No pecado, o mal vem em ondas [SERMO CXIII]

NO PECADO, O MAL VEM EM ONDAS...

O que comete pecado é escravo do pecado (Jo 8,34)

Olhando o mar, vemos que sua ameaça contra a praia, especialmente em tempos de ressaca, vem em ondas, cada vez maiores, cada vez mais perigosas... Assim como os fatos da vida vêm como a superposição das vagas marinhas, também o mal e o pecado assaltam as pessoas com a pertinácia do mar enfurecido, sem dar tréguas nem chances de defesa, sempre procurando afogar e destruir tudo com as fráguas das enormes vagas. É por isso que se costuma dizer que, no pecado, o mal vem em ondas.

No encontro do ano passado eu falei aqui no pecado de Davi, que depois de ver a mulher de Urias no banho, desejou-a a ponto de seduzi-la, engravidá-la e, para encobrir seus erros, mandou matar o marido na frente de batalha. Na época, perguntamos qual o maior pecado daquela série de desvios, e todos chegamos à conclusão que o maior pecado foi o primeiro – a cobiça – uma vez que dele brotaram todos os demais.

Há equívocos, por aí, como o do Padre Oscar Quevedo, em seu livro "Antes que os demônios voltem" (Ed. Loyola, 1989), onde o jesuíta explica todos os fenômenos atribuídos ao demônio sob o ponto de vista científico (da parapsicologia); nunca sob o prisma espiritual (de um espírito maligno, inimigo). Estes enganos são praticados por todos que. deixando a teologia de lado, vão buscar respostas em outras ciências, verdadeiras ou falsas. Informações daquele tipo bloqueiam a compreensão das forças diabólicas e dificultam a vigilância. O diabo, uma realidade apontada a partir da Bíblia (diábolos, desordeiro) é princípio e autor do pecado e de todo o mal. Ele anda ao nosso redor, como afirma São Pedro, como um leão a procura de alguém para devorar (1Pd 5,9).

Satanás ou Satã (do hebraico, adversário/acusador), e demônio, no grego daimonos, são termos originários da tradição judaico-cristã e geralmente aplicados à manifestação do mal nas religiões monoteístas. A palavra Satanás assim como no árabe shaitan, derivam da raiz semítica šṭn, significando ser hostil, acusar. O talmude utiliza a palavra satan para se referir a adversários ou opositores no sentido geral assim como opositores espirituais. No interior do Brasil, para enfatizar sua maldade, o diabo é referido pelo povo simples como “coisa ruim”, “nefasto”, “chifrudo”, “caramulhão”, “encardido”, etc.

Para o espiritismo, o Seicho-no-iê, as crenças esotéricas e a maioria das filosofias orientais (budismo, hinduísmo, taoísmo) os demônios não existem, mas funcionam apenas como a projeção dos maus pensamentos dos seres humanos. Segundo Freud, também, não existe pecado nem demônios; tudo é fruto de traumas psíquicos e conflitos (complexos) de culpa mal resolvidos. Para os filósofos existencialistas não existe mal nem inferno: isto é apenas a consequência dos atos dos outros. Essa forma de relativizar o mal e o pecado dificulta o aprendizado da graça e facilita as quedas diante das tentações do Maligno.

Pois hoje vamos estudar o pecado sobre outro prisma, a partir do século I de nossa era, na corte de Herodes, que resultou na morte, por decapitação, de João Batista, o profeta dos tempos do Messias, aquele que recomendou que se aplainassem os caminhos do Senhor. O inocente João foi vítima do pecado continuado, que veio em ondas, de várias pessoas.Vamos ao texto?

De fato, Herodes tinha mandado prender João, amarrá-lo e colocá-lo na prisão. Fez isso por causa de Herodíades, a mulher do seu irmão. Porque João dizia a Herodes: “Não é permitido você se casar com ela”. Herodes queria matar João, mas tinha medo da multidão, porque esta considerava João um profeta. Quando chegou o aniversário de Herodes, Salomé, a filha de Herodíades dançou diante de todos, e agradou a Herodes. Então Herodes prometeu com juramento que lhe daria tudo o que ela pedisse. Pressionada pela mãe, ela disse: “Dê-me aqui, num prato, a cabeça de João Batista”. O rei ficou triste, mas por causa do juramento na frente dos convidados, ordenou que atendessem ao pedido dela, e mandou cortar a cabeça de João na prisão. Depois a cabeça foi levada num prato, foi entregue à moça, e esta a levou para a sua mãe (Mt 14, 3-11).

