A Igreja e o problema da terra
As questões de terra são tão antigas quanto o próprio homem. A história do êxodo do povo escolhido, do Egito para Canaã não deixa de ser um movimento migratório seguido de tomada de terra. Toda a Palestina era habitada. Ali viviam diversos povos, em campos, lugarejos e cidades-estado. A tradição mostra que Deus fez uma “reforma”, tirando aquela terra dos antigos proprietários, que não utilizavam-na de acordo com o projeto divino, dando-a a um povo escolhido.
De lá para cá, a história está cheia de lutas pela terra, umas pacíficas, outras cooptativas, muitas violentas. No Brasil, três episódios próximos, Mucker e Canudos (século XIX) e Contestado revelam, por detrás da luta do poder oficial contra a influência dos beatos, uma cobiça surda por terras, até então ociosas, cultivadas pelos “vagabundos”, liderados por Jacobina, Conselheiro e João Maria, respectivamente.
Os corifeus neoliberais, muitos ditos cristãos, tacham a reforma agrária e tentativa de mudança de políticas fundiárias de marxismo, subversão, baderna e outros encômios. Falar em “reforma agrária” em certos ambientes celestiais (assim como negar a dogmática validade do Real) é cometer heresia.
Em fins de 97, a Igreja, através do Pontifício Conselho “Justiça e Paz” lançou um documento, “Para uma melhor distribuição da Terra - O desafio da Reforma Agrária”. O documento até estaria a merecer um estudo mais aprofundado, um seminário ou ciclo de debates, tamanha a sua riqueza, da qual respiguei alguns textos:
“O modelo de desenvolvimento das sociedades
industrializadas é capaz de produzir enorme
quantidade de riquezas, mas evidencia graves
insuficiências quando se trata de redistribuir os
frutos e favorecer o crescimento das áreas menos
desenvolvidas” (1).
“Um dos erros principais foi imaginar que a reforma
agrária consiste essencialmente na simples repartição
e atribuição da terra” (7).
“Em muitos casos, os governos não se preocuparam
suficientemente em dotar as zonas de reforma com as
infra-estruturas e os serviços sociais necessários.
Os pequenos agricultores, obrigados e endividar-se,
muitas vezes têm de vender seus direitos e abandonar
a atividade agrícola” (8).
“Outras duas realidades, enfim, concorrem para
desestabilizar sensivelmente o processo de reforma:
uma deplorável série de formas de corrupção,
servilismo político e conluio que levou a conceder
extensões enormes de terra aos membros dos grupos
dirigentes, e a presença de interesses estrangeiros
significativos, preocupados com as conseqüências de
uma reforma para suas atividades econômicas” (8.3).
O documento volta a insistir na utilidade social, na hipoteca que existe em toda a propriedade privada:
“O processo de concentração da terra é julgado um
escândalo porque em nítido contraste com a vontade e
o desígnio salvífico de Deus, enquanto nega à grande
parte da humanidade, o benefício dos frutos da terra”
(27.2).
Muitas dessas idéias já haviam sido ditas por teólogos, sociólogos e estudiosos. Por fim, há um fecho revelador:
“Uma estrutura agrícola caracterizada pela
propriação indébita ou pela concentração de terra no
latifúndio, prejudica gravemente o desenvolvimento
econômico de um país. Essa concentração, a longo
prazo é causa de pobreza e de estragos que tendem a
perpetuar-se, agravando-se” (42).
Esse não é o mais o discurso das “esquerdas marxistas”, mas faz parte do pensamento social da Igreja, oriundo de Roma. E agora?
O autor é Doutor em Teologia Moral, escritor, autor
do livro "Terra, dom de Deus” (Ed. Paulinas, 1994).