Maria, mãe de Deus (SERMO CXII)

MARIA MÃE DE DEUS

Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores

agora e na hora da nossa morte...

Por séculos afora, a fé de nosso povo tem sido unânime em referir-se a Maria como modelo de virtudes, santidade, humildade e disponibilidade ao plano de Deus. Ao aceitar tornar-se a mãe de Jesus, ela passa a integrar todo um complexo divino-humano que se inicia com seu sim, e que se vai perenizar na Igreja, onde ela é rainha, onde o Ressuscitado é presença constante e inspiradora. Esta é, tenho certeza, a tônica desta novena mariana.

Maria se tornou a Mãe de Deus e da Igreja na medida em que foi mãe de Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. A “anunciação” dessa maternidade foi celebrada ontem, dia 25. Desde o início ela sabia que aquele menino não seria só seu, mas de todos. Cheia de fé e entrega, a mãe fez a partilha do Verbo de Deus conosco. Com isso, Maria trouxe Jesus para o meio do povo, fazendo surgir uma chama de paz e esperança, anelos da humanidade, hoje e sempre...

A maternidade de Maria se insere no projeto do Criador. Sua entrega, e nunca é demais repetir, está a serviço do desígnio libertador de Deus, que em Jesus estabeleceu um projeto de salvação. Assim como Abraão é pai físico e étnico de todo um povo, Maria é mãe, na ordem espiritual, de todos os que se deixam batizar em nome de seu Filho. Em Maria emerge o papel histórico da mulher. Ela é mãe, cidadã e participante de todo um processo social.

Sua grandeza reside no serviço que presta aos outros. “A presença de Maria, nos dias de hoje - afirma João Paulo II - como, aliás, ao longo de toda a história da Igreja, encontra múltiplos meios de expressão. Possui também um multiforme raio de ação: mediante a fé e a piedade dos filhos; mediante a tradição das famílias cristãs ou ‘Igrejas Domésticas’, das comunidades paroquiais e missionárias, e mediante o poder de atração e irradiação dos grandes santuários, onde o povo busca um encontro com Aquela que é feliz porque acreditou, e por isso se tornou Mãe do Emanuel”.

Nessa perspectiva materna, Jesus é o primogênito de Maria segundo a carne, enquanto nós, toda a humanidade, assumimos a condição de filhos, segundo o espírito. A solenidade da Festa da Mãe de Deus, comemorada dia primeiro de janeiro, assinala o início do calendário civil, como a derramar as bênçãos maternais de Maria sobre todos, durante os dias do ano que se inicia.

Na verdade, o mistério da maternidade divina de Maria transcende quaisquer missões que Deus tenha conferido ou possa conferir a qualquer pessoa humana. Nela o divino se humaniza para que o humano se divinize. O Concílio de Éfeso, ocorrido em 431 de nossa era, definiu como verdade irrecorrível a maternidade de Maria, não só do Jesus homem, como também do Cristo divino. Assim, a Virgem Maria não é só mãe do homem, mas é reconhecida como a Mãe de Deus. Deste modo, o ano civil dos católicos se inicia pela festa da Mãe de Deus.

Essa maternidade cria um vínculo indissociável entre Jesus, Maria e o povo fiel. Por ser mãe de Jesus, ela se tornou mãe da Igreja, que é Jesus continuado na história, e, em conseqüência, nossa mãe. “Quem ousará, pergunta São Roberto Belarmino († 1621) tirar estes filhos do seio de Maria, depois que a ela se tiverem recorrido em busca de salvação contra os inimigos? Que fúria do inferno ou das paixões poderá vencê-los, se puserem sua confiança no patrocínio da Mãe - Maria?”. Na religiosidade popular, encontra-se muitas orações, cantos e benditos referindo-se a essa tríplice relação. Abaixo um “bendito” que respiguei no nordeste, quando morei na Paraíba:

“Nossa Senhora incensou o seu altar,

pra Jesus, seu Filho bento chegar,

eu incenso, eu incenso esta casa, pro mal sair e a felicidade entrar...”.