No evangelista Marcos encontramos complementos da narrativa de Mateus, com outros enfoques:

Por isso, Herodíades ficou com raiva de João e queria matá-lo, mas não podia. Com efeito, Herodes tinha medo de João, pois sabia que ele era justo e santo, e por isso o protegia. Gostava de ouvi-lo, embora ficasse embaraçado quando o escutava (Mc 6, 19s).

A filha de Herodíades entrou e dançou, agradando a Herodes e seus convidados. Então o rei disse à moça: “Peça o que quiser e eu darei a você”. E jurou: “Juro que darei qualquer coisa que você me pedir, mesmo que seja a metade do meu reino” (Mc 6,22s).

A moça saiu e perguntou à mãe: “O que vou pedir?” A mãe respondeu: “A cabeça de João Batista”. A moça correu para a sala e pediu ao rei: “Quero que me dês agora, num prato, a cabeça de João Batista” (Mc 6,24s).

A expressão “... mesmo que seja a metade do meu reino” era tradicional em Israel, retratando o encantamento de Assuero por Ester (cf. Est 5,3), em um fato ocorrido no século VI a.C.

Existem vários Herodes, na Bíblia. Na verdade, não se refere a um nome próprio, mas a uma dinastia. Assim, temos Herodes, o Grande (que mandou matar as crianças em Belém), Herodes Antipas, o Tetrarca da Galiléia (que mandou matar João Batista) e Herodes Felipe, o mais obscuro deles.

Em termos de pecado há vários tópicos que se referem ao ódio de Herodíades contra João Batista, a concupiscência, o desejo carnal de Herodes Antipas com relação à moça, a prostituição de Salomé – se dispôs a uma dança sensual, se insinuando ao rei para obter algum favor. A dança dos “sete véus” não é mencionada na Bíblia, apenas consta da tradição. Nela, a dançarina vai retirando os véus, um a um, até ficar nua. Nesse contexto também há que se destacar a fraqueza de Herodes. Ele não pôde resistir aos encantos de Salomé e às maquinações de Herodiádes...

Quem era Herodíades? Ela era uma mulher de origem grega, ex-esposa de Felipe, irmão mais jovem de Herodes Antipas, que seduzida pelo poder e pela riqueza de Antipas, abandonou o marido e passou a viver maritalmente com o Tetrarca, seu cunhado, possivelmente trinta anos mais velho que ela. A rainha tinha uma linhagem nobre. E quem era Salomé? Trata-se da filha de Herodíades e Herodes Felipe, sobrinha e enteada do tetrarca Herodes Antipas na maioria das traduções ela é mencionada apenas como “a filha de Herodíades”.

É interessante notar que alguém “perdeu a cabeça” nessa história Quem? João Batista? Não! Antes dele, Herodes perdeu a cabeça pela beleza e pelas insinuações da sensualidade de Salomé. O pecado e a cobiça também fazem as pessoas perder a cabeça. O decapitado foi João, mas Herodes perdeu a cabeça no sentido de se desviar da moral e do bom senso,

Qual foi o maior pecado nesse drama? Muitos afirmarão que foi o assassinato, quando o rei autorizou a decapitação de João Batista. Outros poderão se referir ao ódio que Herodíades nutria pelo profeta. Há ainda a possibilidade da referência à dança sensual de Salomé, com o intuito de dominar os sentidos do fraco Herodes, levando-o a determinar o crime. Todas estas más ações estão embutidas na trágica trama que resultou na morte do filho de Isabel e Zacarias. De todos esses pecados, qual foi o maior?

