RANÇOS E AVANÇOS DO PLURALISMO JURÍDICO

1. A CRISE NO POSITIVISMO JURIDICO

O Positivismo Jurídico nasce da expressão “Direito Positivo”, que originalmente foi criado como contraponto ao “Direito Natural”. Durante vários momentos da história, o pensamento humano sempre coloca em oposição essas duas visões (Direito natural versus Direito positivo) pontuando defesas ou críticas às mesmas. No entanto, foi somente na Revolução Francesa, pautada nos ideais de igualdade, liberdade e fraternidade, que a visão positiva do Direito se consolidou com pretensões de promover maior segurança jurídica a todos de um mesmo modo.

Na atual conjuntura, o Direito positivo se apresenta como um modelo de organização do Direito ambicioso por satisfazer todas as necessidades jurídicas da sociedade de modo a cercear possibilidades de falhas ou lacunas. Sendo assim no Dirieto positivo não existe lugar para subjetividades e valorações. Há na verdade uma estrutura jurídico-política que se ocupa da observância de aspectos normatizados pelo Estado. Esse modelo jurídico pretende alcançar toda uma realidade social através de seu sistema normativo.

Até fins do século XVIII as normas jurídicas estavam desorganizadas. O movimento burguês em busca de estabilidade jurídica acabou gerando o ambiente propício para o borbulhar do Positivismo Jurídico através de teorias que visavam dirimir a insegurança e as anomias sociais. Os conceitos basilares desse ordenamento estatal residiam em três aspectos: unidade, que tinha como característica fundamental a exclusividade da norma (somente ela teria legitimidade para gerar direitos), coerência, negando a existência de normas incompatíveis no mesmo ordenamento e a completude apregoando a não existência de lacunas na lei.

O empreendimento para abolir a noção de um Direito Natural decorre do movimento racionalista, a partir do qual, se diz que bem e mal se resultam unicamente de influências sociais como educação, leis e costumes. Ora, se bem e mal são da ordem da sociedade, podem e devem ser regulamentados por ela mesma. Assim, a conclusão positivista é de que o estudo do direito é estudo de normas vigentes impostas pelo Estado e reconhecidas pela sociedade.

O pensamento racionalista, que tem como base o ordenamento jurídico, nega a existência de um direito natural. Nas teorias de Kelsen, o Direito é reduzido à norma. As normas se fundamentam em normas superiores e todas elas são validadas por uma norma hipotética fundamental. Nessa rede de influências não há espaço para o jusnaturalismo. Razão pela qual Cerroni critica severamente a visão Kelseniana de uma norma “subjetiva” fundamentando todo um ordenamento rigorosamente objetivo.

Kelsen não se propõe a provar o que é Norma Fundamental. Antes, apresenta-a como um pressuposto necessário para validação de todo o ordenamento. Nisto sua hipótese parece contradizer a concretude que o juspositivismo exige. Kelsen trata o direito com uma postura anti-ideológica, analisando-o enquanto norma, sem enganos ou deformações da realidade social. Estabelecendo assim a “teoria pura do direito”. Por isso acusa Marx de confundir o verdadeiro direito científico e normativo com uma teoria ideológica do que seria o Direito, uma vez que Marx o define como fruto materializado do pensamento jurídico burguês a serviço de uma minoria privilegiada da sociedade.

Só com o Comunismo assumindo a superestrutura (Estado), na visão marxiana, é que o Direito seria justo, verdadeiro e genuíno, pois o direito burguês é um direito de desigualdades. É nessa ótica que várias correntes trilham ao questionar a hegemonia do modelo estatal, pois, o Positivismo Jurídico ignora qualquer questão além da lei posta pelo Estado. A lei o estrutura e ele se volta para a satisfação desta mesma lei.

Contudo, com o advento da segunda guerra e com as conseqüências da modernidade (globalização, capitalismo, industrialismo, vigilância e problemas sociais de toda ordem) houve uma crescente preocupação com a pessoa humana, fato que entre nós está representado pela nossa atual constituição e que nos mostra a pretensa intenção do positivismo de abarcar todas as áreas positivando inclusive a dignidade da pessoa humana.