Tornar-se a Mãe de Deus é o maior e a mais importante invocação de Maria. Todos os outros decorrem deste. É sabido que em sua humildade e entrega, ela jamais pensou nesse ou naquele título. Mas a verdade é que a Igreja, por todos os tempos, depois de sua glorificação nos céus, decidiu atribuir-lhe títulos que exaltassem suas ações de serva fiel do Pai. Ela é a“Nossa Senhora” porque é mãe de Nosso Senhor. Para ser Mãe de Deus precisou ser “Imaculada Conceição”.

Sendo mãe tornou-se “Medianeira” e por isso, “Assunta aos céus” no fim de seus dias. Deus, em seu poder absoluto, podia simplesmente ter aparecido, mas quis ter uma mãe, igual aos humanos. Em Maria, Deus precisou da mulher no ato em que prescindiu do homem.

Maria, mulher-mãe, é ponto de inserção da vida nova no coração dos homens e das comunidades. Em Maria, essa vida é transcendente e divina, e por ela Deus se instala no coração do povo por meio da maternidade que ele mesmo criou. Assim como pela maternidade humana e divina Maria se tornou uma ponte para Deus vir até nós, igualmente Maria, todos os dias, é ponte para que nossas súplicas, orações, desejos e expectativas sejam colocados à frente de Deus.

Certo dia - diz L. Boff - na plenitude dos tempos, quando o prazo de espera expirou, Deus se aproximou de uma Virgem toda pura. Bateu mansamente à sua porta. Pediu para morar e viver na casa dos homens. E Maria disse que sim. Porque havia lugar para ele na hospedagem daquele coração puro, o Verbo se fez carne no seio da Virgem. E a vida divina começou a viver no mundo.

A devoção dos católicos à Virgem Maria é notável e se reveste de caráter de uma afetividade humana que vai desembocar na adoração ao Filho. Muitos escritos e orações têm afirmado, séculos afora, que não tarda a encontrar a Deus que é fiel em obsequiar a Mãe de Jesus. Sobre a devoção mariana há, na vida de São João Maria Vianey, o “Cura d’Ars” († 1859) um fato bastante revelador, ocorrido naquela época.

Uma senhora colocava semanalmente flores aos pés de uma

imagem da Virgem. O marido, embora ateu, mas com intenção de

agradar a esposa, colhia as melhores rosas para que a esposa

obsequiasse a santa de sua devoção. Essa rotina se sucedeu por

muitos anos. Um dia, premido por dívidas e falências, o marido

suicidou-se: jogou-se do alto de uma ponte, morrendo afogado

no rio. Muito triste e chocada, a mulher foi pedir a Jean Marie que

rezasse pela alma do marido. Depois de celebrar a Santa Missa,

ele veio dizer que tivera uma revelação, na qual fora informado de

que o suicida havia se salvado. Grata por tantas rosas, ofertadas

anos a fio, Maria, no curto lapso de tempo em que o corpo do

homem caia da ponte, intercedeu por ele perante o filho, que

propiciou ao suicida que se arrependesse, daquele gesto e dos

pecados de sua vida. Mesmo indiretamente o homem fora devoto

de Maria, e isso impediu sua perdição. Por isto que São Bernardo

(† 1153) já havia afirmado que “um devoto de Maria jamais se

perde”.

Tornada mãe do gênero humano na ordem da graça (cf. LG 61) ela deu à luz, não só a Jesus, mas a toda comunidade cristã, fiel seguidora de seu filho. Se Jesus nos entrega sua mãe como nossa mãe, isto significa que ele pretende dá-la a nós como modelo perfeito da existência cristã. Por esta razão, Maria é tipo da Igreja, enquanto mãe, servidora e missionária, e sua figura, virtudes e privilégios têm a dimensão eclesial, fecunda e gloriosa. Sendo mãe de Jesus, aos pés da cruz Maria é declarada mãe dos que são uma só coisa com Jesus, em razão da fé.

Como mãe de Jesus, Maria é a mulher de esperança e perseverança que ajuda as comunidades a esperar a segunda e definitiva vinda de seu filho. Maria falou pouco, é verdade. No entanto, suas palavras são chave para a compreensão da doutrina cristã. Os biblistas identificam com carinho seis momentos em que ela fala.

• duas vezes na anunciação (Lc 1, 34. 38);

• na visita a Isabel (o “Magnificat”, Lc 1, 46-55);

• na perda do menino em Jerusalém (Lc 2, 48);

• duas vezes em Caná (Jo 2, 3.5).

