A Hermenêutica do Neo-estruturalismo Semiótico: Acompanhada de Brevíssima Leitura de “Cidadezinha Qualquer”, poema de Drummond.
A Hermenêutica do Neo-estruturalismo Semiótico: Acompanhada de Brevíssima Leitura de “Cidadezinha Qualquer”, poema de Drummond.
Prof. Dr. Jayro Luna (Jairo Nogueira Luna)
A Hermenêutica Literária tem suas bases teóricas num tripé formado por Heiddeger (especialmente no que se refere ao conceito de Dasein), Dilthey (e sua concepção histórica) e Gadamer.
Método que valoriza uma atitude menos deflagratória de processos incisivos de análise estrutural e formal do texto, mas que também não se apresenta apenas como ratificação dos elementos sócio-políticos-culturais da obra. Na Hermenêutica existe como que instalada uma co-autoria no processo de análise crítica entre o crítico-leitor e a obra analisada. Nesse processo a obra oferece uma gama de possibilidades interpretativas, cabendo ao crítico uma tarefa de organização, seleção, construção e ordenação desses elementos numa simbiose crítico-criativa. Nesse sentido é um dos mais ricos processos de análise literária.
Wilhelm Dilthey opunha a explicação à compreensão, de modo que a primeira seria própria das ciências naturais, ao passo que a segunda seria mais característica das ciências do espírito ou humanas. Posteriormente, Paul Ricoeur supera essa dicotomia ao propor que a compreensão do texto pressupõe uma relação com outros textos ou ainda o encadeamento de discursos. Nesse sentido a compreensão contém uma necessidade de explicação e vice-versa.
A Hermenêutica é um método de interpretação de textos, principalmente escritos. A Hermenêutica bíblica, p. ex., busca compreensão dos textos ditos sagrados ou religiosos para extrair do processo de interpretação um conjunto de idéias que se considera latentes ou entrevistas, mas não totalmente compreendidas pela leitura linear do texto. Por isso mesmo, a Hermenêutica tem uma relação com a busca da interpretação simbólica do texto. A Hermenêutica aproxima-se sobremaneira do discurso filosófico e distancia-se um pouco do estudo específico da linguagem enquanto dicotomia formalista forma / conteúdo.
Buscando superar a pretensa impessoalidade das análises críticas fundadas numa postura de objetividade, mas também evitando o subjetivismo das inferências pessoais, a Hermenêutica supõe a intersubjetividade. Nesse âmbito, a análise hermenêutica literária cria um diálogo constante entre crítica e obra de modo a compor um caminho projetivo em que aspectos da obra sejam interpretados num sentido amplo que englobe a questão do ser-aí (Dasein) com fundamentação histórica e filosófica. Assim, a obra literária deve superar pelas suas qualidades intrínsecas os limites de seu tempo e espaço para um âmbito intertemporal que abarque a tridimensionalidade do tempo (presente, passado, futuro). O trabalho do crítico é o de, entre outras coisas, demonstrar as constantes e as atualizações temáticas envolvidas nesse processo de superação do tempo e do espaço e também suas relações sincrônicas com o tempo dado.
Benedito Nunes, analisando as questões que envolvem filosofia e poesia em Heiddeger argumenta a necessidade de um tempo presente contíguo entre obra e leitor:
“ ‘Objeto’ vem de ob-jectum, aquilo que é posto diante do sujeito, e com que ele se defronta. Mas, para que haja esse confronto, de tal modo que o objeto do conhecimento se oponha ao sujeito que o apreende, será preciso que as coisas nos sejam dadas, ‘horizonte de realidade indeterminada’ já abrangido pelo Dasein. O conhecimento, enquanto correlação irreversível do sujeito e do objeto - do sujeito que apreende o objeto e do objeto que determina as representações do sujeito -, só é possível mediante a transcendência da conduta, que se espraia no mundo sem estar dentro dele.”
(NUNES: 1992, p. 73)
Gianni Vattimo em sua obra O Fim da Modernidade, argumenta que a influência de Heidegger para a determinação da Hermenêutica compreende mais do que o conceito de Dasein:
“Geralmente, considera-se que Heidegger fornece as bases da ontologia hermenêutica, na medida em que afirma a conexão - quase identificação - do ser e linguagem. No entanto, bem além dessa tese - em si mesma bastante problemática -, há outros aspectos da filosofia heideggeriana que têm importância basilar para a hermenêutica e que podem ser assim resumidos: (a) a análise do Ser-aí (isto é, o homem) como ‘totalidade hermenêutica’; (b) nas obras tardias, o esforço para definir um pensamento ultrametafísico em termos de An-denken, rememoração, e, mais especificamente em termos de relação com a tradição. São precisamente esses dois elementos que conferem conteúdo à indicação geral do nexo entre ser e linguagem, qualificando esse nexo num sentido niilista.”
