Eutanásia: a vida como direito ou obrigação?

O Direito não é uno, mas plural. Enquanto reduzido ao fenômeno legislativo, é escrito por poucos e dirigido, heteronomamente, a muitos, a uma coletividade – o que, por sua vez, gera diversos debates sobre legitimidade legislativa.

Daí se depreende que o Direito é um fenômeno social, isto é, inserido no seio da sociedade e decorrente historicamente de seus interesses, idéias e práticas, obervado num contexto de luta de classes e de aparato que ideologicamente postula com clareza a favor e contra quem e o quê se deve levantar.

Então, onde está a sociedade está o Direito, a religião, o samba e o futebol. Simbolicamente, o Direito está nas ruas, espaço que projeta o ambiente de interações sociais existentes no cotidiano, frente à compreensão de coexistência.

O Direito, portanto, deve andar, em contínuo diálogo de previsão e eficácia, de mãos dadas com a sociedade, harmonizando os conflitos e interesses de suas classes. A sociedade, bem como o Direito, deve se (re)pensar em conformidade com os avanços e desenvolvimentos da ciência e da tecnologia, para que suas inovações se dêem de maneira a alcançar o bem-estar social, termo passível de difíceis e diversas valorações.

Inseridos no processo de organização e dinamicidade social se encontra a religião, a qual apresenta forte conservadorismo em seus posicionamentos frente à apreensão de usos, benefícios e finalidades das novas tecnologias.

A religião é freio social aos avanços científicos, pautando-se na sacralidade e indisponibilidade da vida humana, a partir de suas concepções. Foi assim nos casos de avanço da clonagem, do bebê de proveta, de bebê de mãe de aluguel e assim se mantém acerca do aborto e da eutanásia.

Contudo, a História recente da 2ª Guerra Mundial ensinou a ter razoabilidade e prudência na conduta e ética científica, funcionando como freio social, dado que a religiosidade não deve ser o principal ponto de debates jurídicos a respeito da vida em coletividade – não em um Estado dito laico.

Em um debate jurídico, as várias variáveis que constroem a vida social devem ser contempladas, sendo essencial se questionar se a vida é um direito ou uma obrigação.

Compreender como obrigação, inicialmente, é observar a vida a partir de uma moralidade religiosa que entende a vida como algo sagrado, concebido divinamente e que, por assim ser, é indisponível – pois só quem dá a vida pode tirá-la, tem tal direito, restando ao homem apenas respeitar sua vontade, sendo, deste modo, a vida uma obrigação.

Este, preliminarmente, é um posicionamento que retira do homem a autonomia a si inerente – de, com responsabilidade e liberdade, dispor de seu corpo enquanto sua propriedade privada. Contudo, o debate acerca de tal aspecto não precisa sequer prosperar, dado que o Estado brasileiro, como exposto, é laico.

A eutanásia é vista como a prática pela qual se abrevia a vida de um doente incurável, conscientemente, sem lhe trazer dor ou sofrimento.

A reflexão que pode ser feita é a respeito da relatividade temporal que uma doença pode ser tida como incurável – isto porque o avanço da medicina promove a modificação de tal panorama – ou não, o que, por sua vez, não modifica a necessidade de autonomia para se dispor de seu próprio corpo, enquanto seu direito subjetivo.

Muitas vezes não se descobre a cura de uma doença e a manutenção da vida unicamente por ser possível mantê-la é, até mesmo, um desrespeito à vida.

Aliás, a vida só é respeitada se tiver dignidade – a qual é uma valoração subjetiva passível das mais diversas definições, bem como a Justiça.

E, por muitas vezes, não se avança o debate a respeito do valor Justiça por compreendê-lo como subjetivo, sendo preciso indagar se não há um mínimo comum socialmente consensual: é justo alguém não ter onde morar? É justo uma mulher ser estuprada? É justo existir criança sem escola?

Do mesmo modo é com a dignidade, a qual deve ser interpretada conscientemente pelos juízes e “operadores” do Direito.

Juridicamente, o direito à vida é um direito humano previsto no caput do artigo 5º da Constituição Federal. Os direitos elencados neste artigo não podem ser compreendidos de maneira absoluta nem hierarquizada, devendo existir reservas legais e controle de proporcionalidade na análise de casos concretos de colisão.

Esta análise se faz mediante o confronto com outro direito ou princípio constitucional, tal qual o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto como um dos pilares essenciais do ordenamento jurídico brasileiro.

A apreensão de tal confronto deve ser feita no caso concreto, de maneira que se respeita a autonomia, a disponibilidade de seu próprio corpo, a vontade consciente e a dignidade violada ou não em determinado contexto.

Tal apreciação deve ser pautada em bases de prudência, razoabilidade e respeito aos direitos humanos como forma de evitar desvios e exageros já observados na História.

A prática da eutanásia deve decorrer de explícita manifestação de vontade, consciente, do paciente. Se este o fizesse sozinho, seria suicídio e, logicamente, impassível de pena.

Se o tentasse e não conseguisse, seria tentativa de suicídio e não sofreria pena devido ao princípio da lesividade.

Por que, enquanto prolongamento da manifestação de vontade do enfermo, alguém seria punido pela eutanásia? A vida é um direito, não uma obrigação, oras.

Lucas Sidrim
Enviado por Lucas Sidrim em 10/01/2011
Código do texto: T2720587