Dessas falas, cujo teor ainda vamos abordar mais, destacamos a última, como guia para toda a nossa vida cristã. Assim como falou aos serventes, nas bodas em Caná da Galiléia, ela continua, como mãe que é, recomendando, de forma missionária e profética, à Igreja:

“Façam tudo o que ele mandar” (Jo 2, 5).

Dos lábios maternos de Maria brota a mais importante recomendação espiritual para que a Igreja viva um cristianismo consciente e se habilite ao gozo da felicidade no Reino dos céus. Lá estaremos com Jesus, com os santos, com nossos amigos e parentes e com ela, mãe de Jesus e nossa mãe. Bem-aventurada por sua concepção imaculada e pela anunciação, Maria foi eleita mãe de Jesus por sua santidade:

“Salve, cheia de graça aos olhos de Deus” (Lc 1, 28).

Na plenitude dos tempos (cf. Gl 4, 4), Jesus nasce da Bem-aventurada Virgem Maria, para resgatar os que viviam sob a opressão da lei. A importância da santidade de Maria nesse processo libertário é fundamental. Nesse contexto, Maria se torna exemplo de santidade e participação comunitária. “Existindo esta relação de exemplaridade, a Igreja descobre-se em Maria e procura tornar-se semelhante a ela. Maria está presente, portanto, no mistério da Igreja, como modelo” (cf. João Paulo II in: RM - Redemptoris Mater, 44). E modelo de santidade.

Maria nasceu com o coração voltado integralmente para seu Deus. Nós não. Nós precisamos orar continuamente para que o Senhor nos purifique e nos converta aos ideais evangélicos de Maria; ser fiel ao Pai, amar e colocar-se a serviço dos irmãos de seu filho, em especial dos mais desprotegidos. Maria foi fiel na humildade, na pobreza e no desprendimento; por isso tornou-se bem-aventurada.

A mãe de Jesus não é só o ideal feminino, mas, como disse T. de Chardin, é “... modelo de bem-aventurança para toda a humanidade”. Nela o homem e o divino se encaixam e se integram numa harmonia estável e orgânica. Quando as realidades materiais e espirituais se assumem, emerge com incontrolável vigor, o mistério do Verbo encarnado, trazido até nós pela doçura e santidade de uma mulher. Humanamente limitada, Maria nem tudo pode entender, mas como pessoa de fé, em tudo acreditou. Contam que uma vez um cientista, pesquisando no deserto do Saara, perguntou a um guia árabe que orava:

- O que você faz?

O homem, humildemente, respondeu:

- Estou orando a Deus!

Racionalista, o cientista perguntou:

- Você já viu Deus? Já o tocou? Caso contrário, ele não

pode existir... Depois de andarem alguns quilômetros, o

cientista exclamou:

- Por aqui passou um carro.

Propositadamente, o guia duvidou:

- Acho que não! O senhor viu o carro?

O cientista respondeu:

- Ver eu não vi, mas seus rastros são razões suficientes

para eu ter certeza que por aqui passou um automóvel...

Então o guia concluiu:

- Assim é com relação a Deus. Eu nunca o vi, mas seus

rastros, como o amor, a vida, a natureza, me dá a certeza

de que ele existe...

Isto também ocorre, com relação à Maria. Nela enxergamos as pegadas de Deus. “Não é, acaso Maria, a primeira dentre ‘aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática’?” (cf. RM 20). O silêncio, a reflexão e a oração são pilares de espiritualidade mariana. Jesus pregava com palavras e obras. Maria ensina pelo silêncio. O evangelho nos revela que

“Ela guardava todas essas coisas em seu coração” (Lc 2, 51).

O silêncio de Maria, por mais paradoxal que possa parecer, é rico em mensagens e reflexões. Nesse silêncio, rico e profundo, a Igreja aprendeu a caminhar, seguindo os passos de Jesus. Alguns biblistas reconhecem algo como “os cinco silêncios de Maria”:

• o silêncio de sua vida, anterior à anunciação;

• o silêncio sobre o mistério da encarnação;

• o silêncio da vida oculta;

• o silêncio da vida pública;

• o silêncio depois da ascensão de Jesus.

