A experiência da misericórdia

A mística moderna fala muito em experiências de oração e de escuta, e se esquece, vez por outra, daquela que é a maior delas: a experiência da misericórdia de Deus. Enquanto aquelas duas são individuais, esta só ocorre mediante a vivência comunitária. Nunca teremos uma visão adequada de Deus e do seu Reino se não compreendermos a dimensão exata de sua misericórdia.

Assim, se as experiências de oração e de escuta não se fecharem em um fim-em-si, mas se abrirem à prática evangélica, pastoral e social, veremos que a misericórdia se compõe em miser +corde, onde miser é miséria e corde se refere a coração. Isto significa sentir com o coração as penas e as dores de alguém que sofre suas misérias. Assim como Deus tem misericórdia, pena de nós, por sermos fracos e pecadores, assim deve ser, igualmente, nossa atitude com relação aos nossos irmãos, em especial os mais fracos. A miséria tanto pode ser material como espiritual, e também afetiva. No hebraico bíblico vamos encontrar o verbete hesêd a exprimir aquela misericórdia que socorre e consola.

Seu significado denota também a acolhida de um rei por seus súditos ou de um pai pelos filhos. Caracteriza sempre uma ajuda, atual, plena e eficaz a quem precisa. Abrange, muito além do ”querer bem“, aproximando-se, sobretudo do ”fazer o bem“. Como o hesêd (é masculino) tem por base os laços existentes, seja de parentesco, matrimoniais ou de aliança, para que efetivamente ocorra, precisa ser praticado, indo além do discurso. Como ação de Deus, vem sempre acompanhado do ‘emet (a verdade, o amém) e da mishpat (a justiça). Pois o hesêd traz consigo um sentimento ainda mais profundo, a compaixão, retratada pelo verbete helênico éleos.

Trata-se de ”sentir com as entranhas“, isto é, algo que caracteriza o amor da mãe por seu filho recém nascido. Em virtude da aliança, o salmista ousa cantar, com freqüência, que a misericórdia de Deus é eterna (Sl 26,5). Deste modo o hesêd de Deus tornou-se também um conceito escatológico (cf. Sl 90, 14). No Novo Testamento, a misericórdia de Deus se manifesta integralmente em Cristo. Maria canta essa misericórdia, que se estende de geração em geração (cf. Lc 1,50) à porta da casa de sua parenta Isabel. O amor cristão é sinal do amor de Cristo que viveu sua paixão, isto é, amou até sofrer. A esse amor, a teologia dá o nome de agápe.

A experiência da misericórdia de Deus deve levar a pessoa a ter misericórdia com seu semelhante: Sejam misericordiosos como o Pai de vocês é misericordioso (Lc 6,36). A atitude religiosa, uma vez que somos humanos, não pode se limitar ou restringir a movimentos espirituais, alguns às vezes alienantes, mas deve se traduzir em atos, em prática, em atividade de misericórdia, com o que sofre, passa fome ou precisa de nossa solidariedade (cf. Mt 25,31-46). O amor que dimana do divino hesêd é um afeto puro, desinteressado, crescente e comunicante. Deus ama e se dá sem medidas. Esta é a grande lição da misericórdia.

Para orientar nossa experiência da misericórdia divina, é salutar que se leia e reflita aquelas que são chamadas as ”parábolas da misericórdia“, contidas no capítulo 15 do evangelho de Lucas. Revelando que é possível ao ser humano ter misericórdia com o próximo, Jesus incluiu esse sentimento-prática entre as bem-aventuranças (cf. Mt 5,7). Deus convida ”façam a experiência da minha misericórdia, e verão como eu vou além...”. (cf. Mal 3,10ss).

O autor é, entre outros títulos, teólogo, Doutor em Teologia Moral e biblista.

Antônio Mesquita Galvão
Enviado por Antônio Mesquita Galvão em 13/10/2006
Código do texto: T263775