Das trevas para a luz (SERMO CXV)
DAS TREVAS PARA A LUZ
Um ensaio de escatologia sobre Vida, Sofrimento, Morte e Ressurreição
Prof. Dr. Antônio Mesquita Galvão
Assim como na vida humana, muitas vezes ocorre aquela dialética onde luz e trevas se alternam e se opõem, igualmente na morte essa curiosa ambivalência de circunstâncias não poderia deixar de acontecer e se manifestar de forma superveniente. Sobre morte há um temor muito grande por parte das pessoas. Garanto que ao escutarem estas palavras ou, posteriormente lerem o texto, muita gente vai torcer o nariz, bater na madeira ou sentir certo constrangimento de quem desaprova o assunto. Sabem o porquê desse temor? Porque muitos não sabem viver. Tememos falar da morte porque não sabemos falar da vida. Por banalizarmos a vida, chegamos ao limiar da morte, cheios de medos e questões mal resolvidas.
A dialética luz e trevas é um tema recorrente em toda a Bíblia, especialmente no Quarto Evangelho, onde São João utiliza esses dois elementos para relatar o eterno confronto entre o bem e o mal. Nessa perspectiva, as sombras parecem albergar tudo que é maligno e nefasto, enquanto a claridade revela as boas obras e as virtudes oriundas da graça e dos dons de Deus. Na profissão de fé na ressurreição de Jesus, a Igreja, através da renovação das luzes do batismo, estabelece um ponderável apelo à conversão e à mudança de vida.
Os evangelhos nos mostram a face resplandecente de Jesus, ao revelar sua divindade na transfiguração, sua fartura ao oferecer a “água viva” à samaritana, e através de tantos sinais que iluminam a vida do mundo. Ao revés desses valores, o império das trevas nos afronta com as tentações da riqueza, da vanglória, da promiscuidade, do consumo desordenado e da infidelidade.
Ao resgatar tantos cegos da escuridão da deficiência e do pecado, Jesus deixa claro que sua práxis é restauradora e – só ela – é capaz de transformar sombras em luz. O ato de enxergar tipifica a fé. Das trevas da morte ecoa o brado dos crentes pedindo que a luz perpétua os ilumine. Dirigindo-se aos cristãos da Igreja em Éfeso, São Paulo alude a essa mudança, ao afirmar que “outrora vocês eram trevas, e agora são luz, no Senhor” (cf. Ef 5,8). Ora, isto evidencia que aqueles que vivem no amor do ressuscitado jamais haverão de sofrer as trevas da exclusão e da morte eterna.
Os que vivem no pecado, escravizados pelas obras da carne, esses já decidiram seu destino depois da morte. Embora Deus seja misericordioso, ele respeita as escolhas e as opções de cada um. Não faz sentido alguém viver nesta vida em contato com as sombras do mal e do pecado, e depois da morte ansiar por um mundo de luz. É um contracenso! Nossa vida futura será a continuação daquilo que vivermos aqui. Uma coisa é consequência da outra.
Os tantos cegos que cruzaram o caminho de Jesus reconheceram duas coisas: primeiro a cegueira que os obrigava a viver na escuridão; depois, o poder divino do Cristo, que só ele era detentor, e capaz de transformar aquele pesadelo em uma luminosa manhã de graça e alegria. O poder de Jesus transforma e regenera. Deste modo, e a escatologia no-lo revela, na morte há trevas e há luz. Os místicos medievais afirmaram que “na morte fechamos os olhos para enxergar melhor”.
Assim como é comum se escutar falar nas “trevas da morte” (e do pecado), também se costuma ouvir falar na “luz da vida” (da graça). Desde o nascimento de Jesus é anunciado – em meio a uma luz brilhante – que o menino que nasceu vai salvar o povo dos seus pecados. Nesse confronto do escuro com o claro se ressalta a dialética do bem e do mal, onde o primeiro tem a unção de Deus e de seu Cristo, enquanto o outro vem atrelado às obras do Maligno. As pessoas, em geral, têm medo do escuro, onde pensam enxergar as manifestações dos maus espíritos, dos íncubos e das almas penadas dos mortos, que vêm atormentar os vivos, aterrorizando a todos com as trevas da morte. Ao contrário, as ações de Deus aparecem claras e manifestas à luz do dia, na claridade meridiana, revelando a obra divina em favor de todo aquele que crê.
