Benjamin, leitor de Platão.
Para Ítalo Calvino, era “clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo”. Assim, a obra clássica – aquela que passando dos limites aparentes do tempo, foi lida por gerações e que marcou o debate intelectual – traz ao leitor da contemporaneidade, o “extemporâneo”. Condição assumida esta, que só pode ser alcançada, por esta provocar discussões e sentimentos aos leitores, independente do juízo de valor, positivo ou negativo, para além do tempo de sua escritura. Mas, se ela desloca-se do tempo linear, não pode prescindir do tempo-de-agora, que a ressignifica. Mais do que um escrito jogado no tempo, a obra que se torna clássica não pertence a si, e está sempre sendo invocada, de forma esotérica ou exotérica, para iluminar a opacidade do vivido.
Na filosofia, temos em Platão um autor clássico. A ponto do filósofo britânico, Alfred Whitehead, apontar que: “Toda a filosofia ocidental é uma nota de rodapé à obra de Platão”. Sem entrar no mérito da hipérbole, não podemos negar que, foi em Platão, onde a filosofia ocidental apresentou suas questões centrais, sendo objeto de estudo por quase toda sua história procedente. Com suas obras clássicas, Platão continua sendo um autor para além de seu tempo, sem por isso, poder abdicar das chamas materiais do agora. Neste texto, pretendemos analisar fragmentos da obra de Walter Benjamin, a partir, de sua releitura da obra platônica, em especial, sua teoria das ideias.
Platão distingue o mundo das ideias – mundo do suprassensível, do incorpóreo, do imutável, da unidade, da perseidade –, do mundo sensível – mundo do fenômeno, do corpóreo, do mutável, do múltiplo. É importante destacar que as ideias platônicas são: a forma, a estrutura. Em Platão, a metafísica ganha suas primeiras e essenciais abordagens.
Nos seus textos mais jovens, Benjamin pretende fazer uma nova leitura da tradição metafísica, criando um tertius, através de um pensamento original, para dar fôlego às críticas modernas, sem perder de vista a autêntica experiência metafísica. Assim, um de seus objetivos será recuperar “a dimensão do sagrado”, que para o nosso autor, significa retomar a dimensão universal das ideias. E vai ser no famoso prefácio da “Origem do drama barroco alemão”, que Benjamin apresentará sua teoria do conhecimento, produzindo reflexões sobre: a parte e o todo, o particular e o universal, as ideias e as coisas, o nome e a palavra.
Inspirado em Platão, Benjamin distingue, sem separar, o mundo das ideias e dos fenômenos. Um necessita do outro. Sem a iluminação dos fenômenos, as ideias são opacas, sem brilho, e “permanecem obscuras até que os fenômenos as reconheçam e circundem” (BENJAMIN, 1984: p. 58). Sem as ideias, os fenômenos são vazios, não tem substância, estão condenados à dispersão e a morte, pois, ao não se agruparem em uma estrutura, se dispersa, e ao virar simples fato está entregue ao pensamento abstrato, perdendo a sua especialidade, o particular, morrendo. Ao contrário de Platão, e aqui se utilizando de Aristóteles e Hegel, Benjamin admite a atualização das ideias; para ele, as ideias não são os sóis permanentes do mundo platônico. Sem o mundo sensível, elas são tão escuras, quanto o fenômeno sem substância.
Durante muito tempo, convencionou-se chamar a gnosiologia platônica de “dualista”, por separar forma e matéria. Além de ser classificado como um idealismo transcendente, já que o homem para chegar ao mundo das ideias – mundo inteligível – deve sair do corpo, e ver com o olho da alma. Mas, para Giovanni Reale: “trata-se de puro preconceito teórico [...] Desde logo, observa-se que as ideias têm tanto de ‘imanência’ quanto de ‘transcendência’ [...] Para Platão, a transcendência das ideias é justamente a razão de ser da sua imanência. As ideias não poderiam ser a causa do sensível se não transcendessem o próprio sensível; e, justamente, transcendendo-o ontologicamente podem ser o fundamento de sua estrutura ontológica imanente” (REALE, 2007: p.76). Assim, apesar da distinção, não existe uma separação radical entre plano do suprassensível e plano do sensível. A essência precisa transcender o material, para ser o fundamento ontológico do mundo sensível. Por isto, entre o sensível e o inteligível, existem várias relações: mimética, comunhão, participação ou presença. O sensível por ser uma cópia do mundo das ideias, carrega sua normatividade ontológica, o dever-ser das coisas. Como elementos intermediários, Platão coloca: o Eros, o amor, a beleza, mas, principalmente, a matemática.