Diante de tantas lacunas oriundas do ordenamento estatal, nos cabe questionar aos agentes políticos, legisladores e juízes até que ponto o Direito Positivo oferece soluções satisfatórias para esta sociedade. É necessária a ênfase da expressão “satisfatória” por representar o cerne da questão. Não se trata apenas da busca pela solução de conflitos, mas da busca pela solução satisfatória.

2 . RANÇOS E AVANÇOS DO PLURALISMO JURÍDICO

Esse trabalho teve como escopo a analise da crise e ineficácia do positivismo jurídico dogmático em face da nova sociedade que erige neste último século, bem como elucidar questões acerca do pluralismo jurídico que surge desta dicotomia pontuando tanto seus ranços quanto seus avanços. Comecemos então pela definição do termo e pela reflexão de suas origens.

Para Wolkmer, que na atualidade se destaca como teórico dessa corrente, pluralismo jurídico “é uma multiplicidade de práticas existentes num mesmo espaço sociopolítico, interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser nas necessidades existenciais, materiais e culturais”.

Segundo ele, o pluralismo jurídico-político é a solução para a atual crise que passa o direito positivo, amplamente debatida no início desse texto, pois engloba em seus principais pressupostos a legitimidade dos novos sujeitos coletivos e a democratização entre outras propostas. E quais seriam esses tais pressupostos? O surgimento de novos sujeitos sociais, o sistema de satisfação social, a viabilização das condições de implementação de uma política democrática e a formulação de uma ética da alteridade são a resposta para essa indagação.

O pluralismo atravessou várias fases da história do ocidente. Precisar seu nascedouro contudo, é tarefa difícil. Há quem defenda que ele sempre existiu e apresenta-se no passado ora mais timidamente ora mais abertamente que agora. Há quem diga, que é da Idade Média que ele se origina em contraposição ao monismo estatal e ao poder irresponsável do rei. E há os que advogam ser o pluralismo um fenômeno atual, das sociedades contemporâneas.

No período medievo, realmente as forças de seus vários ordenamentos era tão grande que quase se anulavam mutuamente. Os feudos mantinham a ordem local seguindo as normas dos seus senhores e lá, o poder do rei tinha pouco alcance. A igreja por sua vez tinha sua própria estrutura normativa e seus próprios códigos e questionava de igual modo o poder secular da monarquia. Cada classe exercia o direito como lhe conviesse e assim, cresce a descentralização territorial e os poderes que dantes se formavam de costumes locais, foros municipais, estatutos das corporações de ofício, ditames reais, direito canônico e Romano tornam-se cada vez mais concorrentes.

Para dirimir tantos conflitos é que surge no século XVII o “Tratado de paz de Westfália” delimitando territórios, determinando a jurisdição e firmando a soberania do Estado. E assim e aos poucos, o absolutismo se instaura. O pluralismo legal e judiciário é significativamente reduzido às mãos do Estado.

A concepção monista do Estado teve apoio não só na teoria Hobbesiana, em seu afã pela igualdade de todos perante uma legislação comum. A República Francesa e o código civil napoleônico administravam a cidade e a sociedade partilhando da mesma visão, enquadrando todos sob o mesmo regime.

Boa ventura assevera que o surgimento do pluralismo jurídico teve duas causas concretas a saber: a origem colonial e a não colonial. A primeira desenvolve-se em regiões dominadas por outra, tanto na política quanto na economia, forçadas a obedecer aos padrões legais do seu conquistador e por isso provocando a coexistência no mesmo espaço-tempo do direito autóctone e do imposto pela metrópole a exemplo do que viveu o Brasil no período colonial.

Na segunda, aponta três situações possíveis. Uma é a adoção de ordenamento europeu na tentativa de modernizar-se a exemplo do que fez a Turquia com a troca de seu sistema normativo. Semelhantemente coisa se dará com os países pós revolução política quando ainda mantém por um tempo o Direito rejeitado pelo atual direito forjado no conflito. Assim ocorreu em algumas repúblicas islâmicas incorporadas pela antiga URSS. A última situação seria vista nas populações indígenas dizimadas pelos invasores e ainda assim recebem permissão para continuar com seu Direito autóctone.