Na religiosidade popular podemos encontrar traços de uma espiritualidade cristã primitiva, como também das superstições que não têm nenhum vínculo com o cristianismo. Mais além do fulcro religioso, vemos as manifestações de formas supersticiosas que não mantêm nenhuma ligação com as religiões tradicionais, mas aparecem perfiladas à bruxaria e às crenças idolátricas, sem nenhum compromisso com o espiritual. Por exemplo, vários hotéis e prédios nos Estados Unidos não possuem o 13° andar; é pura superstição atéia e irracional.
Existem crenças em presságios e sinais, originados por acontecimentos ou coincidências fortuitas, sem qualquer relação comprovável com os fatos dos quais se acredita sejam prenúncio. Isto vai além da religião primitiva, em que se cultuam basicamente espíritos que se crê estarem presentes nas coisas e nas forças da natureza; paganismo, magia, feitiçaria. Neste caso, as superstições nos surgem, por derivação em um sentido de crença cega, arraigada e exagerada em alguma coisa, regra ou intuição.
Muitas pessoas se tornam dependentes dessas deturpações do sentimento religioso que determinam comportamentos irracionais, de caráter normativo e preconceituoso. Consistem, essencialmente, na atribuição de causas sobrenaturais a fatos ou fenômenos de ordem natural. Têm um conteúdo defensivo que nasce do medo, cujas raízes se fundem nos arquétipos da história do homem.
Na dialética vida e morte, observa-se que a plenitude do homem interior exige a morte exterior. Francisco de Assis chamava a morte de irmã, pois via nela uma passagem para a vida futura. Cheio do amor de Deus, o místico da Porciúncula não temia a morte, pois via nela um meio de encontrar-se com aquele Deus a quem ele se acostumara a amar e a servir.
Em muitos casos, a tensão entre o viver e o morrer ocorre a partir de uma dúvida ou de uma idéia distorcida que se tem da vida eterna. A confrontação entre o homem interior imortal e o homem exterior mortal, caracteriza a passagem de uma vida para a outra. A morte soa como um drama contra a auto-suficiência do homem que não admite o fim.
C. G. Jung († 1961) afirma que o medo da morte é condição de sobrevivência para o ser humano. Mesmo assim, observa-se que a morte gera um medo, que poderíamos dividir em psíquico e religioso. O psíquico decorre da impotência humana contra a morte, que quebra o ritmo vital. O medo religioso é um medo do inferno e do desconhecido, que não deixa de ser, um medo de Deus. Ora, quem tem plena certeza que na morte vai se encontrar com o Criador, esse não teme a morte, ao contrário, como os santos, anseia pela passagem para a casa do Pai.
As Escrituras, a partir dos primórdios do Antigo Testamento, relatam que no primeiro dia Deus fez a luz (Gn 1,3). É curioso observar que não se trata da luz do sol (natural), pois esta só seria criada no terceiro dia. Então que luz é esta? É a luz de Deus (sobrenatural) que ilumina para sempre a caminhada do homem, cuja vida só tem sentido se for banhada por essa claridade: a luz de Deus. O homem precisa desta luz (cf. Is 59,9), sem a qual se perde em perpétua escuridão. O tema da luz perpassa toda a revelação bíblica, desde o fiat lux (cf. Gn 1,3) até a nova criação que terá em Deus sua própria luz (cf. Ap 21,33). Começava aí um ciclo de vida nova para o universo, pois até então, como informam as Escrituras, o caos e suas trevas imperavam...