Benjamin verá na linguagem este papel de médium entre as ideias e os fenômenos. O conceito, como médium, opera a divisão dos elementos constitutivos do fenômeno, para que assim, enquanto elementos – a radicalidade do fenômeno, seus extremos – possam entrar na esfera das ideias, salvando-se. Inversamente, as ideias, assim, podem se apresentar, num jogo de luzes, tornando-se concretas. Desta forma, o conceito ao mesmo tempo: salva o fenômeno e apresenta as ideias. O nome é a parte comunicável da essência, a essência linguística. Assim, o nome revela sopros do paraíso, do mundo das ideias, do suprassensível, a partir de sua mediunidade com a materialidade. A linguagem consegue fazer este papel de médium por ter duas dimensões: a sagrada, do nome, anterior a queda; e a profana, da palavra, instrumento de comunicação. A ideia está no nome, e o fenômeno na palavra. O crítico salva a palavra, levando-a ao nome - estado original -, e atualiza este, que pode ser renomeado pela dimensão sagrada nomeadora. A linguagem, assim, permite que o mundo sensível entre em contato com o suprassensível, tendo em vista que, se a palavra alude à comunicação, funcionando como instrumento, resguarda sua dimensão sagrada, o nome, a substância, o sentido das coisas. Assim, como a Matemática, para Platão, estava além do caráter convencional, apresentando o caráter numérico do mundo das ideias: a unidade, por exemplo.
Depois dessas considerações, como então, para ambos, poderíamos ter acesso ao mundo das ideias? Influenciado pelo orfismo, para Platão, existia uma distinção entre corpo e alma. O corpo aprisiona a alma, depois da queda desta. O olho do corpo só vê o sensível, o físico; enquanto, o olho da alma vê o suprassensível, o metafísico. É o olho da inteligência que alcança o plano da estrutura, por isto, o mundo das ideias é inteligível. A alma, caída no corpo, mantêm inscrições do mundo das ideias. Por isto, conhecer é relembrar (anamnesis). Através das reminiscências, lembrar-se do passado da alma no mundo das ideias. Se o conhecimento é relembrar-se, não é o sujeito que cria um meio, mas é a verdade que se apresenta; estando de acordo com o método de exposição platônico: os diálogos. Assim, para Platão, a verdade se expõe num gesto de beleza. Lendo radicalmente “O banquete”, Benjamin destacará que a “verdade é o teor essencial da beleza” e a “verdade é bela”; desta maneira, a beleza se encontra muito além da aparência, estando em contato com o “deve-ser” da ideia do belo; e do mesmo jeito, a verdade depende da beleza para apresentar-se, ganhar vida, caso contrário perderia sua “realidade efetiva”. Portanto, se em Platão existe uma subsunção ontológica entre ideias e fenômenos, hierarquizando e submetendo o sensível ao inteligível; em Benjamin, a partir de uma leitura hegeliana de Platão, os dois mundos se encontram em maior interdependência, não existindo uma submissão ontológica, em última instância, do aparecer ao ser.
Na filosofia platônica, com a morte (dissolução), o corpo libera a alma, que purificada, pode transcender os sentidos, encontrar-se com o mundo suprassensível, elevando-se ao inteligível. Assim, a alma está livre para tomar posse do seu estado original, o mundo das ideias, e expor a verdade, através das reminiscências. Por isto, o conhecimento é a morte do mundo convencional do corpo. O conhecimento é pesquisa, processo que nos conduz do sensível ao inteligível, e por isto, conversão moral, cura da alma.
Para Benjamin, a verdade, mesmo sendo transcendente, é imanente ao sensível. Ela não se representa, mas se apresenta, depois de caminhos e descaminhos com o mergulho na imanência do objeto. A verdade é a morte da intenção, ela só se apresenta depois de sua dissolução. A verdade é uma determinação imediata, universal, uma unidade no ser, faz parte das esferas das ideias. A verdade não se representa, ela se apresenta num instante de relâmpago no conceito.
Por homogeneizar as diferenças, o sistema não é receptivo a apresentação da verdade, já que ela violenta o objeto para enquadrá-lo. Benjamin vê no ensaio ou tratado, uma via de renúncia da intencionalidade do sujeito, fazendo o objeto de se apresentar num mosaico de fragmentos. Por isto, o crítico não deve se utilizar do conceito para intencionalmente transforma-lo em saber, como se a linguagem fosse mero instrumento, mas através do conceito, dissolver os elementos da materialidade em seus extremos, nas ideias, salvando os fenômenos da falta de sentido e da falta de substância, e iluminando o mundo das ideias.
Outros aspectos poderiam ser abordados, como a noção de “díade” da protologia platônica, que tem afinidades esotéricas com a proposta benjaminiana. Mas, como não é nossa pretensão esgotar o assunto, abordamos neste texto, as partes mais significativas da releitura benjaminiana da grandiosa obra clássica, de Platão.
Referências Bibliográficas:
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Ed. Brasiliense. São Paulo, 1984.
GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Do conceito de Darstellung em Walter Benjamin ou verdade e beleza. Acesado em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-512X2005000200004.
PLATÃO. Diálogos: 6 volumes. Ed. Edipro.
REALE, Giovanni. Platão. Edições Loyola. São Paulo, 2007.