Acredita Maliska que o Brasil tenha desenvolvido essa pluralidade por pelo menos três desses motivos. Um, porque foi colonizado. Dois, porque o ordenamento que lhe foi imposto era europeu e proporcionou a convivência em paralelo com o poder estatal. O terceiro motivo são as discrepâncias sociais que empurram esses indivíduos contra a parede. A sociedade moderna marcada pelo capitalismo exacerbado aumenta a desigualdade entre os homens e portanto, as normas passam a não atender mais aos interesses de alguns grupos. Aí é que a ressurreição do pluralismo acontece.

Joaquim A. Falcão diz que a causa está na crise da legalidade política e ocorrerá sobretudo em países do terceiro mundo por conta das várias situações extra-legem ou para-legais que apresentam como é o caso brasileiro sendo aceitas ou renegadas pelo Direito oficial.

Jacques Vanderlindin acredita que sejam duas as causas gerais desse fenômeno. A primeira está relacionada à injustiça e a segunda conforme já abordamos, se relaciona a ineficácia do modelo monista. Como bem disse José Eduardo Faria, “a dogmática passa a enfrentar dificuldades insuperáveis para lidar com a crescente flexibilidade dos sistemas jurídicos e com sua progressiva capacidade de adaptação a tensões e conflitos de natureza coletiva. Porque tais tensões e conflitos já não se encaixam no estreito limite das soluções individualizadoras forjadas a partir das codificações do séc. XIX.”

Hoje, trilhando nas veredas de Boaventura, o pluralismo nasce de duas causas, uma delas, são as lutas sociais por habitação, transporte, meio ambiente, qualidade de vida. A outra, é a eclosão das mudanças na década de 60 que integrou a mulher ao mercado de trabalho, ampliou o circuito de consumo e o poder aquisitivo das famílias, expandiu os direitos sociais e fez com que o Estado se envolvesse como mediador de conflitos. Ora, o Estado não estava preparado para responder a todas estas novas questões transformando-se de Estado liberal em Estado providência. A integração gerou conflitos e litígios dirimidos em princípio pelos tribunais.

Como disse Wolkmer, “a igualdade dos cidadãos perante a lei passou a ser confrontada com a desigualdade da lei perante os cidadãos.” Ou seja, o acesso ao direito e a justiça se dava de forma diferenciada entre as classe e status sociais e como a população não podia esperar, ela mesma resolvia seus impasses. Como pregou Rudolf Von Ihering, é só pela luta que o Direito se tornaria possível.

Como o acesso à justiça não era igual para todos. Pois havia obstáculos econômicos, sociais e culturais que impediam a população menos abastada de gozarem desse direito. Então, surge a sociologia dos tribunais com o intuito de facilitar esse acesso, analisando o comportamento dos juízes, sua ideologia e prática e acompanhando a administração dessa justiça enquanto instituição política e profissional, contribuindo e muito na defesa dessa corrente plural.

Boaventura, atraído pelos conflitos e resoluções dos mesmos, se instala numa das favelas do Rio de Janeiro para estudá-la por dentro. A favela é no texto apresentada como Pasárgada (em alusão ao poema de Manuel Bandeira que pontuava: “Em Paságada tem tudo/ é outra civilização”). A partir dessa pesquisa de campo, produz um texto descrevendo a origem e evolução da favela e o modo de vida dos que ali habitavam, conhecendo de perto o fenômeno do pluralismo e suas implicações.

Outro exemplo desta prática, é a da comunidade cearense de Fortaleza, que pela necessidade de moradores de um de seus bairros menos favorecidos (conjunto Palmeiras) de adquirir alimentos e vestuário, decide criar meios para alavancar a economia local antes espalhada no comércio externo a ela. A associação de moradores organizou um banco com moeda própria (a palma), concorrendo em pé de igualdade com o real (um por um). Também foi criado um sistema de cartões de crédito e linha para empréstimos a custos simbólicos de juros. Os problemas foram sanados, o banco teve lucros enormes, a comunidade cresceu, estabilizou-se e a vida das pessoas que ali residiam melhorou em vários outros aspectos como os de saúde, moradia, transporte e educação.