O sol não será mais a luz do seu dia, e de noite não será a lua a iluminá-la; o próprio Javé será para você uma luz permanente, e o seu Deus será o seu esplendor. O sol dela jamais vai se por, e a sua lua não terá mais minguante, pois o próprio Javé será para você uma luz permanente (Is 60, 19s).
Nas culturas semitas da Palestina, a escuridão era sinal de prisão, no ventre materno, no calabouço e nas garras da morte. A luz é um sinal que aponta para a libertação. A criança que nasce, é dada à luz, assim como quem morre depara-se, no estágio seguinte, com a luz de Deus. Em ambos os casos, luz e liberdade se interpenetram num diálogo amplo e aberto. É por esta razão que o salmista afirma que “ver a luz é viver...” (cf. Sl 49,20).
A escuridão, como ausência da luz, impede que a pessoa se movimente, com o risco de cair, tropeçar ou se bater em alguma coisa. A escuridão delimita a liberdade humana. Por esta razão a escuridão – a falta de luz – é vista como um sinônimo de calamidade (cf. Jó 30,26; Sl 23,4; Is 8,22; Jr 23,10). O verbete luz, conforme estudamos nas Escrituras, aparece no grego como fôs, enquanto no hebraico é ‘or. Na vulgata latina aparece como lux. Para o resto dos justos, humilhado e angustiado, um povo que andava nas trevas (a falta de liberdade no exílio) viu uma grande luz (cf. Is 9,1; 49,9; Mq 7,8s) que é a face da alegria da luz do Deus que liberta, resgata e traz de volta
Envia tua luz e tua verdade: elas me guiarão, e me levarão ao teu monte santo, para a tua moradia (Sl 43,3).
Em seus ensinamentos espirituais a Bíblia diz que a luz é “a veste de Deus” (Sl 104,2) e simboliza sua presença (Ex 13,21); e mais: “o rosto de Deus irradia luz” (Sl 4,7) e esta luz ilumina a caminhada do homem (Sl 27,1). A História Sagrada não cansa de falar nas trevas para os ímpios e a luz plena para os justos (cf. Sb 17,1–18,4). Estes últimos resplandecerão como o céu e os astros, enquanto os pérfidos ficarão para sempre na escuridão do sheôl (Dn 12,3; Sb 3,7). Dentre as pragas do Egito, exceto a morte, a mais assustadora foi a das trevas (cf. Ex 10).
É curioso ler “se a luz for treva” – um paradoxo – “como será espessa essa treva!” Quando, espiritualmente estamos em trevas, estamos como que sentados na região da sombra da morte. Quem não sabe de onde vem e nem para onde vai, esta sem luz e seu destino é a morte. Esta era a situação deste povo descrito em Mateus, até o dia que Jesus apareceu naquele lugar. Foi como uma grande luz que revelou a condição de cada pessoa, todos viram que estavam com problemas. Quando não temos luz, não podemos saber a nossa condição, mas a partir do momento que sou exposto, vejo claramente meus defeitos.
Teologicamente, trevas equivalem a um exílio. Esse exílio hoje seria a distância de Deus, a carência do amor, a falta de sentido para a nossa vida. Conforme afirmou o filósofo judeu-austríaco Martim Buber († 1965), o verdadeiro exílio de Israel começou, não quando o povo experimentou a deportação para longe da pátria, mas quando ele aprendeu a suportar resignadamente os males, quando perdeu a saudade da terra natal e se acomodou com a perda dos referenciais da vida e de suas crenças.
A inter-relação, segundo Buber, envolve o diálogo, o encontro e a responsabilidade, entre duas instâncias ou a relação que existe entre o sujeito e o objeto. No caso do povo judeu, cativo na Babilônia, só foi possível sair das trevas do exílio reacendendo a luz da aurora, através da mensagem de esperança dos profetas e da ação libertadora de Deus.