(VATTIMO: 1996, p. 111-112)
Voltando a Benedito Nunes, este afirma que o Dasein confere na condição de finitude o limite necessário que elide ser e fazer de modo que a historicidade do ato seja o ponto necessário da fusão entre compreensão e explicação:
“A temporalização, que possibilita a estrutura da subjetividade e conseqüentemente a transcendência do Dasein, é o tempo originário finito, que elucida fenomenologicamente o fundamento da existência desse ente, cuja essência provém da compreensão do ser. Incontornável, essa compreensão, que nos coloca no circuito ontológico que vai do ente ao ser - também movimento circular de temporalidade extática finita -, é a essência íntima de nossa finitude que se exprime no cuidado. A finitude, que descarta o absoluto e a totalização superadora do fim por meio do intelecto (...) também descarta o poder de principiar e de começar absolutamente, que o idealismo atribuiu ao sujeito humano. Quando o homem conhece e faz, tem sempre como prelúdio a compreensão do ser inerente ao seu Dasein cuidadoso, que recebe do tempo a possibilidade de fazer e de conhecer.”
(NUNES: 1992, p. 156)
Na Hermenêutica situações entre leitor e obra devem ser consideradas segundo um prisma histórico. Assim as relações entre a obra do passado e o leitor do presente implicam em desdobramentos, como o texto e sua época e o leitor e sua época e que elementos superam os limites desse tempo e por que motivos isso acontece. Ernildo Stein num artigo no caderno “Mais” da Folha de S.Paulo lista as características da Hermenêutica com base nas teses de Gadamer:
“Ele reconhece-lhe assim algumas características importantes: a) a hermenêutica é capaz de descrever as estruturas da reconstituição da comunicação perturbada; b) a hermenêutica está necessariamente referida à práxis; c) a hermenêutica destrói a auto-suficiência das ciências do espírito assim como em geral elas se apresentam; d) a hermenêutica tem importância para as ciências sociais, na medida em que demonstra que o domínio objetivo delas está pré-estruturado pela tradição e que elas mesmas, bem como o sujeito que compreende, têm seu lugar histórico determinado; e) a consciência hermenêutica atinge, fere e revela os limites da auto-suficiência das ciências naturais, ainda que não possa questionar a metodologia de que elas fazem uso; f) finalmente, hoje uma esfera de interpretação alcançou atualidade social e exige, como nenhuma outra, a consciência hermenêutica, a saber, a tradução de informações científicas relevantes para a linguagem do mundo da vida social.”
(STEIN: 2002)
O termo “Hermenêutica” tem sua raiz etimológica em Hermes (Mercúrio), deus mitológico da comunicação, da mensagem e nos remete à hermenéia aristotélica enquanto método de interpretação. Uma vez que o método, em certo sentido, utiliza-se de uma apropriação da tradição com vistas a superar a impessoalidade e o distanciamento da verdade enquanto conceito atemporal para inseri-la nas condicionantes históricas do ato de leitura e interpretação, uma observação mais direcionada no próprio sentido mitológico de Hermes /Mercúrio nos permitem algumas inferências hermenêuticas.
Um dos aspectos de Hermes / Mercúrio menos lembrados se comparada a sua imagem de pequeno deus voador que se apresenta como mensageiro dos deuses é a figura de deus dos ladrões. Hermes, filho de Zeus e sua mãe era a ninfa Maia. Desde criança, Hermes já roubou o casco de uma tartaruga, do qual fez a lira, depois roubou o rebanho de Apolo e, quando foi descoberto, foi julgado por Zeus no Olimpo. Impressionados com a esperteza e ligeireza de Hermes, Zeus e Apolo fizeram dele o condutor das almas deste mundo para o próximo, função que já pertencera ao deus-sol.
As imagens de Hermes apresentam-no calçado de sandálias com asas, com o chapéu denominado pétaso e levando na mão o caduceu, símbolo de suas funções de arauto. Costumava-se dizer que era o mais ocupado dos deuses.
Nesse sentido também está o leitor crítico. De certa forma o ato de interpretação é um roubo, uma apropriação em débito do passado. Cada leitura que fazemos do passado resulta numa invenção deste para o presente. O passado em si, por si, torna-se inatingível, inteligível, quando não e de fato, inexistente. O que existe, em suma, e a invenção do passado. Por outro lado, o presente é o contínuo superado. Assim, ler no sentido hermenêutico é reinventar e redescobrir, porquanto só pode ser um roubo histórico, um seqüestro da história com vistas à inteligibilidade do presente.