A hamartiologia, parte da teologia moral que estuda o pecado, ensina que o pecado maior sempre é o primeiro. É ele que desencadeia, como ondas, os demais. Neste caso, o adultério, o ato de Antipas tomar para si a mulher de seu irmão mais novo, foi o primeiro pecado, aquele que gerou os demais, sendo responsável por todas as trágicas consequências verificadas. Deus não tenta ninguém nem coloca os pecados à nossa frente. Ele não nos criou como adversários, mas como filhos, “parceiros” do mesmo projeto. Ele nos criou a sua imagem e semelhança, de amor, bondade, perdão e justiça.

As pessoas têm uma grande dificuldade de detectar o confronto do bem e do mal porque elaboram uma idéia distorcida a respeito da pessoa de Deus. Elas revestem o Sagrado de uma “sacralidade” que Jesus nunca preconizou. Como reverter essa limitação? Como encontrar uma saída para o problema da fragilidade diante do pecado? Viver uma experiência pessoal (não teórica ou intelectual) de Deus em nossa vida. Para iniciar esta experiência é indispensável a criação de um ponderável senso crítico, para julgar os fatos segundo Deus.

Voltando à história da morte de João Batista, vemos o pecado trazendo o mal em forma de ondas incontroláveis. O pecado do adultério de Herodíades (com Antipas) gerou a justificada denúncia de João. Um profeta estaria negando sua vocação se não denunciasse. Por conta disto, a mulher passou a odiá-lo e a desejar a sua morte. Na festa do aniversário de Herodes, ela instrumentalizou a sensualidade da filha Salomé a fim de seduzir o rei. Este, provavelmente embriagado de vinho, luxúria e vaidade, se deixou levar pela fantasia engendrada por sua mulher, sucumbido ao seu projeto criminoso, e mandou matar o profeta, que estava preso na masmorra do palácio.

O pecado tenta, dia-e-noite, nos dominar e derrotar. É uma luta sem tréguas. Tudo vai num crescendo, como as ondas do mar... Herodíades não teve a coragem (ou o discernimento) de reconhecer que sua raiva contra João era injusta e iria desembocar num fim trágico de dependência ao mal. Nós devemos orar a Deus para que ele nos liberte da dependência do pecado e das más inclinações.

Quem depende não é livre e quem não é livre se torna incapaz de amar e praticar boas ações. João Batista apontou o pecado de Herodes e sua mulher (união ilícita, adulterina), e esta, ao invés de se modificar, acolheu o pecado em seu coração, como verdade e passou a odiar. O ódio é um pecado mortal! Quem odeia se torna dependente desse pecado.

O pecado nos “amarra”, levando-nos à perda de referenciais. É difícil sair sozinho, sem a força que vem de Deus, de um estado de pecado. Para esta libertação é salutar que consideremos a ação dos nossos amigos. Existem “amigos” e amigos. Uns ajudam enquanto outros atrapalham. Vamos ver dois exemplos ocorridos durante a vida pública de Jesus.

O Mestre passava por Jericó e um cego ao pressentir sua presença, começou a clamar por ele, pedindo piedade e cura (cf. Lc 18, 35-42). Os amigos (falsos amigos, por certo) tentaram dissuadi-lo de recorrer à ajuda de Jesus. Esta é a articulação do mal que tenta impedir muita gente a buscar a salvação.

No outro exemplo, que se refere a bons amigos (cf. Lc 5,19) e deve ter ocorrido possivelmente em Cafarnaum, vemos que, na impossibilidade de chegar junto de Jesus, os amigos introduziram o doente abrindo as telhas para que ele pudesse ser curado. Nesse aspecto, cura e salvação tornam-se juízos afins, atuando contra o império do pecado. Os amigos trouxeram o amigo e ele foi curado.

Aqui vou relacionar alguns fatores, quem sabe os mais importantes, entendidos como “atitudes que conduzem ao pecado”. Trata-se de circunstâncias comuns aos dia-a-dia das pessoas. Para atuar preventivamente na preservação da graça, o cristão deve conhecer os caminhos que levam ao pecado.