Há muitos anos conheço e canto a música “Deixa a luz do céu entrar...”, alusiva justamente à claridade que Deus nos manda para dissipar as trevas do pecado. Para banir essa escuridão se deve abrir de par-em-par as portas do nosso coração. No último livro da Bíblia lemos que na Jerusalém Celeste, a metáfora do paraíso, não há luz artificial, pois o próprio Cordeiro é a luz do povo e o sol não vai queimar suas peles:
Não haverá mais noite: ninguém mais vai precisar da luz da
lâmpada, nem da luz do sol. Porque o Senhor Deus vai brilhar
sobre eles, e eles reinarão para sempre (Ap 22,5).
Há na luz da páscoa a referência ao dia da ressurreição, na plena revelação do amor do Deus trinitário... É emocionante, na celebração do “fogo novo” contemplar o círio aceso e o celebrante proclamar: “Eis a luz de Cristo...”. Fiéis, nós contemplamos essa luz que se abre à nossa frente. Por isto nós continuamos seguindo a Cristo através de seus itinerários de luz e liberdade que nos conduzem à vida totalmente nova... o kainós (o novo) de Deus, onde ele nos fala no silêncio
Ninguém acende uma lâmpada para colocá-la debaixo de uma vasilha, e sim para colocá-la no candeeiro, onde ela brilha para todos os que estão em casa. Assim também: que a luz de vocês brilhe diante dos homens...(Mt 5,15).
Diante destas palavras de Jesus eu me pergunto: como eu posso me tornar luz para você ou para o mundo? Como podemos ser instrumentos e fermento de libertação? Começa aí o diálogo da verdadeira espiritualidade, justiça e paz, fé e atitude, quando luz e liberdade se abraçam... Fica claro que nos projetos do Maligno não há luz nem liberdade. Ele adora trevas e escravidão. Só Deus é luz; só nele há luz... Se nós temos luz é porque ele nos “empresta” a sua luz... Só ele é completamente livre... Se desfrutamos alguma liberdade é porque ele nos libertou. O diabo, o “príncipe das trevas” não é livre para mudar, para se converter... Ele é fiel unicamente ao seu projeto de maldição, e dele não pode se afastar (falta-lhe a liberdade e a iluminação para mudar).
Para um adequado encaminhamento de nossa Vida Eterna, é preciso que estejamos equipados com as armas da salvação: a fé, a integridade, a esperança e o conjunto das nossas boas obras. Quando professamos nossa fé, orando o “creio na ressurreição da carne (ou do corpo) estamos afirmando que cremos na obra salvadora de Jesus Cristo e na misericórdia infinita do Pai. Quem crê na ressurreição, rejeita todas as formas de ocultismo, a partir da reencarnação (cardecista) e da transmigração (Hindu-budista).
A antropologia moderna já conseguiu desmitificar a teoria do soma-sema, ou seja, uma concepção órfico-pitagórica, apropriada pelo platonismo, em que o corpo (soma) é sepultura (sema) do espírito. A grande verdade é que a alma separada do corpo não é a vida ideal. Essa discussão onto-teológica é bem anterior às formulações do Magistério da Igreja. Se não houver o debate teológico (debate, não “achismo”), haverá pouca contribuição para a fé. O debate de pontos obscuros da teologia, antes de identificar qualquer divisão ou divergência, revela-se salutar na medida em que a discussão enriquece e é sinal de busca constante.
A falha talvez esteja em conhecer conceitos, mas desconhecer o modo de aplicá-los pastoralmente. Se Deus preserva a natureza, árvores, florestas e mares, criação sua, porque iria desprezar o corpo humano, uma de suas mais perfeitas criações? Deus age com o homem inteiro, ressuscitando-o. A fé da Igreja antiga se observa em alguns pórticos de templos cristãos nas ilhas gregas, onde se lê: Todo o homem nasce, todo o homem morre, todo o homem ressuscita. Surge então a eterna questão: com que corpo ressuscitamos?
