QUARESMA - Oração, jejum, esmola e a qualidade das relações interpessoais

Com a quarta-feira de cinzas e sua liturgia penitencial, dá-se início ao tempo litúrgico da quaresma, quando a Igreja veste roxo. Muito se fala neste tempo de suas práticas próprias: oração, jejum e esmola.

Muito já se escreveu e se falou sobre isso, de modo que a maioria de nós, penso, ao menos faz uma pálida idéia do que sejam estas coisas. Não quero aqui me deter tanto na explicação do que sejam estas práticas tanto quanto salientar um aspecto importante que elas iluminam: as nossas relações interpessoais.

Como seres criados à imagem e semelhança de Deus, somos então seres relacionais. Nossa existência é entretecida de relações, aliás, somos fruto de uma relação. O mistério da Trindade Santa se imprime em todos os nossos relacionamentos. A exemplo da Trindade mesma, sempre do encontro entre duas pessoas é gerada uma terceira. Assim no matrimônio onde cada filho é gerado como terceira pessoa; assim nas amizades e demais relações onde o encontro entre um ‘eu’ e um ‘tu’ gera uma terceira pessoa - o ‘nós’.

O pecado se insere nas nossas vidas não de outro modo senão pelas nossas relações que se dão em quatro níveis, perfazendo uma cruz: nos relacionamos na verticalidade e na horizontalidade. Na verticalidade, na ponta de cima da cruz, nos relacionamos com Deus, é a dimensão da espiritualidade, onde somos filhos; na ponta de baixo da cruz, temos a dimensão da subjetividade, onde nos relacionamos conosco mesmos, aí somos pessoas; nos braços da cruz temos a horizontalidade material, onde nos relacionamos com as coisas criadas, com o mundo ao nosso redor. Aí somos administradores; e a horizontalidade interpessoal onde nos relacionamos com o nosso próximo. Aqui somos irmãos e é nesta dimensão que vamos nos deter.

É preciso reconhecer que as dimensões da verticalidade têm precedência sobre as demais, e, da qualidade destas primeiras depende a qualidade das segundas. Logo, para tratarmos a dimensão da interpessoalidade precisaremos abordar a dimensão da espiritualidade também e antes de tudo, já que na dimensão da espiritualidade, assim como nas dimensões da subjetividade e da mesma interpessoalidade nos relacionamos com uma pessoa, trata-se então da forma como o ‘eu’ se relaciona.

E como as práticas quaresmais podem lançar luz na nossa maneira de relacionar-nos?

A primeira prática quaresmal supramencionada, a oração, nos põe em contato com o Criador, que nos criou criadores ao nos criar relacionais. Como ficou dito, aqui somos filhos e precisamos nos dirigir ao Criador-Pai-Deus cheios de confiança. Ele é o Pai perfeito ‘de quem toda paternidade recebe o seu nome’(Ef 3, 15), deve ser ele o modelo de quem na terra quer ser, é ou precisa desempenhar a função de pai; e isso cura e resolve as imagens que nós fazemos de Deus-Pai, geralmente em movimento ascendente, tendo como ponto de partida o nosso pai na terra. Orar, aumenta em nós a consciência de filhos e nos ensina e ajuda a nos relacionar, como filhos que somos, com os nossos pais.

Na oração falamos e ouvimos o totalmente Outro, e como ele não costuma responder com imediatismos e tampouco, nos interrompe enquanto falamos, com Ele aprendemos a ouvir os outros e fugir do fantasma da necessidade de ter respostas prontas pra todas as questões. Como Ele nos ouve sem nos rejeitar e sem preconceitos a respeito da nossa maneira de pensar e conceber as coisas, “Meus pensamentos não são os vossos pensamentos...” (Is, 55, 8), com tolerância infinda, logo aprendemos também nós a nos relacionar melhor com os outros, ser mais tolerantes e a exemplo de Deus, não deixar de amar os outros porque os pensamentos deles não são os nossos pensamentos.