• a mediocridade de nosso modelo social, onde tudo é

superficial, inexistem valores autênticos, não há ideais; tudo

é futilidade;

• o hedonismo, o valor exagerado aos prazeres e

comodidades, a permissividade moral, a falta de

autenticidade e pureza dos corações;

• o egoísmo como concepção individualista de vida;

• o materialismo, a desmedida preocupação pelos bens

materiais, ostentando, muitas vezes um padrão de vida

ofensivo à indigência de tantos;

• a superficialidade, a falta de vida interior, de encontro

consigo e com Deus, numa época de pouca espiritualidade

ou de uma fé desencarnada, descomprometida; é a filha

predileta da mediocridade;

• o fechamento em si, a rejeição ao assédio da graça de Deus,

autêntico dom de Deus;

• a presunção: “Sou forte, sou religioso, tenho vida espiritual,

isso de pecado é com o pessoal mais fraco...” A esses, São

Paulo adverte: “Quem está de pé cuide-se para não cair!”

(cf. 1Cor 10,12);

• a timidez demasiada, a falsa humildade e a acomodação nas

tomadas de decisão: “sou fraco, sou um pecador, a carne é

fraca...”;

• o desleixo, o abandono da vida espiritual, dos atos de

piedade cristã, a falta de oração, o afastamento da Santa

Missa e dos sacramentos de Cristo.

Como principal conseqüência do pecado encontramos a chamada desordem moral, que se resume em:

• injustiça, dominação, violência

• competição por inveja

• corrupção e presunção

• sexualidade desordenada

• indiferença e ausência de compromisso

O papa Pio XII († 1959) falou, em uma pregação, no Natal de 1946 a respeito da perda do senso do pecado. O ser humano se torna tão envolvido com o pecado que acaba se confundindo, chegando a achar que nada mais é pecado, que não existe mais pecado, E aí se implanta o caos. Contra essa desordem, vamos encontrar vários caminhos para se evitar o pecado:

• Aceitar as limitações buscando o crescimento

• Cultivar os valores autênticos

• Estabelecer sadios ideais de vida

• Conhecer a Cristo e as verdades reveladas pela Igreja

• Orar, meditar e fazer sacrifícios pessoais

• Ter senso crítico para julgar os fatos do dia-a-dia

• Observar os mandamentos de Deus (especialmente o “novo”)

• Buscar orientação espiritual e freqüentar os sacramentos

(penitência e eucaristia)

• Procurar desenvolver a vida em comunidade

• Fortalecer-se na fé e no apostolado (cf. Ef 6, 10-17)

O pecado é uma ofensa a Deus: “Pequei contra ti, contra ti somente; pratiquei o que é mau aos teus olhos” (Sl 51,6). O pecado ergue-se contra o amor de Deus por nós e desvia dele os nossos corações. Como o primeiro pecado (original), foi uma desobediência, uma revolta contra Deus, por vontade (soberba e egoísmo) de tornar-se "como deuses", conhecendo e determinando o bem e o mal (Gn 3,5). O pecado é, portanto, amor de si mesmo até o desprezo de Deus. Por essa exaltação orgulhosa de si, o pecado é diametralmente contrário à obediência de Jesus, que realiza a redenção gratuita.

Na luta do bem contra o mal, vamos buscar o exemplo de Davi, não enquanto rei de Israel, mas quando era um simples garoto. Sua atitude, encontrada no Primeiro Livro de Samuel nos estimula a vencer os desafios. Sua coragem tipifica a fortaleza daqueles que lutam contra as insídias do mal e do pecado.

Saiu então do exército filisteu um guerreiro enorme chamado Golias, de Gat, com quase três metros de altura. Tinha na cabeça um capacete de bronze, vestia um colete de malha de bronze que pesava mais de cinqüenta quilos, usava perneiras de bronze e tinha nos ombros um escudo de bronze. A haste de sua lança era como travessa de tear, e a ponta da lança pesava seis quilos. Seu escudeiro ia à frente. Golias postou-se na frente das fileiras de Israel e gritou: “Por que vocês saíram para lutar? Eu sou filisteu, e vocês são escravos de Saul. Escolham alguém para lutar comigo. Se ele for mais forte e me derrotar, seremos escravos de vocês. Se eu for mais forte e o vencer, vocês serão nossos escravos e servirão a nós”.