Com a morte, é inegável afirmar, uma parte da história da pessoa atinge seu fim. Teologicamente, esse fim repousa em Deus. O homem não chega só perante Deus, mas juntamente com todos e com tudo que compôs a sua realidade humana. Alguém já disse: eu sou eu mais minhas circunstâncias... A ressurreição abrange o homem completo, em todas as suas dimensões. O apóstolo PAULO diz que Deus ressuscita o homem inteiro e não só sua dimensão espiritual:
O que você semeia não é corpo da futura planta que deve nascer, mas simples grão de trigo, ou de qualquer outra espécie. A seguir, Deus lhe dará corpo como quer: ele dá a cada uma das sementes o corpo que lhe é próprio (1Cor 15, 37s).
Na ressurreição o corpo deixa de ser apenas um conjunto de moléculas. Deus ressuscita tudo aquilo que faz parte do ser humano físico, indo até às últimas conseqüências da vida na história. A Bíblia vê o homem em uma grande unidade. Ele é inteiro em suas concretizações essenciais. Os mortos ressuscitam com seus corpos (plenificados, é claro!). Essa plenitude humana, conforme muitos teólogos, ocorre, como veremos adiante, logo após a morte. Na morte o corpo já está ressuscitando...
O corpo glorificado é idêntico (possui a mesma identidade), mas diferente. Tanto assim que o Cristo ressuscitado não foi reconhecido por seus amigos. A mão que teve um dedo amputado “sente saudades” desse dedo, que dói, coça, como buscasse a parte que falta. Imagine-se o corpo sem alma ou a alma sem corpo. Sobre isso temos as palavras de Jesus:
O Espírito é que dá a vida, a carne não serve para nada
(Jo 6, 63).
De fato, é o Espírito (com maiúscula, o Espírito Santo) que ressuscita. Enquanto o espírito humano anima o corpo vivo, o Espírito de Deus ressuscita-o na morte. Por ser fraca e não ter força por si, a carne não serve para nada. Por isso o Espírito vai transformá-la, de carne fraca e corruptível em corpo glorioso. Esse corpo, assim glorificado, volta a tornar-se uma realidade completa com o espírito, pois ambos foram criados juntos para permanecer juntos, em mesma identidade. No mistério da corporeidade, enxergamos esse corpo glorificado, como um corpo crístico, ou seja, transformado pelo Espírito, à semelhança do corpo perfeito de Cristo Ressuscitado.
Enquanto o corpo-carne é aquele corpo de Adão, do homem-barro voltado aos seus projetos próprios, o corpo-espírito é um corpo crístico, perfeito, no ápice de sua curva biológica (há quem afirme em idade de 33 anos), maduro. Na ressurreição, o idoso, o atleta, o feto e o deficiente, todos terão um corpo otimizado, com identidade atômica com o atual. Sobre o corpo com que ressuscitaremos, a Bíblia nos revela, por analogia ao grão de trigo lançado à terra, uma transformação. O corpo espiritual (o soma pneumatikós) tem identidade com o corpo físico que tivemos nesta vida, mas é diferente dele.
A grande verdade é que, se o Senhor criou nossos corpos físicos do nada, não lhe será impossível criar o corpo-espiritual, a que alude São Paulo, igualmente do nada. Não nos parece óbvio? Para o apóstolo-escritor, o homem é sempre uma realidade corporal. A ressurreição, na qual cremos, abrangerá nosso corpo transformado e nossa alma purificada. Alguém, sugestionado, quem sabe, por um livro espírita que leu, pela entrevista de algum médium na televisão, ou uma “manifestação” que pensa ter visto, poderia tentar uma contra-argumentação àquilo que foi enfocado neste trabalho. É bom termos presente que a retórica humana sempre terá elementos, contra ou a favor de algum argumento que se queira defender ou rejeitar. Por isso cabe sempre a advertência do apóstolo dos pagãos:
Examinem tudo e fiquem com aquilo que é bom (1Ts 5, 21).
Humanamente, a morte é uma ruptura. Nela há uma separação, uma ruptura entre o material que perece e o espiritual que perdura. Nesse terreno, também é lícito afirmar que a morte não é vontade de Deus! Quando a gente desconhece as ruas de uma cidade, fica nas mãos do taxista, por exemplo, que dá voltas e mais voltas, só para cobrar mais. Não é esta a realidade? O mesmo sucede com a morte. Quando desconhecemos a escatologia, a doutrina cristã sobre morte e eternidade, facilmente caímos na retórica de médiuns, falsos profetas, pais-de-santo e charlatães.