Hermes também desenvolveu processos de adivinhação, de modo que podia fazer uma leitura do futuro por intermédio de pequenos seixos. Do mesmo modo o crítico hermeneuta busca a compreensão do devir com bases no dasein. Como observa Gianni Vattimo:
“Tudo isso significa que o Ser-aí só se funda como uma totalidade hermenêutica na medida em que vive continuamente a possibilidade de não existir mais. Podemos descrever essa condição dizendo que a fundação do Ser-aí coincide com seu ‘desfundamento’: a totalidade hermenêutica do Ser-aí é fundada unicamente em relação com sua possibilidade constitutiva de não existir mais.”
(VATTIMO: 1996, P. 114-115)
O deus Hermes podia se mover livremente, pela sua esperteza e ligeireza, entre o mundo subterrâneo (Hades), a Terra e o Olimpo. Não havia outra divindade que pudesse fazer isso com igual capacidade. Analogamente, a mente humana pode ser considera como constituída desses três mundos, o inconsciente profundo (nosso Hades), a Terra (nosso ego), o Olimpo (o conhecimento da totalidade buscado e nunca encontrado).
No Neo-estruturalismo Semiótico o mito de Hermes também se fundamenta numa possibilidade de leitura em que a existência do simbólico como natural do domínio mais profundo da mente só possa ser interpretado por uma consciência hermética (de Hermes) que com habilidade e ligeireza consiga recriar ou dito de outro modo, ressignificar constantamente. Quando Hermes com as tripas de dois bois roubados a Apolo e o casco da tartaruga fez a lira estava agindo de modo análogo ao que propomos como atitude crítica do Neo-estruturalismo Semiótico. A cada leitura o crítico deve inventar um novo instrumento artístico que se fundamenta nas possibilidades de relações entre os objetos de que dispõe e que de se utilizou para a leitura. Nesse sentido, podemos ler um poema de Drummond, como “Cidadezinha Qualquer” e buscar nele a imagem de Mercúrio (planeta) em movimento retrógrado. De fato, Mercúrio que não dista astrologicamente mais que 28.° do Sol, tem um movimento aparente em que a par da sua decantada ligeireza tem por vezes um movimento de estagnação. Como observam Guttman e Johnson:
“E, mesmo se todos os planetas, exceto o Sol e a Lua, ficarem retrógrados por um certo tempo, a retrogressão de Mercúrio, três vezes por ano, três semanas a cada vez, ganhou a reputação de um período em que tudo enlouquece. Se Mercúrio é realmente mensageiro, o viajante, a ligação deste mundo com o próximo, o movimentador da informação e do comércio, seu movimento estacionário ou retrógrado afetará aparentemente todas essas operações - especialmente hoje, em um mundo em que computadores, viagens pelo ar, aparelhos de fax, telefones, registradoras, serviços telegráficos e assemelhados realmente parecem manter o mundo funcionando suavemente.”
(GUTTMAN & JOHNSON: 2005, P. 57-58)
No caso do poema de Drummond, “Cidadezinha Qualquer”, a imagem de um lugar em que o tempo parece estagnado, em que o passado se mantém a despeito da fluidez para o presente e o que se presentifica é o inverso, a permanência do passado sobre o presente:
Cidadezinha qualquer
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.
Êta vida besta, meu Deus.
(DRUMMOND: 1930)
Por outro lado, Mercúrio aí se apresenta ativo no entrevisto, na fórmula e na forma do poema. A ironia modernista (Êta vida besta, meu Deus), a ausência de pontuação e a justaposição de palavras (pomar amor cantar) e na proposição de que o cenário singelo da cidade interiorana - marca de uma visão romântica e neoclássica da relação urbe / orbe - constituem fatores de uma poética ágil na interpretação da tradição e na compreensão de que a linguagem funda verdades enquanto método de apreensão das realidades.
Se a união amorosa entre Hermes e Afrodite gerou o hermafrodita, masculino e feminino. Se nos fundamos no estudo do inconsciente a partir da linha Freud - Jung, encontramos que o inconsciente possui esse par masculino-feminino presente de modos invertidos no homem e na mulher, igualmente no poema de Drummond, a forma (aspecto feminino, o Eros) se associa como elemento constitutivo do poema ao lado do Conteúdo (o Logos, elemento masculino) para compor a totalidade. Esta, por sua vez supera a ambiência do Mercúrio retrógrado pela idéia de poesia moderna que critica e reinventa a visão do cenário romântico da tradição.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Alguma Poesia, 1930.
GUTTMAN, Ariel & JOHNSON, Kenneth. Astrologia & Mitologia. São Paulo, Madras, 2005.
NUNES, Benedito. Passagem Para o Poético: Filosofia e Poesia em Heidegger. São Paulo, Ática, 1992.
STEIN, Ernildo. “A Consciência da História: Gadamer e a Hermenêutica” em: Folha de S. Paulo, Caderno Mais, 24/03/2002.
VATTIMO, Gianni. O Fim da Modernidade: Niilismo e Hermenêutica na Cultura Pós-Moderna. São Paulo, Martins Fontes, 1996.