E continuou: “Estou desafiando hoje o exército de Israel! Apresentem alguém, e lutaremos corpo a corpo!”. Saul e os israelitas ouviram o desafio do filisteu e ficaram cheios de medo (17, 4-11).

A pirotecnia do mal muitas vezes assombra e acovarda as pessoas, fazendo-as recuar, quando o medo afasta do enfrentamento com o Maligno, minando todas as resistências. O escritor sagrado exagera na descrição de Golias, com o intuito de ressaltar seu poder e o elevado grau de risco que seria o combate contra tão assustador inimigo. Nesse particular vemos o gigante Golias, personificando o mal que investe contra o povo de Deus (a Igreja e os escolhidos) tentando assustar, por em fuga, e evitar uma reação.

Davi correu para a linha de batalha e perguntou aos irmãos se estavam bem. Enquanto conversava com eles, o guerreiro filisteu chamado Golias, de Gat, saiu das fileiras do exército filisteu e fez o desafio. Davi ouviu tudo. E os israelitas, quando viram o homem, fugiram apavorados (v. 22).

Sempre há um prêmio guardado para quem sobrevive aos assaltos do pecado. As riquezas, a mão da filha do rei em casamento e a isenção de impostos representam o que de melhor a corte podia oferecer a quem derrotasse Golias e extinguisse aquela ameaça. Mesmo diante de tantas recompensas, os israelitas tiveram medo.

E os israelitas, quando viram o homem, fugiram apavorados. Um israelita disse: “Vocês viram aquele homem que subiu? Ele veio para desafiar Israel. A quem o vencer, o rei encherá de riquezas e lhe dará sua filha, além de deixar sua família livre de impostos em Israel” (vv. 24s).

Quando estamos “em situação de pecado”, as grandes promessas divinas, como os dons da fortaleza, do discernimento e tantos outros, a pertença ao número dos filhos de Deus, a redenção operada por Cristo e a posse do Reino dos céus, tudo se torna secundário, porque o homem se deixa intimidar pelo diabo, não resiste ao seu assédio e foge, entregando o domínio do campo de batalha ao inimigo.

Davi não era soldado; ele era um menino, um adolescente de não mais que quinze anos. Ele havia ido ao acampamento, a mando da mãe, levar uma comida caseira aos irmãos, alistados na milícia do rei Saul. Ao chegar na frente de batalha ele escuta os gritos de Golias, que desafiava os israelitas e lançava impropérios e palavrões, desrespeitando o exército, assim como faz o pecado contra aqueles que não têm a coragem de vencê-lo. Davi demonstra a indignação do justo.

Então Davi perguntou: “Quem é esse filisteu incircunciso para desafiar o exército do Deus vivo?” (v. 26)

Observa-se aí a parresya (coragem, tenacidade, desassombro) daquele que crê e não teme as ameaças do mal que se instaura na sociedade, sob as várias formas de ameaça. Davi, ungido por Deus, se dispõe a enfrentar o gigante. E nós? Não somos também ungidos? Por que tememos?

Quando soube o que Davi tinha falado, o rei o chamou. Davi disse a Saul: “Ninguém deve ficar desanimado. Este seu servo irá lutar com o tal filisteu!” (vv. 31s).

Excessivamente zeloso, mesmo diante do perigo iminente, o rei tenta dissuadir o jovem Davi. Sempre tem alguém que busca nos intimidar com o poder do pecado, ou a força das coisas do mundo, restringindo nossa ação, falando em perigos, superioridade do inimigo, que não vale a pena enfrentar, etc.

Saul respondeu a Davi: “Você não pode lutar com o filisteu! Você é apenas um rapaz! Ele é guerreiro desde a juventude!”, Davi replicou: “Seu servo é pastor das ovelhas de meu pai. Se chega um leão ou urso e agarra uma ovelha do rebanho,eu vou atrás, o ataco e arranco a ovelha de sua goela; se ele me ataca, eu o agarro pela juba e o mato a pauladas. Seu servo é capaz de matar leões e ursos. Pois bem: esse filisteu incircunciso, que desafiou o exército do Deus vivo, será como um deles” (17,33-36).