Tanto é verdade que a morte do homem não é vontade de Deus que, depois da tragédia do pecado, o Criador começa a estabelecer um plano, que vai se concluir a partir da encarnação de Cristo, para resgatar a imortalidade do homem. O homem foi concebido por Deus para ser eterno. A tragédia do pecado é que lhe trouxe, como conseqüência a morte. O pecado original, no entanto, fora do objetivo deste trabalho, não se trata de culpas hereditárias, como nos ensinaram no passado, mas de uma propensão (a fragilidade física e moral) que o ser humano tem para usar mal sua liberdade e assim romper, com Deus, com o outro, com a natureza. E até consigo mesmo.
Jesus se encarna e morre na cruz para que, os que nele crêem, tenham aquela vida em abundância que ele veio trazer (cf. Jo 10, 10), perdida por causa do pecado. Uma vida mortal, entre sobressaltos e sofrimentos, jamais poderia servir de modelo a uma “vida abundante” planejada por Deus desde todo o sempre. A morte na cruz não é um sinal de terror, mas de resgate. No limiar dos tempos do Messias, lemos nas Escrituras que
O povo que vivia nas trevas viu uma grande luz, e para os que viviam na região escura da morte, uma luz muito clara resplandeceu (Is 9, 1; cf. Mt 4, 16).
Trata-se de um trecho indicativo da missão do Messias, libertando o homem das cadeias escuras da morte. Com sua morte e ressurreição ele veio propiciar a ressurreição daqueles que adormeceram em sua amizade. Como afirma F. X. Durvell (In: Cristo, nós e a morte. Ed. Paulinas, 1995):
Essa morte-com-Cristo habita em nós desde já: “Morro a cada dia” (cf. 1Cor 15, 31). A morte de Jesus cumpre sua obra em nós (cf. 2Cor 4, 12). Mora em nós, serena, e dá sentido à nossa vida.
A morte, sem dúvida, é uma ruptura. Por ser transformadora, é ruptura, mas nunca aniquilamento. É a passagem de um estágio vital para outro. Assim como o grão de trigo parece morrer sob a terra, na verdade ele está rompendo a casca para projetar-se na direção da luz, convertendo-se em fruto. Também o feto, morre para a vida intra-uterina, ao mesmo tempo em que nasce para um novo tipo de vida. A morte humana sempre está em íntima relação com o pecado; uma é conseqüência da outra. Por isso, morrer faz parte das realidades humanas:
Há um tempo para nascer e um tempo para morrer (Ecl 3, 2).
Pelo fato de a vida não se extinguir na morte, mas por ter o homem, em si, pela graça de Deus, um hálito de infinito, é preciso preparar a morte. Morremos como vivemos. O Pai sempre respeitará a opção de cada um. Para uma morte cristã é preciso buscar a justiça do Reino, que não é comida ou bebida, mas paz, justiça e alegria no Espírito Santo. Obtendo isso, o resto vem por acréscimo (cf. Mt 6, 33; Rm 14, 17). O homem parece estar sempre preparado para viver mais e mais. E para a ruptura da morte? Está preparado? Com vistas a essa projeção ao infinito é preciso,
(...) ser o bom perfume de Cristo, e Deus, por sua vez, suprirá todas as nossas necessidades, conforme a riqueza dele, em Jesus Cristo (Fl 4,19).
Na verdade, apenas morremos para as coisas materiais (cf. Cl 3, 2). Nossa história, as obras da vida, a descendência, tudo permanece, como sinal de nossa passagem. Ao partirem, os mortos que mais queremos, continuam a viver conosco uma vida quotidiana nos mais simples momentos de nossa vida normal. O amor, como que perpetua sua presença entre nós.
