O Elefante de Armar Visual de Hugo Pontes: Análise Neo-estruturalista Semiótica de “Defesa de Tese” e “18 Poemas e 1 Elefante Art”.
O Elefante de Armar Visual de Hugo Pontes: Análise Neo-estruturalista Semiótica de “Defesa de Tese” e “18 Poemas e 1 Elefante Art”.
Prof. Dr. Jayro Luna (Jairo Nogueira Luna)
Conheço a produção poética de Hugo Pontes, poeta visual de Minas Gerais, desde a década de 80 quando eu fazia com relativa regularidade o fanzine de poesia marginal Mimeógrafo Generation. A poesia deste poeta mineiro era presença constante no meu fanzine. No número 21 do Mimeógrafo Generation (dez/91) eu escrevia que “a poesia de Hugo Pontes é destas que os profetas preconizam em apocalipses: ‘Derrubai as pedras do templo’ (“Tormenta”), ou que partindo de uma idéia de protest song e engajamento recria o espaço desta apontando novos caminhos de pesquisa poética (“Canção de Armar”). É sem dúvida um dos mais criativos poeta de nossa brasilidade”.(MG 21, p. 2)
Em 2004, no 1.° congresso de Humanidades da Universidade Cruzeiro do Sul (Hunicon / Unicsul) apresentei uma comunicação acerca do panorama da poesia marginal dos anos 80 e 90 e em determinado momento comentei acerca da produção de Hugo Pontes, destacando o poema “Zen”; àquela ocasião eu dizia:
“Hugo Pontes, de Minas Gerais, se não me falha a memória, de Poços de Caldas, enveredou principalmente pelos experimentalismos visuais, mas levando aquilo que havia começado entre nós com o Concretismo da década de 60 e as subseqüentes propostas do Poema-processo e da poesia-práxis a um patamar em que o tema deixa de ser a diferença entre poesia visual e poesia verbal, para ser a poesia que é fruto da análise crítica do mundo em constante mutação numa velocidade que chega a nos fugir aos sentidos. Veja-se, por exemplo, como Hugo Pontes decompõe o nome de Schwarzenegger (na época da composição desse poema, o astro de cinema de ação sequer havia iniciado sua carreira política) e o cruza com o nome do então primeiro ministro soviético Shevardnadze:
SCH_______________SHEV
____WAR_________AR
_________ZEN
____DNA_________EGG
DZE________________ER
Resultando em fragmentos de nomes que têm uma conflitante significação no seu conjunto: War/Ar; DNA/Egg; e ao centro a palavra “Zen”.”
(“A Poesia Marginal dos Anos 80 e 90”, 2004)
Esse poema consta tanto do livro Defesa de Tese (Belo Horionte, Editora Mulheres Emergentes, 1997) e 18 Poemas e 1 Elefante Art (Poços de Caldas, 2006), mas eu o conhecia pela revista Dimensão do Guido Bilharinho (n.° 22/23, 1994).
Joaquim Branco fazendo a apresentação do livro Defesa de Tese agrupa os poemas de Hugo Pontes em cinco temáticas: a) - poemas que “conjugam o político com o social, no fogo cruzado do poético com o real” (“Meio e Massagem”, “Zen”, “Soneto da Corrupção”, “Cruzado”, “Escape”, “Flora para Nicarágua” e “Bloqueio”).
b) - poemas do “apelo ao feixe de provocações” histórico-sociais marcados pela linguagem da ambigüidade (“Nós”, “História do Brasil”, “Sem-Rosto nem Resto”, “Real Mente” e “Mutilação”).
c) - poemas de apelo lírico (“Lágrima”, “Rendição em Massa”, “Impressões”)
d) - poemas ecológicos (“Ecologia”, “Pânico e Impressões”)
e) - poemas visuais que trabalham a tradição clássica (“Nel Mezzo Del Camim”, “Barca Bela”).
Evidentemente essas temáticas não são excludentes nem limítrofes de interpretação, antes, um mesmo poema pode apresentar mais de uma ou todas essas temáticas, diferenciando de outro pela importância maior de um ou outro desses temas.