Davi não se deixa intimidar; alguém precisava fazer alguma coisa e ele ia defender o “exército de Javé”.

E Davi acrescentou: “Javé me livrou das garras do leão e do urso. Ele me livrará também das mãos desse filisteu”. Então Saul lhe disse: ‘Vá, e que Javé esteja com você!” (v. 37).

Ás vezes as armas convencionais, do costume ou da tradição são ineficazes na luta contra o inimigo. Há quem imagine que o enraizamento dos dogmas ou das vetustas doutrinas, elas somente, são capazes de deter o assédio do pecado. Davi não conseguia caminhar atrelado a tantos penduricalhos. É preciso ir mais além, ter fé, assumir a missão com coragem e discernimento, custe o que custar.

Saul vestiu Davi com sua própria armadura, colocou-lhe na cabeça um capacete de bronze, revestiu-o com a sua couraça, e pôs a espada na cintura dele, sobre a armadura. Em vão Davi tentou andar, pois nunca tinha usado nada disso. Então falou a Saul: “Não consigo nem andar com essas coisas. Não estou acostumado”. Tirou tudo, pegou o cajado, escolheu cinco pedras bem lisas no riacho e as colocou no seu bornal. Depois pegou a funda e foi ao encontro do filisteu (vv. 38ss).

A incrível lição das cinco pedrinhas do riacho é digna de estudo e reflexão. Estas pedras, que nós conhecemos como seixos são comuns na Palestina. Os pastores usavam-nas habilmente nas fundas para golpear os lobos e outros predadores, e assim afastá-los dos rebanhos. Pois Davi vai ao riacho (onde corre a “água viva”) e apanha cinco pedras, decisivas para enfrentar e vencer o gigantesco inimigo.

Qual o sentido das cinco pedrinhas? É preciso enxergar nelas cinco dons de Deus, com os quais é possível derrotar o mal. Elas significam a fé, a oração, o jejum, a esperança e a coragem. Armado desses dons o crente se habilita a enfrentar o diabo e a vencer seu poderio. A narrativa posterior conta que o jovem Davi deu uma certeira pedrada na testa do inimigo deixando-o caído no chão, de bruços.

Apesar do seu vigor físico o gigante não resistiu ao impacto de uma simples “pedrinha” e desabou. Caiu ferido, mas ainda estava vivo, e como tal representava uma ponderável ameaça. Quem anda pelos campos sabe que só se elimina uma serpente cortando-lhe a cabeça fora. Para afastar a ameaça do maligno só se tem sucesso através da atitude radical da conversão. Usando a espada do inimigo, Davi transforma-a na Palavra de Deus, e com ela elimina a ameaça que se afigurava como intransponível.

Davi correu, parou diante do filisteu, pegou a espada dele, a desembainhou e com ela acabou de matá-lo, cortando-lhe a cabeça. Quando os filisteus viram morto o herói deles, bateram em retirada (v. 51).

A Bíblia, através dos escritos inspirados de São Paulo, referindo-se à eficácia da Palavra de Deus, compara-a a uma espada de dois gumes.

A palavra de Deus é viva, eficaz e mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes; ela penetra até o ponto onde a alma e o espírito se encontram, e até onde as juntas e medulas se tocam; ela sonda os sentimentos e pensamentos mais íntimos (Hb 4,12).

A Palavra de Deus usada como luz para o nosso caminho se torna a arma eficaz que detém as ondas do mal que o pecado pode causar.

Em Jerusalém, na esplanada do memorial de Davi, bem próximo ao “muro das lamentações” se encontra uma estátua do rei (anexo), de espada na mão, com o pé em cima da cabeça decapitada de Golias. É o símbolo da vitória do bem sobre o mal; da virtude sobre o pecado. Vitória de Deus contra o diabo e o pecado.

O autor é filósofo, biblista, escritor e Doutor em Teologia Moral. Prega retiros de espiritualidade para padres, leigos, religiosos e casais. Assessora workshops de teologia, ética e marketing cristão.