É preciso eliminar os empecilhos para uma libertação total (cf. Cl 3, 5s). Não somos do mundo, mas cidadãos do Reino (cf. Fl 3, 20). Mortos para o pecado, tornamo-nos vivos para Deus (cf. Rm 6, 11.13). Quem morre, porém, na amizade com Deus, na verdade não morre, corta esse círculo vicioso, e passa de uma vida finita para outra eterna. Assim, quando a morte nos entristece, é bom lembrarmos que o grão de trigo precisa morrer para dar frutos, e que o destino da rosa é ser colhida e não ficar no jardim até fenecer e perder suas pétalas. Na morte, em Cristo, a vida não nos é tirada, mas transformada.
O sofrimento purifica. Aceitar o sofrimento como fruto de nossa fragilidade, entregando-o a Deus para nossa purificação, é a maneira de compreender e viver o sentido cristão do sofrimento. Esta é uma forma de enfrentar o sofrimento, fazendo dele uma entrega a Deus, pelos nossos pecados, pelos pecados dos outros, pelas intenções da Igreja. Já que o sofrimento, físico ou moral, em algumas circunstâncias, é inevitável, pode-se fazer dele um instrumento de remissão. Uma ponte para a redenção. A esse respeito, SÃO PAULO, enquanto sofria no cativeiro escreveu:
Eu me alegro por sofrer, por vocês, pois vou completando em minha carne o que faltou nas tribulações de Cristo, a favor do seu corpo que é a Igreja (Cl 1,24).
Para compreender a fragilidade da matéria, que experimenta, pelo tempo ou por outros fatores, uma espécie de falência, tomemos, por exemplo, uma bela maçã que descobrimos em uma árvore qualquer. Dentro de alguns dias, colhida ou não, ela vai entrar em processo de apodrecimento. É seu ciclo vital irreversível. A ovelhinha que admiramos ontem, na exposição de animais, bonita e branquinha, logo ficará velha e, vencido seu prazo médio de vida, morrerá. É sua inevitável falência físico-biológica. A ansiedade materialista – e sobretudo egoísta – que gera o hedonismo e o individualismo, vê na morte, não só a dor da dissolução progressiva do corpo, mas também, e ainda mais, o temor de que tudo se acabe para sempre. Por isso muitos têm horror ao sofrimento e à morte.
A verdade é que o ser humano estuda, aprofunda, especializa-se e tem respostas para tudo. Quase tudo. Não tem respostas para a morte nem para o sofrimento. Como não tem respostas, atribui tudo à vontade de Deus ou – se tiver pendores reencarnacionistas – às penas de seu carma. O sofrimento, conseqüência do pecado, vem nos revelar a contingência da fraqueza humana. Ele pode nos levar à morte, ao desespero ou à purificação. Diante do sofrimento cabe uma atitude pastoral de fé. Não para explicar, que não tem explicação, mas para aceitar. Deus mitiga e muitas vezes cura o sofrimento de quem crê.
A palavra sofrimento é sinônimo de paixão, num sentido de passagem. A palavra grega pasxéin, tem a mesma raiz de páscoa. O sofrimento de quem não crê é muito mais doloroso do que aquele que é entregue a Deus, pois se torna, no meio das dores, um “sinal de salvação” (cf. Fl 1, 28s). Antes de culpar a Deus, atribuindo os sofrimentos à sua vontade, ou creditar tudo aos deslizes das “vidas passadas”, é prudente buscar as tantas razões, físicas, incidentais e biológicas para as nossas enfermidades. Deus não nos dá o sofrimento e a dor, mas nos recompensa se os aceitamos por amor a ele. Toda a redenção, pelo mistério do pecado, está ligada a dor. São Paulo, sempre ele, tem algo muito oportuno a nos dizer a respeito do sofrimento, aceito pelo cristão, como projeção ao futuro:
Penso que os sofrimentos do momento presente não se comparam com a glória futura que deverá ser revelada a nós (Rm 8, 18).