E o que dizer sobre a intimidade? Será ela possível sem a prática da oração? Presumo que será forçoso reconhecer que não. Verdadeira intimidade não se consegue, e não se deveria pretender conseguir sem oração, posto que a oração é já exercício prático de intimidade com aquele que nos é - digamos com Santo Agostinho - mais íntimo que nossa mais íntima intimidade. Como poderíamos, os cristãos, pensar a intimidade sem considerar o mistério da Trindade Una, Íntima e Indivisa? Parafraseemos então São Paulo dizendo que de Deus ‘toda intimidade (verdadeira) recebe o seu nome’(cf.: Ef 3, 15). Sem oração não podemos ser íntimos nem de Deus, nem dos outros e nem de nós mesmos!

Logo, é preciso falar a Deus para garantir a qualidade das nossas relações íntimas.

Precisamos falar a Deus sobre os outros - ou seja, rezar por eles, falar a respeito das suas questões, das suas confidências, do melhor modo de nos posicionar e ajudá-los. Seja bem esclarecido que com Deus podemos fofocar à vontade, falar dos defeitos dos outros, de como esses defeitos nos incomodam, pedir a Deus a força e o método de conviver bem com eles ‘suportando-os nos amor’ (Ef 4, 2; Cl 3, 13), e pedir para eles aquelas qualidades que julgamos que deveriam possuir. Claro, agindo assim, será inevitável que, no mais das vezes, acabemos por identificar que os problemáticos somos nós... posto que estamos falando a Deus, que está mais dentro de nós do que nós mesmos e nos pode mostrar a nossa realidade à medida que nos abrimos à sua graça.

Precisamos falar a Deus com os outros - nos unir aos outros para fazer oração. Exercitar-nos na dimensão interpessoal da nossa horizontalidade é coisa complicada e muitas vezes tratamos muitas coisas com os outros, mas pouquíssimas vezes vamos ao encontro de alguém para que reze conosco. Está aqui um ponto que modifica e determina o modo de viver as relações; e quanto mais tivermos consciência de que com aquela (as) pessoa (as) podemos fazer oração sempre que precisarmos, mais íntima nos será (ão) aquela (as) pessoa (as). Isto não significa tornar as nossas relações assim, meio angelizadas, mas, isto sim, humanizá-las e amadurecê-las a um grau que de outro modo não alcançaríamos. E que isto sirva de critério para determinar a qualidade das nossas relações mais íntimas: eu poderia com confiança e sem receio me aproximar de ‘fulano’ e pedir que rezasse comigo? Não estou dizendo que quem não reza não pode ser nosso amigo, mas que se rezar e rezar por nós como rezamos por ele e rezar conosco será cada vez mais amigo, pois estará buscando conosco o nosso maior bem, Deus - a felicidade mesma!

Assim vivendo a oração chegaremos ao ponto de falar aos outros com Deus, isto é, de não prescindir de Deus nas nossas conversações, de não nos esquecer dEle. De falar como se ‘pronunciássemos palavras de Deus’ (cf.: 1Pd 4, 11). Isto muito vai melhorar as coisas que dizemos, pois que serão dignas de Deus, logo, dignas do ser humano.

A segunda prática é a do jejum. Jejuar é abster-se, geralmente de comida tendo uma finalidade clara diante dos olhos. Trata-se então da renúncia em vista de outro bem e esta renúncia só se justifica se o bem almejado for superior ao bem renunciado. Como se depreende do que ficou dito, as nossas relações interpessoais são marcadas pelo pecado e é indubitavelmente um bem recapitulá-las, recriá-las, santificá-las e em vista deste bem é lícito, louvável e urgente que renunciemos conscientemente certas coisas.

Melhoramos nossas relações interpessoais através da prática do jejum, entre outras, com as seguintes formas:

Jejuar do desejo de respostas imediatas por parte de Deus às nossas questões. Deixemos Deus ser Deus. Afinal, que pressa teria quem é eterno? Deus não chega atrasado! Nós é que costumamos não ver que quando não o vemos chegar e responder é que Ele está já aí e que Ele mesmo é a resposta! Isto nos ajuda a jejuar da mania de ter respostas prontas pra todas as problemáticas que os outros nos apresentam. Por não jejuarmos disso, muitas vezes prejudicamos o outro com conselhos apressados cheios da nossa pretensa sabedoria. Jejuar assim nos ajuda a ser mais dados às perguntas...