Nós, quando oramos nos preocupamos em falar, formar frases bonitas (às vezes ocas de compromisso), medir a entonação da voz. Maria nos ensina a oração do silêncio contemplativo. “... assim como o camponês guarda a semente preciosa, que no futuro irá lhe garantir pão e vida, ela ‘guardava essas coisas’, sementes de fé que a ajudariam a entender os planos de Deus” (V. Ciaccio. Uma mulher no meu caminho, Ed. Paulinas, 1979).

O silêncio da Virgem é um dos referenciais de sua santidade. De fato, e já dissemos isto aqui, ela falou bem pouco. Afinal, para quê falar muito e dizer quase nada? Maria falou pouco, mas que profundidade!

São Boaventura († 1274) afirma que “A Escritura é como uma lira; uma corda sozinha não produz harmonia, mas somente em conjunto com as outras”. O mesmo sucede com os textos bíblicos referentes a Maria. São poucas palavras em quantidade, mas muito em qualidade e revelação. Ela é o compêndio das esperanças do antigo Israel. Se pesquisarmos as Sagradas Escrituras, com os olhos do coração, veremos diversas referências a Maria.

No Antigo Testamento, identificamo-la, no “proto-evangelho da salvação” (Gn 3, 15) como a mulher, cuja descendência manterá inimizade com o mal. Igualmente a vemos na “virgem que dará à luz” (Is 7, 4). No terreno dos tipos bíblicos, encontramos no AT algumas mulheres e eventos que se relacionam com a pessoa de Maria. Selecionamos alguns; há mais:

- a escada de Jacó (Gn 28, 12)

a escada fazia a ligação entre o céu e a terra; Maria é

essa escada: por ela sobem as preces do povo fiel e

igualmente por ela descem as graças;

- a sarça ardente (Ex 3, 2)

a sarça que não se consumiu pelo fogo é igual a Maria,

intacta diante do pecado;

- a porta fechada (Ez 43, 4; 44, 2)

Deus passou por ela e, por isto, ela permanecerá fechada.

Refere-se à virgindade de Maria;

- Eva

sendo Eva a primeira “mãe de todos os viventes” segundo

a carne, Maria torna-se mãe de todo o povo de Deus,

segundo o espírito; quando Deus estabelece a criação de

uma ajudante para Adão, tipifica o ajutório de Maria a

Jesus, na co-redenção do mundo;

- Débora (Jz 4, 4s)

trata-se de uma juíza, símbolo da vitória do povo contra os

inimigos de Deus;

- Jael (Jz 4, 9)

é outra juíza, heroína do antigo Israel; ela foi também

chamada de “bendita entre as mulheres” (cf. Jz 5, 24);

- Ester (Est 4-5)

tendo achado graça diante do rei, Ester intercedeu por seu

povo, obtendo, por essa intercessão, a libertação de todos.

Se no Antigo Testamento o que existe são induções e acomodações, no Novo Testamento as referências a Maria são bem mais explícitas, basta procurar:

• na genealogia de Jesus (Mt 1, 16);]

• na anunciação (Lc 1, 26-38);

• na visitação a Isabel (Lc 1, 39-56);

• no nascimento de Jesus (Lc 2, 5ss; 2, 16);

• na apresentação no templo (Lc 2, 21-39);

• na fuga para o Egito (Mt 2, 13ss);

• quando Jesus se perde no templo em Jerusalém (Lc 2, 41-

51);

• “...não é este o filho de Maria?” (Mc 6, 13);

• “... bendito o ventre... benditos os seios que te

amamentaram...” (Lc 11, 27s);

• “Quem é minha mãe?” (Lc 8, 19ss);

• na festa de casamento, em Caná da Galiléia (Jo 2, 1-12);

• Calvário (Jo 19, 25-29);

• no Cenáculo (At 1, 14);

• em Pentecostes: “... estavam todos reunidos...” (At 2,1);

• no Apocalipse: “... uma mulher vestida de sol” (Ap 12, 1).

Tantas citações, implícitas e explícitas, contidas nas Sagradas Escrituras, revelam a santidade de Maria, e o porquê de ela ser considerada “cheia de graça” diante dos olhos de Deus. Segundo Santo Afonso de Ligório († 1787), as virtudes características da santidade de Maria são:

• fé

• pureza

• pobreza

• caridade

• paciência

• esperança

• obediência

• humildade

• espírito de oração.