Cabe uma questão oportuna: os santos aceitaram os sofrimentos porque eram santos? Eu prefiro dizer que se santificaram pela aceitação e entrega do sofrimento. Francisco de Assis chamava a dor e a morte de irmãs... O homem de nosso tempo parece buscar mais segurança do que salvação. E o espiritismo investe nessa deficiência. Tendo com freqüência perdido sentido do pecado e do transcendente, a pessoa almeja dominar o mal, seja pela força, ciências ou filosofias. Existencialista, o ateu sentirá a vacuidade e o absurdo da vida de um homem sem esperança de libertação. Trata-se de uma cosmovisão pessimista capaz de repudiar uma salvação “vinda de fora” (de Deus) para transformar seu interior. O homem perde assim muitos referenciais transcendentes.
A Igreja, ensinada pela revelação divina, afirma que o homem foi criado por Deus para um fim feliz, para além dos limites da miséria terrena. A fé cristã ensina que a morte corporal - de que o homem teria sido isento se não tivesse pecado (cf. Rm 5, 21; Tt 1, 15) - será vencida quando o homem for pelo onipotente e misericordioso Salvador, restituído à salvação que, pela culpa do pecado, perdera. Nos escritos inspirados de São Paulo encontramos alguns exemplos de como a força de Deus era capaz de dar-lhe o conforto nos sofrimentos:
Quando sou fraco, então é que sou forte (2Cor 12, 10).
A dor, indiscutivelmente, é um mistério, agregado à fragilidade de nossa carne. Ela pode ter três características:
• purifica (se aceita com espírito cristão de fé e esperança);
• leva o homem a refletir sobre sua fraqueza e finitude;
• pode levar ao desespero e à perdição, se recebida com
revolta, como castigo, ou sem o binômio fé-esperança;
Sobre os temas dor e sofrimento há um significativo texto do papa João Paulo II:
Com vossos sofrimentos, participais na redenção do mundo. Enquanto penso em vós, caros doentes, provados arduamente no corpo e no espírito, queria também dirigir um premente apelo aos Responsáveis da Nação, a fim de que sejam sempre sensíveis e atentos às situações de sofrimento, presentes na sociedade, e que promovam uma solidariedade efetiva e constante. Que o respeito à vida, desde o princípio até seu ocaso natural, constitua o grande tesouro da civilização (Alocução Sede colunas do Templo Espiritual da Igreja, aos doentes. In: L’Osservatore Roman, 03/05/97)
Quando trazemos, para nosso lado, o Cristo que foi humilhado, padeceu e morreu, e que conhece o sofrimento humano, nossas dores se moderam, têm mais sentido, e purificam. A Revelação de Jesus Cristo, garantindo aos seres humanos a esperança de uma vida após a morte, mostra que o homem está destinado ao Infinito. A velha utopia que levou Adão à queda (cf. Gn 3, 5), de certa forma se realiza: o homem vai tornar-se, por obra e graça do Criador, semelhante a ele, voltando ao paraíso perdido:
Vi um céu novo e uma terra nova, porque o primeiro céu e a primeira terra haviam desaparecido e o mar já não existia. Vi a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu do lado de Deus, ornada como uma esposa se enfeita para o esposo. Ouvi uma voz forte do trono, que dizia: “Eis a tenda de Deus entre os homens. Ele levantará sua morada entre eles e eles serão seu povo e o próprio Deus-com-eles será o seu Deus. Enxugará as lágrimas de seus olhos e a morte já não existirá nem haverá luto nem pranto nem fadiga, porque tudo isso já passou (Ap 21, 1-4).
Resumo da pregação em um retiro espiritual para religiosos, em Pernambuco, em abril de 2011. O autor é Teólogo leigo, Biblista, Filósofo e Doutor em Teologia Moral. Escreveu mais de 100 livros, entre eles “O grão de Trigo. Reflexões cristãs sobre a vida depois da morte”. Ed. Ave-Maria, 2000. Prega retiros de espiritualidade para padres, leigos e casais. Assessora workshops de teologia, filosofia e ética.