Márcio Almeida já apontava em 1987, quando um dos principais recursos técnicos para a produção de poemas visuais no âmbito da marginalidade poética era a máquina Xerox que Hugo Pontes era “um dos precursores da xerografia brasileira. Sua perfomance visual tematiza-se com os principais fatos universais e, em relação ao Brasil registra, de modo crítico, sem imediatismo ou oportunismo, as agruras da incompetência política nacional.” (Márcio Almeida, O Estado de Minas, BH, 1987).
De fato, a poesia visual de Hugo Pontes tem uma forte ligação com as temáticas políticas e sociais, esse engajamento, ao contrário do engajamento típico da poesia verbal, que costumeiramente corre o risco de cair no propagandismo de partido ou na vinculação comprometida com nomes de políticos ou ainda numa espécie de guerrilha de versos cujo fim, no mais das vezes, tem sido questionável diante da realidade que teima em tornar as revoluções traídas, para lembrar aqui certa expressão cunhada em Hebert Marcuse (Eros e Civilização e O Homem Unidimensional). O que distingue o engajamento visual de Hugo Pontes desse tipo de poesia está justamente, ou mais precisamente, na natureza da poética visual. Hugo Pontes compreendendo que a linguagem dominante do sistema está fundada no domínio dos meios midiáticos visuais que conformam a verbalidade a um pastiche de frases feitas, slogans, lemas, ditados empobrecidos, frases feitas, jargões, expressões e conceitos esvaziados, (cf. Marshall Mcluhan, Abraham Moles, Umberto Eco) tudo misturado num poderoso liquidificador, que é o próprio meio midiático, ressignifica os signos desse meio, explorando a ambigüidade, o entrevisto, a falha, para desconstruir ou desmontar essa linguagem. Assim, no já comentado “Zen” o simples cruzamento das sílabas de dois nomes emblemáticos e simbólicos da estrutura política social e econômica mundial (um líder da extinta URSS, um nome do cinema de ação hollywoodiano, posteriormente governador da Califórnia) revela um conjunto de sememas significativos que corroem esses nomes (Zen, Egg, War, Dna).
Noutro poema, “Bloqueio” (1985), o poeta de Poços de Caldas e Três Corações utiliza-se da tipografia para a partir do tipo de letra que caracteriza visualmente a logomarca “Coca-cola” escrever “Cuba-libre”, que enquanto bebida é conhecida desde os bailinhos dos anos 50 como a mistura de Coca-cola com aguardente ou rum e uma rodela de limão. Sendo a aguardente ou o rum, característico da tropicalidade latina a dar ao refrigerante norte-americano um valor alcoólico que o subverte de polêmico refrigerante que possuía originalmente chá de cocaína em sua fórmula (depois substituída por cafeína na nova fórmula) em bebida alcoólica significativa de uma época de rebeldia (ficou famosa no início do século XXI e gerou polêmica judicial a propaganda do guaraná Antarctica em que um personagem repórter no meio de uma vistosa plantação de guaraná desafiava a coca-cola a mostrar sua plantação). Mas o poema não para aí, nessa solução tipográfica. O nome “Cuba-libre” é repetido na página de modo a compor no centro um espaço em branco que não é outra coisa senão a silhueta do mapa da ilha de Cuba. Daí o nome do poema, referência o bloqueio norte-americano imposto à ilha governada por Fidel Castro.
Em “Cruzado” (1986) uma sutil troca de frase na reprodução da nota de 500 cruzados (lembram dessa moeda?) em que lemos “deus nos livre”, que entra em oposição ao conhecido dizer da nota de dólar americana “In God we trust”, que é referência à estrofe final da canção Star Spangled Banner, o hino norte-americano. Por outro lado, esse mesmo poema de Hugo Pontes, faz-nos lembrar do poema concreto de Décio Pignatari de 1967, que na reprodução de uma nota de um dólar americano, coloca no centro a imagem de Cristo crucificado e no verso da folha lemos a frase “Cr$isto é a solução”. Parece-me, assim, que Hugo Pontes processa uma ressignificação múltipla do signo, no caso a moeda ou cédula nacional, cruzando a vertente de evolução formal da poesia (Concretismo - Poesia Visual) e de outro a vertente de crítica ao sistema capitalista (Cruzado - moeda sem valor, passageira / Dólar - moeda da dominação econômica).