Ora, quem tem todas essas virtudes, não pode ser modelo para a nossa vida cristã? A santidade da Virgem Maria torna-a diferente de Eva, a primeira mãe: “Eva concebeu a serpente e gerou o pecado e a morte, diz São Justino. Maria Virgem concebeu a fé e a paz, e nos trouxe o Salvador”. Resplandecente de santidade, como uma rainha (mulher vestida de sol) Maria parece coberta com o ouro de Ofir (cf. Sl 45, 10).

“Salve Maria, cheia de graça...” esta é a saudação do anjo, anunciando que Maria será a mãe do Messias, o Salvador aguardado por todo Israel. Essa saudação nos indica a plenitude da graça, a profusão dos dons sobrenaturais com que Maria é agraciada, e retrata a fé da Igreja, desde o princípio, bem como a certeza da pureza da mãe de Jesus.

Na santidade de Maria, Deus antecipa o destino da humanidade, renovado pelo sacrifício libertador de Cristo: nela acontece um novo princípio, a nova criação. Em nosso tempo, muito se fala em liberdade das mulheres, igualdade dos direitos, deveres iguais, etc. A dignidade da mulher é muito querida aos olhos do Pai. Isso se torna claro ao escolher salvar o mundo, através de seu filho Jesus, nascido de uma mulher.

Ao eleger uma mulher como mãe da Segunda Pessoa, o Todo-Poderoso resgata séculos de obscura servidão em que se viram mergulhadas todas as mulheres do mundo. Para conduzir à plenitude esse carinho para com todas as mulheres, o Pai eleva Maria aos céus, de corpo e alma, como a maior representante do feminino no mistério da redenção.

A grandeza de Maria é como o mar: nós vemos onde ele começa, mas não podemos enxergar até onde ele vai...Ao santificar Maria, Deus estende e oferece a todas as mulheres, esse dom e essa dimensão do transcendente. A assunção de Maria aos céus, em corpo e alma, revela que o corpo da mulher é essencialmente digno e sagrado, e como tal deve inserir-se na humanidade de agora, para usufruir o céu depois.

Sobre a santidade de Nossa Senhora, há um texto muito antigo, de Santo Antônio de Pádua: “Deus Pai ajuntou todas as águas e denominou-as mar; reuniu todas as suas graças e chamou-as Maria”. Como mãe cheia da graça de Deus, Maria desponta para o gênero humano como um modelo de fé. Ela não compreende os desígnios de Deus, mas entrega-se à vontade do Pai. Sem compreender, ela acredita, e isso lhe é somado em méritos de santidade.

A verdadeira santidade está naquilo que foi uma constante na vida de Maria e José; santificar o quotidiano, que nada mais é que render graças diárias a Deus, por todas as coisas, e nos mais simples fatos da vida, procurar a presença de Deus, buscando igualmente a oportunidade de servir.

Hoje se fala tanto em santidade como algo superlativo. Santo não é aquele que faz muito, mas que faz certo. E faz sempre. Nesse particular, “... a Virgem Maria é a realização mais perfeita da obediência na fé” (CIC 144). Nesse particular, como aliás já vimos, existe uma grande diferença entre Eva e Maria. A destinação de Maria à santidade é claramente revelada no diálogo da anunciação, velho conhecido nosso.

“Quis, porém, o Pai das misericórdias, que a encarnação fosse

precedida da aceitação por parte da mãe predestinada, a fim de

que, assim como uma mulher tinha contribuído para a morte,

também uma mulher contribuísse para a vida” (LG 56).

A santidade da Virgem Maria brota do fato de ela colocar-se subalterna à santidade de Deus. O pecado de Eva foi, cedendo às tentações do mal, querer ser igual a Deus. Maria, assim que concebe em si o Verbo de Deus, exclama:

“O Senhor fez em mim maravilhas, santo é seu nome” (Lc 1, 49).

Ao se referir às grandes coisas que Deus fez por ela, Maria quis falar também sobre as grandes coisas que Deus fez pelo gênero humano. Ao falar

“...de geração em geração” (Lc 1, 50)

ela expressa a perenidade da Aliança. Deus é fiel até o fim dos tempos. Por isso, Maria é uma pessoa sempre atual, pois ela traz consigo essas graças do Pai, para distribuí-las, em abundantes inspirações à santidade, aos discípulos de seu filho. Por isso dizemos que Maria é mãe, santa e intercessora, não só num determinado momento histórico, mas todos os dias.