Já conhecemos os aspectos gerais da corrente, no entanto nos falta discorrer sobre o escopo de sua implementação. O objetivo central da pluralidade jurídica é a criação de um novo paradigma de validade para o direito, alicerçado num pluralismo progressista, sob base democrático-participativa, capaz de reconhecer e legitimar normatividades extra e infra-estatais, não no pluralismo conservador que seria uma forma de deturpar o movimento fazendo uso deste para a defesa de interesses próprios de grupos oportunistas. Essa nova concepção de direito deverá ser aberta, flexível, democrática e participativa privilegiando as fontes materiais do direito em detrimento das fontes formais. A escola plural de direito reconhece a legitimidade das conquistas do jurídico estatal e a contribuição do operário jurídico, não nega a ordem estatal, antes interage com ela. De modo que, pretende lutar pela aplicação deste direito vigente e não só por sua mudança.

Quais seriam os avanços conquistados a partir dessa nova prática normativa? Segundo Wolkmer, a proposta de um pluralismo como projeto de alteridade para espaços periféricos do capitalismo, promove a legitimidade de novos sujeitos sociais, Proporciona democratização e descentralização, resolve litígios de maneira informal e rápida com a participação ativa da comunidade. Concilia, favorece a uma ética da alteridade e constrói um paradigma de juridicidade para atender os anseios imediatos da sociedade civil.

Apresentados os avanços, quais seriam portanto os ranços dessa postura (de certo que muito menores) apontados pelos que discordam dela? A possibilidade do pluralismo conservador que se presta a servir aos intentos do “neoliberalismo” e do “neocolonialismo” é uma delas. Outra seria a anulação mútua (conflitismo pluralista), em caso de conflito, qual dos dois ordenamentos iria prevalecer? Um continuaria sendo mais legítimo e válido que o outro ou se eliminariam totalmente? Se o direito pode nascer na e da comunidade, isso não o tornaria um direito de operadores leigos (laicização do Direito)? Além desses pontos possivelmente negativos cabe ainda um. Nem todo direito (conforme adverte o próprio wolkmer) é “justo, válido e legítimo”, nem estariam aptos todos esses sujeitos coletivos a produzirem com eficácia essa normatividade. Elaine Junqueira nos adverte sobre o “direito perverso”, paralelo ao oficial e muito mais rigoroso que ele. Exemplifica também com as favelas cariocas e seus operadores do narcotráfico que não costumam primar pelas garantias sociais infligindo penalidades físicas como tortura e até pena capital aos que entram em desacordo com a “lei local” estabelecida.

Outra polêmica envolvendo o pluralismo é o critério de elemento de força de sua normatividade. A essência das normas estatais é explicada por teorias diversas desde Kelsen, que defende a sansão como elemento peculiar da norma, até Godofredo Teles que considera ser o autorizameto esse elemento dêitico específico que ela carrega. Ora, se é a sansão que provoca a validade dessa norma, que validade teria esse novo ordenamento desprovido dela? Segundo Wolkmer, haveria o desenvolvimento de outras formas totalmente “novas” com caráter pedagógico e não mais alicerçadas na prática da violência física ou na repressão, mas pautada em aspectos mais retóricos, preventivos, compensatórios e premiais.

Ao contrário do que se pensa, o direito não-estatal reconhece a contribuição do operador jurídico e não vem para negar ou combater o Direito positivo. Antes, reconhece a legitimidade de suas conquistas e com ele interage de forma harmônica. Esse novo direito, nasce da sociedade para preencher as lacunas deixadas pelo Direito não-estatal não se pretende certo ou melhor, se pretende apenas mais justo, social e democrático.

Entre ranços e avanços, o Direito vai ensaiando atualizar-se e adequar-se aos novos sujeitos sociais na tentativa de se fazer mais democrático e justo. Se a implementação desse recurso dará bons frutos à sociedade, ainda não se pode afirmar. Contudo, em boa parte das experiências desenvolvidas nesta linha, a promoção do bem comum foi eficiente e salutar.

WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. 3. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 2001.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 7. ed. Porto: Edições afrontamento, 1999.

Boaventura Santos. "Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada, in Sociologia e Direito. Cláudio Souto e Joaquim Falcão organizadores, São Paulo, Pioneira, 1980.04. A justiça como problema social- José Eduardo Campos