Jejuar do julgamento precipitado. Talvez como extensão da mania de ter respostas pra tudo, temos também a prática de julgar apressadamente sobre as disposições dos outros, sobre as suas intenções e, não raro, por sermos geralmente dados à possessividade, julgamos também por nós mesmos, por indução, o que os outros pensam a nosso respeito e o que sentem por nós. Isto é desgraça! Jejuar deste tipo de juízo nos ajuda a ser mais dispostos à misericórdia para com os outros, a deixá-los em liberdade e também não nos tornar escravos deles e do que eles sentem e pensam a nosso respeito: somos como Deus nos fez e estamos como Deus nos vê!

Jejuar da maledicência. Maledicência, dizer o mal. Jejuemos de dizer ao outro aquilo que do outro outro é defeituoso e desagradável. Claro, distingamos que nem tudo o que dizemos do outro a respeito dos seus defeitos é maledicência. A maledicência se caracteriza pela intenção que tenho quando falo de alguém. Quando falo a respeito do fulano e seus defeitos e pecados a intenção que tenho é a de tornar a sua fama ruim? De estragar a relação dele com os demais fazendo-os pensar dele como eu penso? Estas são algumas das faces da maledicência que quando praticada com certo hábito revela-nos algo mais de que jejuar: da tendência de dominar tudo e todos. As coisas não podem ser sempre do modo como queremos que sejam. O outro não é uma extensão de nós mesmos! Não é obrigado a cumprir as nossas expectativas!

Perceba o leitor que todos esses jejuns que temos apresentado perfazem um único jejum: o jejum do nosso egoísmo que é a causa de todas essas desordens das quais temos de jejuar se quisermos nos relacionar bem. Seja-me permitido marcar este jejum com um neologismo: jEUjum!

Que dizer da esmola? Advirtamos que a esmola não deve ser tomada no sentido comum que lhe é dado: uma pequena contribuição dada ocasionalmente de algumas moedas que nem mesmo falta nos fariam... Dar esmola, bem visto e apreciado, é ir ao encontro do outro e das suas legítimas necessidades. Assim vemos que não há como dar esmola sem fazer jEUjum! Sem sair de si mesmo é impossível dar esmola que não humilhe quem a recebe. A prática da esmola ilumina a nossa interrelacionalidade na medida em que a praticamos assim:

Dar relevo às qualidades dos outros – adquirir a prática do elogio sincero (porque bajulação todo mundo percebe que carece de fundamento na realidade), da benedicência, dizer o bem e não só para a pessoa objeto do elogio mas também para os outros, criando assim ambientes de simpatia e menos hostilidade.

Dar importância aos outros e às suas coisas- será que somos nós os que no mundo mais sofremos e precisamos de compreensão, carinho, ajuda, etc.? O novo testamento nos aconselha a ‘considerar os outros mais dignos de estima’(Rm 12, 10) e a cuidar não só das nossas coisas.

Dar promoção ao outro – promovê-lo, ajuda-lo a crescer em liberdade e em todas as virtudes, primeiramente não sendo um empecilho pra ele e depois fazendo tudo o que estiver ao nosso alcance.

Dar mostras de misericórdia aos outros – é possível quando percebemos e vivenciamos as mostras de misericórdia que Deus, justo e santo tem para conosco. Resulta então que também a verdadeira esmola, aquela que de fato faz bem ao outro, não é possível sem a oração. Dar mostras de misericórdia é perdoar e perdoar é: jejuar da justa vingança e de ver no outro somente a injustiça que ele cometeu conosco; é dar (esmola) ao outro, sempre que possível, uma nova oportunidade; é dar também o outro a si mesmo, uma vez que assim promovemos nele uma visão mais completa e realista da sua própria pessoa que não é onipotente na maldade...

O leitor a esta altura já deve estar percebendo que oração, esmola e jejum também são práticas relacionais, não existem sozinhas, estão em relação umas com as outras e quando nos relacionamos com elas, nos relacionamos bem com o Outro e com os outros!

Resta apenas um apelo: não jejuemos da oração, do jejum e da esmola! Não demos em esmola a nossa responsabilidade de orar, jejuar e dar esmola; e, sobretudo não oremos pedindo que não precisemos jejuar, dar esmolas e orar... Tomemos a sério o fato de que somos responsáveis pela qualidade das nossas relações interpessoais e que praticar o que aqui ficou dito nos leva a um conhecimento mais vasto e seguro de nós mesmos.