O QUE É CETICISMO?

"O saber é a inconsciência de ignorar..."

(Fernando Pessoa)

O termo “ceticismo” está em alta nos dias atuais. Não sabemos exatamente as razões que o levaram a emergir com tanta força, mas o certo é que a denotação que é tomada por muitos agora não é a original e, poderíamos dizer, até mesmo falsa. O cético tem sido elogiado como exemplo do pensamento crítico, da honestidade intelectual e da busca pelo conhecimento, mas o surpreendente é que o ceticismo, no seu sentido real, está mais para um inimigo do conhecimento que para um aliado dele. Muitos parecem considerar-se céticos, mesmo sem saber ao certo o que isso quer dizer, e o mais surpreendente é que até mesmo alguns religiosos assim se intitulam, quando os céticos sempre foram, mais até que os materialistas, os maiores inimigos dos teístas. Neste artigo pretendo fazer um pequeno esboço do que é ceticismo, sem adentrar muito nos argumentos céticos, apenas com o intuito de mostrar que muito do que se chama ceticismo por aí não tem nada de ceticismo verdadeiro e que a atitude cética, a verdadeira atitude cética, não seria tão admirada pela maioria das pessoas, mas, no entanto é muito mais radical e destruidora.

Podemos começar distinguindo dois tipos de ceticismo: o ceticismo comum e o ceticismo filosófico. O ceticismo comum não é teórico, mas prático. Não tem argumentos, mas atitudes. Diante de uma afirmação qualquer, o cético comum poderia responder apenas com um “Como você sabe disso?”, ou pode apenas exigir evidências mais fortes para afirmações um tanto quanto duvidosas. Estes são geralmente os que não acreditam em discos-voadores, magia, milagres, paranormalidade, etc. Como se pode ver, o cético comum não tem argumentos contra essas coisas, apenas exigências muito fortes. Não é teórico, mas prático. Além do mais, o cético comum não afirma ser impossível conhecer essas coisas, diferentemente do cético verdadeiro, mas limita-se a dizer que tais coisas não foram comprovadas ou que as evidências para elas são fracas. Geralmente consideram esses como céticos científicos, mas isso é falso. Não existe ceticismo científico e o que assim chamam é apenas o ceticismo comum. Também não vejo motivos para considerar um cético comum como cético realmente. Talvez o seja apenas em sentido conotativo, mas não denotativo. Isso porque o termo deve ser guardado para algo mais específico, que não pode ser descrito por outros conceitos: o cético filosófico. O “cético” comum não é realmente cético, é apenas uma pessoa mais exigente que a maior parte da população. Ele exige evidências mais fortes ou justificações melhores para certas afirmações. Melhor seria dizer que são exigentes, mas não são realmente céticos. Isso porque o cético verdadeiro afirma que nunca podemos conhecer nada, enquanto o cético comum, não. Para estes até podemos conhecer, se tivermos boas evidências ou argumentos.

Para Ernest Sosa, o ceticismo é “a recusa de admitir que existe algum conhecimento ou que se possa provar algo”. Nota-se aqui uma grande diferença do ceticismo comum: enquanto aquele exige argumentos e evidências mais fortes, este afirma que qualquer argumento ou evidência é insuficiente para provar qualquer coisa. Em outras palavras: não podemos saber nada! Se o “cético” comum acredita que somente a ciência pode fornecer conhecimento verdadeiro (perdão pela redundância), o cético filosófico afirma que nem a ciência é capaz disso (embora mesmo neste caso, o cético possa manter uma aparente relação de afinidade com a ciência), mas, diferentemente do “cético” comum, o cético filosófico tem argumentos fortes, não apenas exigências, a favor de sua afirmação. Não só a ciência, mas nada é capaz de nos fornecer algum conhecimento. Não sabemos nada, nunca soubemos nada e nunca saberemos nada! Analisemos vagamente alguns fortes argumentos céticos (de agora em diante usaremos “cético” apenas para o cético filosófico).

Um dos mais fortes argumentos céticos foi construído por um não-cético: o filósofo francês René Descartes. Ele tenta lançar dúvida sobre tudo que pensamos conhecer com segurança usando a hipótese do gênio maligno. De acordo com ela, o mundo e os objetos nele contidos são apenas ilusões criadas por um demônio mau ou brincalhão, ou seja, não corresponde a nada na realidade. Tudo que vemos pode não passar de mera ilusão, mas se assim for, nunca poderemos saber se existe ou não o demônio de Descartes e nunca poderemos saber se existem correspondentes reais das nossas experiências no mundo. Uma versão mais simples é do filósofo norte-americano Hilary Putnam – que também não é cético - conhecida como “o cérebro na cuba” (ou cérebro no tanque). Este argumento lança a hipótese de sermos apenas cérebros em uma cuba, alimentado constantemente com substâncias nutritivas, ligados por fios a um poderoso computador capaz de gerar todo tipo de ilusões perceptivas, capazes de criar, diretamente no nosso cérebro, uma simulação perfeita da realidade. Assim, quando você pensa que está na frente de um computador lendo um artigo sobre cérebros em tanques o que pode realmente estar acontecendo é que alguma pessoa ligou você (que é apenas um cérebro que sequer tem corpo) a um computador que está gerando uma ilusão perfeita. Mas você nunca pode saber se é ou não um cérebro num tanque, portanto, não pode saber que está lendo um texto diante de um computador, porque se você for um cérebro num tanque, não existe nenhum computador na sua frente.