Originário da maternidade divina e de sua santidade, o título de Mãe da Igreja, outorgado a Maria surge como uma conseqüência inevitável. Sua característica de intercessora a coloca como aquela que se dispõe a ser a advogada dos cristãos, consoladora dos que sofrem e, como somatório dessa atividade espiritual, ela assume a maternidade de toda a Igreja-comunidade de Cristo. Há alguns dias atrás, quando preparava esta reflexão, andando na rua, li um decalco no vidro traseiro de um automóvel: “Peça á Mãe que o Filho atende”.

Santo Agostinho († 430), referindo-se à maternidade de Maria, pergunta que, se ela é mãe da Cabeça (Cristo), por que não pode ser mãe dos membros (A Igreja)? A partir do episódio ocorrido em Caná, ela torna-se intercessora. Aos pés da cruz ela assume a missão de tornar-se mãe dos redimidos pela cruz de seu filho. Quem foi assim investida, não tem “autoridade” para interceder?

A presença forte de Maria aparece claramente na Igreja do Oriente, em orações do século IX, em que os fiéis pedem a mediação de Maria junto a Jesus. Ao recomendar à Igreja que tome Maria como modelo, Paulo VI retrata-a como paradigma daquilo que é o grande anseio do homem moderno: a paz, a realização afetiva, a justiça, a eleição de valores reais e a alegria de estar a serviço.

Há tempos, entre incrédula e pouco conhecedora das coisas de Deus, uma pessoa me perguntou sobre a pertinência do título de “Mãe da Igreja”, que é conferido à Virgem. Ora, Maria é mãe de Jesus, que é filho de Deus e, por esse motivo, irmão nosso, na ordem da graça. Ora, se Jesus é nosso irmão, sua mãe é nossa mãe. Isso é consagrado pelo legado na cruz, quando Jesus entrega sua mãe viúva aos cuidados de João, e por extensão, a todo o gênero humano:

“Eis aí tua mãe!” (Jo 19, 27)

A Igreja ensina, a respeito das palavras de Jesus dirigidas a Maria,

“Mulher, eis aí o teu filho!” (Jo 19, 26)

que o discípulo João recebeu em sua casa como mãe, como alguém que pela perfeição de sua fé, teve sua humanidade assumida por Deus. Ao tornar-se um novo “filho de Maria”, o apóstolo representa a humanidade filiada à proteção amorosa de Virgem. João levou Maria para Éfeso (onde ela foi assunta ao céu) numa casinha modesta, que eu tive a emoção de visitar em 2007.

Os seguidores de Jesus não permanecem isolados, mas agrupados em uma comunidade chamada Igreja, cujo mistério os reúne em nome de Cristo. Se Maria é mãe dos membros da Igreja, por que não sê-lo da própria Igreja? Concretamente, essa maternidade universal se manifesta na solicitude da mãe pelos homens, como outrora em Caná. Ao dizer ao filho

“Eles não têm mais vinho...” (Jo 2, 4)

Maria revela a extensão de sua preocupação materna, não só referente a Jesus, mas a toda a humanidade. Ninguém, como ela, conhece e ama a Jesus. Por isso ninguém, como Maria, é capaz de nos levar a Jesus. O seguimento a Jesus nos faz assumir sua mãe como nossa mãe. Não se trata apenas de uma simples devoção à mãe de Deus. Maria, que estava com o grupo apostólico, em constante oração, no início da Igreja, permanece entronizada nessa mesma Igreja, empenhada na salvação dos homens, libertos pelo sangue redentor do filho Jesus.

A mãe de Deus torna-se símbolo da Igreja, por causa de sua fé, seu serviço, sua maternidade, sua disponibilidade e pelas suas características de mestra da verdade. Maria é chamada de “filha de Sião”, como um símbolo personificado de Israel, consolidando uma aliança de fé e de obediência. Na plenitude dos tempos messiânicos, essa “filha de Sião” vai converter-se em “mãe do povo de Deus”.