O “Soneto da Corrupção” no âmbito da crítica financeira, da mais-valia, do domínio do dinheiro nas relações humanas, reconfigurando idéias proudhonianas e marxistas, o poeta apropria-se do símbolo do cifrão - de sentido universal na economia mundial - para compor a mancha impressa de um soneto, alternando esse símbolo com o de porcentagem. A junção de ambos (cifrão e porcentagem) já dá de forma sintética e imediata o significado da corrupção, associada à forma do soneto, temos um novo significado, qual seja de que a literatura também se corrompe pelo dinheiro e o soneto como representativo de um tipo de literatura de gabinete, pseudo-parnasiana, de poetas de ocasião e políticos de profissão que não poucas vezes ocuparam assento em academias literárias.
Noutro poema, “Promissória” (1995), Hugo Pontes toma o nome do concurso literário Walmap, idealizado em 1964 pelo banqueiro José Luiz de Magalhães Lins e o escritor Antônio Olinto, que premiava bienalmente obras literárias que eram consideradas de valor inquestionável. Nélida Piñon, Carlos Drummond de Andrade, Ledo Ivo e Assis Brasil já estiveram entre os premiados. O nome “Walmap” era uma homenagem ao tio do banqueiro, o também banqueiro Waldomiro Magalhães Pinto. No poema de Hugo Pontes, o prêmio é dado ao Unibanco, no ano de 1995. A ironia é referência aos escândalos bancários que corromperam políticos durante aqueles anos. Desse modo, o poeta ressignifica o sentido do prêmio literário, a expressão “prêmio walmap de ficção” dá um sentido crítico à palavra “ficção” e faz também referência à falência fraudulenta do Banco Nacional, do qual José de Magalhães Pinto era o presidente. Entre 1986 e 1995, desenrolou-se um processo bancário que culminou no fechamento do banco Nacional e na entrega da parte boa e rentável do banco para o banco Unibanco, que teve sua origem na cidade de Poços de Caldas em 1918, por João Moreira Salles.
Os mesmo símbolos (cifrão e porcentagem) formam as bordas e os frisos do “diploma” de prêmio de ficção-1995.
Em “Cédula” (1983) o poeta mineiro emprega um volante da conhecida Loteria Esportiva e inscreve na coluna do meio a expressão “Cédula do Povo” esta sendo delimitada pelo “X” ao início e ao fim, que originalmente designa o empate, agora juntada à expressão tem um significado subvertido, que corrompe o volante e o jogo. O futebol, tido pela crítica marxista e de esquerda desde os tempos da luta engajada dos anos 60, como o “ópio do povo”, serve agora de matéria para a composição da “cédula do povo”, fictícia, casual, fortuita que dá ao apostador a ilusão de uma chance de melhorar de vida, chance de fato infinitesimal, que serve, no entanto, para iludi-lo semanalmente na medida em que acompanha os resultados dos jogos e põe, depois, a culpa de seu insucesso num bicho africano que caminha de pijama, uma mitificada “zebrinha” que dominicalmente atingia altos índices de audiência na televisão ao informar os resultados lotéricos.
Em “Kyri-eleição” (1983), Hugo Pontes toma o nome de uma das mais significativas expressões litúrgicas que significa “Senhor, tende piedade [ou misericórdia]”, brado de súplica presente no Velho Testamento e que se mantém na missa após o intróito. Na atitude corrosiva do trocadilho, “eleison” (do grego, misericórdia), vira “eleição” e assim o “Kyri” tanto pode ser agora uma corruptela do verbo “querer” - em 1983 ainda se iniciava timidamente a luta pelas “diretas já” - quanto seria o eco final de harakiri - ato suicida nipônico dos guerreiros samurais. Tanto num, como noutro significado, o trocadilho composto agora faz da sonoridade destas sílabas vindas da liturgia cristã um sentido político forte, de protesto ao sistema ditatorial vigente no Brasil desde 1964.