Qualquer semelhança com o filme Matrix não é mera coincidência. É exatamente disso que ele trata: podemos estar ligados a computadores que criam uma realidade ilusória ao nosso redor, mas, diferentemente do mundo Matrix, nunca poderemos saber a verdade na hipótese do cérebro no tanque. Para saber que estamos lendo um texto diante de um computador, que Elvis era um cantor de Rock, que Napoleão perdeu a batalha de Waterloo, que o homem foi à Lua, que o hidrogênio tem apenas um elétron, etc. teríamos que saber com certeza que não somos cérebros em tanques (pois se fôssemos, tudo o que foi dito acima poderia ser falso), mas como não podemos saber que não somos cérebros em tanques, não podemos saber nada dessas coisas, que podem não ter passado de ilusões criadas por um computador. Talvez nunca tenha existido alguém chamado Elvis ou Napoleão, que não passam de ilusões criadas pelo computador. Talvez o que chamamos de hidrogênio seja outra coisa, e o hidrogênio, no mundo real, tenha dois ou mais elétrons. O cético aqui não quer dizer que somos realmente cérebros ligados a um poderoso computador criador de ilusões perfeitas. Claro que eles não acreditam nisso, é apenas uma hipótese. O que o cético quer dizer é que, para conhecermos algo temos que provar que não estamos sonhando ou que esta realidade não é uma ilusão criada por um demônio ou por um computador, mas como isso é impossível, não podemos conhecer nada!

Como se vê, o cérebro no tanque e o demônio de Descartes são argumentos muito fortes contra nossas certezas de que podemos ter conhecimento. A maioria das pessoas que se deparam com esse tipo de argumento prefere ignorá-los, talvez até mesmo pela dificuldade (ou impossibilidade) de provar que estão errados. Outros tentam provar que os argumentos são inválidos ou que são nonsense. Alguém poderia dizer, por exemplo, que não é possível um computador tão poderoso capaz de criar uma ilusão perfeita da realidade. O cético poderia contra argumentar que a nossa crença de que computadores assim não podem existir poderiam estar limitadas à própria ilusão criada pelo computador, que nos criou uma ilusão baseada em uma época bastante atrasada em que coisas do tipo parecem realmente impossíveis. Ou poderia afirmar a hipótese de que a crença de que é impossível sermos cérebros em tanques foi criada pelo próprio computador. De toda forma é impossível saber a verdade sobre a Matrix. Outra pessoa poderia dizer que a conclusão a que o argumento chega, bem como a afirmação geral do ceticismo, é contraditória: se não podemos saber nada, então podemos saber que não podemos saber nada. Sendo assim, podemos saber de alguma coisa: que não podemos saber de nada, o que é logicamente contraditório. Será esta uma boa prova de que o ceticismo é falso?

De acordo com Richard H. Popkin, “O ceticismo era uma capacidade ou atitude mental de opor evidências pró ou contra toda e qualquer pretensão de conhecimento que fosse além daquilo que é aparente, que não dissesse respeito ao que não é evidente”. Dizer que o cético afirma que não podemos conhecer nada pode parecer errado, mas só é confuso. O que os céticos realmente dizem é que não podemos conhecer nada que não seja EVIDENTE. Os céticos não duvidam, por exemplo, que 2+2=4, que eles próprios (os céticos, falando em primeira pessoa) existem, que estão vendo um computador diante de si, porque essas coisas são EVIDENTES, isto é, seriam verdadeiras mesmo que eu fosse um cérebro num tanque! O que o cético diz é que não podemos conhecer coisas do mundo real, ou seja, que estão além das aparências. Eu posso saber que estou vendo um computador na minha frente, porque estou de fato vendo um computador, mas não posso saber que EXISTE realmente um computador na minha frente, pois o computador que vejo pode ser apenas uma ilusão criada por um computador poderoso ou por um demônio mau. Assim sendo, a conclusão de que não podemos conhecer nada não é contraditório com o ceticismo, pois este afirma que não podemos conhecer nada do mundo externo, e esta afirmação não diz respeito ao mundo externo, mesmo que, a princípio, pareça que sim. A conclusão é lógica, portanto, evidente, e disso nem os céticos duvidam.

O ceticismo é uma das mais radicais posturas filosóficas e um dos maiores desafios da epistemologia. No entanto, o que se vê é uma banalização desse conceito, que acaba por esvaziar e turvar o que é realmente o ceticismo. Tomando-o por algo que ele não é, acaba-se por desconhecer a riqueza e a força do argumento cético. O que hoje em dia se conhece comumente como cético pode ser expresso por outros conceitos, no entanto, o cético filosófico, o verdadeiro ceticismo, não pode ser expresso de outra forma, uma vez que este conceito aplica-se apenas a ele de maneira completa. Também é pouco provável que a maioria dos que se consideram céticos teriam a capacidade de abandonar todas as suas crenças, quer seja na religião, na moral, nas ciências, etc. a fim de seguir o verdadeiro ceticismo. De fato, o ceticismo verdadeiro é uma postura iconoclasta para a qual nem todos estão preparados, mesmo que a maioria não saiba como contorna-lo. Abandonar a crença de que existe um mundo externo, na existência de Deus, nas verdades da ciência, nos dogmas da moral, são coisas que exigem uma honestidade intelectual maior do que a que estão acostumados os “céticos” comuns.

Igor Roosevelt
Enviado por Igor Roosevelt em 05/04/2011
Reeditado em 19/04/2012
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