Em fins do século II, Santo Ireneu, de Lyon († 200) criou uma analogia de relação, dizendo que, assim como do seio de Maria foi gerado o Cristo, do seio da Igreja foram gerados os cristãos. O Concílio de Éfeso (431) definiu a Virgem Maria como a “geradora de Deus” (theotokos), e o Vaticano II (1963) cunhou a expressão “Mãe da Igreja” e, por conseguinte, dos homens.

A missão da mãe da Igreja não termina na cruz. Pelo contrário. Começa. A partir do “Eis aí o teu filho!”, Maria assume uma maternidade que vai se prolongar para todo o sempre. Mesmo no céu, na vida eterna, os fiéis seguidores de Jesus terão a Virgem como sua mãe e intercessora. A assunção corporal de Maria aos céus é sinal, para nós, que um dia com ela estaremos. Ela, como primícia, foi à nossa frente.

“As crianças - ensina Santo Afonso - têm sempre na boca o nome da mãe. Em qualquer perigo que se vejam, ou medo que tenham, logo se lhes ouve gritar: mamãe, mamãe! Ah! Maria dulcíssima, Ah! Maria amorosíssima, isso é justamente o que desejais de nós. Quereis que nos tornemos crianças e chamemos sempre por vós, em todos os perigos. Por isso, recorremos a vós”.

Uma vez, num encontro ecumênico, em uma universidade onde lecionei, escutei um teólogo luterano afirmar: “Como gostaríamos de ter Maria como mãe!” Mas vocês a têm, disse-lhe eu, basta abrirem-se ao seu amor e desfrutar daqueles ricos mananciais, sem temores!

A maternidade de Maria perdura – todos os dias – no seio da Igreja, como mediadora e intercessora. Por isso a comunidade cristã invoca-a como advogada, auxiliadora, mãe do perpétuo socorro e medianeira de todas as graças. O amor de Jacó por sua mãe Rebeca é o tipo do amor filial da Igreja pela Virgem Maria. “O sinal mais infalível e indubitável para distinguir um herege, um cismático, um réprobo, de um predestinado – ensina São Luis Grignion de Monfort († 1716) – é que aqueles apresentam indiferença pela Santíssima Virgem. Não foi neles que Deus Pai disse a Maria que fizesse sua morada”.

A figura da mulher, que perpassa a Bíblia, do Gênese ao Apocalipse, revela-nos Maria, como também, num entrelaçamento de juízos, Eva, Israel (as doze tribos), Sião (aquele resto que espera o Messias), o povo da nova Aliança (os doze apóstolos) e, por fim, a Igreja. No capítulo 3 do Gênese, a palavra de Deus nos orienta sobre a maternidade de Maria em relação à Igreja.

A inimizade entre o mal e os descendentes da mulher, retratam a luta da comunidade, em todos os tempos, contra aquelas forças maléficas que tentam colocar obstáculos à instauração do Reino. No capítulo 12 do Apocalipse, Maria é a “mulher vestida de sol”, a mãe da Igreja que se liberta, a presença atenta ao lado de seus filhos. Ela é mãe dos simples, dos fracos e dos oprimidos.

Na América Latina, a “mãe do céu morena” apareceu em 1531, não ao governador, não ao chefe do cabildo ou ao bispo, mas a um índio, a classe mais oprimida daqueles tempos coloniais.

O amor preferencial da mãe pelos filhos pobres acha-se admiravelmente revelado no “Magnificat” (cf. Lc 1, 46-55). Com seu canto corajoso e profético, ela proclama no advento do mistério da salvação, a vinda de uma nova ordem, de justiças e paz, instaurada por seu filho, o “Messias dos pobres”.

Ó Maria concebida sem pecado: Rogai por nós que

recorremos a vós!

Tema da pregação de uma novena (42 minutos) que o autor realizou em uma paróquia de Porto Alegre, em março de 2011. O autor é Doutor em Teologia Moral, pregador de retiros e escritor. Publicou mais de uma centena de livros, entre eles “Magnificat, o evangelho segundo Maria” (Ed. Vozes, 1986), “Maria de todos os dias” (Ed. O Recado, 1997), “O Rosto de Maria” (Ed. Ave-Maria, 1999) e “Ave Maria – A oração do céu e da terra” (Ed. Ave-Maria, 2008).