que deixa o alto dos céus para se tornar homem. Na encarnação de Jesus, vemos a Palavra de Deus, seu logos que no princípio foi criador, fazendo-se homem de carne, como nós, para dar seqüência a seu projeto de redenção dos seres humanos. “E a Palavra se fez homem e habitou entre nós. E nós contemplamos a sua glória: glória do Filho único do Pai, cheio de amor e fidelidade” (v. 14)

Nessa perspectiva, Deus se faz homem para que o homem se divinize. O divino se re-baixa para que o humano se levante. Revestindo-se das características humanas, espiritual e físicas – e este é o ponto axial da encarnação – o logos de Deus assumiu nossas fraquezas, inclusive a morte (cf. Fl 2, 6ss). Em São João, como vimos aqui, a visão é mais otimista, a partir da elevação que Deus brinda a humanidade, quando “o logos se fez carne e habitou entre nós” (v. 14).

O habitou entre nós nos remete àquela idéia do êxodo, quando Deus se fez presença no meio do povo. Habitar é instalar morada e permanecer. Igual à Tenda da Reunião (cf. Ex 33, 7), Jesus se torna, a partir da encarnação da Palavra, o lugar de reunião dos crentes com Deus. O que Javé pediu ao povo, agora começa a acontecer. “Façam um santuário para mim e eu habitarei entre vocês” (Ex 25, 8).

A expressão “filho do homem” tem por base essa encarnação. A vida abundante (cf. Jo 10, 10) que Jesus veio trazer, tira o homem da mediocridade de vida, da vulnerabilidade do pecado e do risco da morte eterna, para torná-lo divino, superior, transcendente. só sendo filho de Deus que o homem se eleva desse jeito. Esta é a síntese do projeto divino.

9. ... e nós vimos a glória de Deus

O Novo Testamento se afigura como o relato maior da glória de Deus a partir de Jesus Cristo. Se de um lado, kabod, a glória de Javé designa o próprio Deus enquanto se revela em majestade e poder, brilho e santidade, dinamismo e benevolência, de outro podemos notar que a fonte revelacional do Novo Testamento aponta para a ligação que se estabelece entre a glória divina e a pessoa de Jesus, em quem a glória de Deus está integralmente depositada.

Ver a glória de Deus é seguir a Jesus, com todas as exigências e todos os compromissos decorrentes desse seguimento. É o servo seguindo o Senhor por toda a parte, em todas as circunstâncias: até à morte (cf. Mt 16, 24; Jo 12, 26) Pela paixão, Jesus entrou na sua glória (cf. Lc 24, 26).

O emprego da palavra glória não mostra tão somente o reflexo eficaz da presença divina sobre alguma realidade humana, assim como expressa a magnitude e proficiência dessa presença. Desde a literatura sapiencial que se pode observar as diversas gradações dadas à expressão glória de Deus, como poder, presença, brilho, amparo, etc. (cf. Sl 3, 4; 19, 2; 24, 7; 26, 8).

Para Jeremias praticar a idolatria é negar o poder e a glória de Deus (cf. Jr 2, 11). Há diversos trechos do NT que reúne juízos concernentes ao logos, à plenitude e à glória de Deus. “Tudo foi feito por meio dela (a palavra, logos) e, de tudo o que existe, nada foi feito sem ela” (v. 3).

Na Antiguidade, a glória de Deus habitava primeiro na tenda e depois no templo. É na plenitude dos tempos (cf. Gl 4, 4) que a encarnação de Deus coloca essa glória no patamar mais elevado. O que os antigos chamavam de kabôd Yahweh, e que naqueles tempos era inacessível à humanidade. Só em Jesus Cristo que Deus se torna visível. É na ressurreição que a glória atinge sua revelação máxima. A partir daí, Deus é glorificado através do Filho (cf. Jo 17, 1). A glória eterna de Cristo (cf.1Pd 5, 10) se manifesta quando ele entrega todas as coisas ao Pai (cf. 1Cor 15, 24-28).

O v. 14 do prólogo tem nuanças bem profundas, capazes de revelar as maravilhas de Deus, mas também, se não forem bem compreendidas, de confundir. O binômio amor e fidelidade do v. 14, encontrado na maioria das traduções da língua portuguesa, aparece no original grego como cháris kai alêtheia, graça e verdade. Talvez o evangelista tenha querido referir-se àquela adoração, em espírito e verdade, aquilo que é esperado dos verdadeiros adoradores (cf. Jo 4, 23).