Por outro lado, como não deixar de relacionar o título do poema “Kyrie” e o trocadilho com o livro de poemas de Alphonsus Guimarães, Kyriale, 1902 - poeta mineiro, de Mariana, que se notabilizou por uma poesia mística cristã repleta de sutilezas gnósticas. Assim, esse é outro poema de HP que tanto tem um viés ligado ao contexto sócio-político, quanto é possível inseri-lo numa linha crítico-evolutiva da poesia mineira e brasileira. Nesse caso, o símbolo para Alphonsus Guimaraens, enquanto poeta simbolista, tinha uma existência vaga, imprecisa, apenas sugerida aos sentidos. Para HP, porém, o símbolo é concreto, visual, está diante dos olhos e dos sentidos, o seu significado é que serve de matéria para o trabalho poético, que com uma leve modificação de alguma parte constitutiva do símbolo, o alegoriza, o redimensiona, ou numa só palavra o ressignifica, segundo o sentido que lhe dá o Neo-estruturalismo Semiótico, de modo a revelar seu significado mais oculto e perverso.
Em “A Barca Bela”, HP trabalha no âmbito da tradição literária. Tomando de empréstimo o título de conhecida canção de Almeida Garrett, o poeta preenche o espaço do poema com a repetição contínua da expressão do título, alternando entre tipos cheios e vazados, de modo que o olhar num primeiro momento se vê confuso, turvado, como o que ocorre ao pescador que se deixa encantar pela canção da sereia em Garrett. No poema de HP, a sereia é a própria poesia, ou de outra forma, o canto da sereia - sonoro - se concretiza visualmente na página, não mais aos ouvidos, mas sinestesicamente aos olhos. Assim, a poesia visual se metaforiza nessa sereia que é capaz de levar o pescador / leitor a conhecer as profundezas do mistério do oceano da linguagem.
Em “O Brasil são Outros 500” (s.d.), HP já se apropriando de uma expressão popular (“isto são outros 500”, usada costumeiramente para se referir a uma outra interpretação ou sentido numa questão qualquer), nos apresenta a imagem de um mosquito (da dengue, talvez...) pousado numa série contínua e concêntrica de círculos digitais. O sentido do poema faz referência aos 500 anos do descobrimento do Brasil, comemorado amplamente em 2000, mas de modo crítico, aludindo ao descaso na saúde, aos males da tropicalidade subserviente de uma visão determinista de nossa brasilidade que poetas como HP tentam desmontar, numa linha que vem de Oswald, um dos maiores críticos de nosso complexo de inferioridade cultural. Desse modo, não se tem um Brasil, mas vários Brasis, e o da poesia de HP é paralelo irmão do Portugal de um Fernando Pessoa, da América de um Withman, é a terra que necessita de olhar crítico, de inventividade poética como elemento concreto e real de sua existência, como se pode perceber em outro poema - “Fuga” - onde as marcas dos pés do poeta rodam o mundo a buscar simbolicamente a solução poética da realidade opressora e alienante (“O Real Mente”).
Assim, o “Elefante” aludido no título da plaquette de 2006 (“18 poemas e 1 Elefante Art”) que está na capa na forma da silhueta de um elefante formado por um conjunto de nomes de poetas visuais brasileiros e internacionais (como Falves Silva, Avelino Araújo, Thomas Kerr, o próprio HP, e vários outros) - concept by Emilio Morandi - é uma referência ao processo poético de Hugo Pontes, que visa fazer da poesia visual, mais do que um evento estético de discussão da evolução das formas e das técnicas poéticas, mas sim e principalmente, estratégia de embate com a realidade, com os sistemas opressivos, com a possibilidade de ressignificação da consciência do homem unidimensional para um âmbito da totalidade, da ordem implícita que têm a capacidade de mostrar que sempre existe um outro lado, que a relação entre mal e bem, verdade e ficção, poesia e realidade não é apenas esotérica ou simbólica, mas sensorial e nós, enquanto seres humanos, vivemos nessa fronteira formada pelos nossos sentidos, tendo ao centro nossa mente. Lembro agora do poema drummondiano, “Elefante”: “Fabrico um elefante / de meus poucos recursos” (...) “Vai o meu elefante / pela rua povoada, / mas não o querem ver”. A poesia de Hugo Pontes é assim, vai aí pela rua povoada, só não vê quem não quiser, mas ela tem o peso forte e estremecente de um elefante, e tem o sentido simbólico de um elefante indiano, anunciando um novo tempo para nossos sentidos e percepção da realidade.
Eis, acerca de Hugo Pontes minha “defesa de tese” para parodiar o título de um de seus livros.