O mistério da encarnação de Jesus movimenta-se entre dois pólos: dóxa (glória) e kenóssis (despojamento). Quando o Messias nasce, se apresenta, prega e realiza sinais, ressalta-se a glória. Quando ele é rejeitado, perseguido, sofre torturas e morre na cruz, surge a dimensão despojamento. O despojamento é como que uma prova que confere a profundidade da glória. A glória gratuita é fugidia; só a que se constrói dentro de um projeto é que perdura. Sem provação (kenóssis) não há glória (dóxa).

10. Ver a Deus

Toda a vez que conseguimos ver Jesus Cristo, nas várias formas que ele escolheu para estar conosco, todos os dias, até o fim dos tempos (cf. Mt 28, 20), como na Eucaristia (cf. Mc 14, 22ss; 1Cor 11, 24), no evangelho (Mc 13, 31), nos pobres (Mt 25, 31-46), na oração (Mt 18, 20), na Igreja (Ef 3, 21), estamos vendo a Deus, pois ali “...nós contemplamos a sua glória” (v. 14).

A grande verdade é que, o desejo de ver a Deus, olhos-nos-olhos (cf. Is 52, 8), face-a-face (cf. 1Cor 13, 12) brota daquela saudade da casa do Pai, da nostalgia do Paraíso que perpassa toda a Bíblia. É a grande esperança do reencontro. Só Jesus, o Deus filho de Deus viu o Pai e desceu para descrevê-lo, para nós.

O logos torna possível à humanidade ver a Deus. Ele é o intérprete capaz de revelar o Pai. Pela interioridade eterna no seio da divindade, ele é capacitado para mostrar a natureza, a expressão e a vontade do Pai.

Enquanto vivemos na dimensão terrena, Jesus é o comunicador do Pai. Tendo vindo manifestar a glória de Deus à humanidade, ele revela o Pai, até onde podemos compreender. Deus se torna visível através dele. Nesse aspecto há duas afirmações de Jesus que vêm infletir no desejo humano de ver a Deus: “... quem me vê, vê o Pai” (Jo 12, 45); “... o Pai e eu somos um” (Jo 10, 30).

Deus-Pai é um Deus-escondido (cf. Is 45, 15) que se revela à fé de quem crê. Para conhecê-lo é preciso escutar a sua Palavra, acolher o seu Ungido, e ver suas obras. Nas maravilhas da sua criação o que ele tem de invisível se dá a ver (cf. Rm 1, 20).

Quem é capaz de rejeitar o projeto de Deus, ensina o profeta, abraça os ídolos... e não vê nada... (cf. Is 6, 10). Foi Jesus, a palavra semente que, conforme o projeto do Pai se encarnou na humanidade, por obra do Espírito Santo, através do gesto generoso de Maria, tornando- se visível.

No “sermão da montanha” Jesus acena com a possibilidade de os puros de coração verem a Deus. Mais adiante, quando a pregação do Mestre adentra a uma dimensão nitidamente escatológica, ele afirma que o Filho do Homem será visto pelas pessoas de seu tempo (cf. Mt 24, 30), descendo das nuvens com grande poder e glória (cf. Mc 13, 26).

A visão do Ressuscitado não se refere mais ao homem Jesus, mas ao Deus-Jesus, cheio de misericórdia, revestido de toda a sua glória. A presença de Deus, acompanhando seu logos pode se tornar uma realidade palpável em nossa vida: “Se alguém me ama, guarda a minha Palavra e meu Pai o amará. Eu e o Pai viremos e faremos nele nossa morada” (Jo 14, 23). Isto é ver a Deus!

O estudo do prólogo do Quarto Evangelho nos inquieta e interpela a partir do momento que descobrimos nele, de forma cristalina, o projeto de Deus a favor da humanidade. A questão que surge nos remete a algumas reflexões, entre as quais, como acolhemos o logos em nossa vida, como o divulgamos como boa notícia e, sobretudo, como retribuímos, na prática, o amor do Deus encarnado.

O autor é Biblista com especialização em exegese. Filósofo, Doutor em Teologia Moral e Escritor. Publicou mais de 100 livros, no Brasil e Exterior, entre eles “No princípio era o Logos”. Editora O Recado, 2004.