Eutanásia – direito de morrer

O Direito deve andar de mãos dadas com a sociedade a que se destina ordenar e harmonizar os conflitos sociais: não pode ser progressista demais nem conservador demais, sob pena de perder sua eficácia na vivência social que permeia as ruas e o cotidiano dos cidadãos.

Por sua vez, a sociedade deve estar aliada aos avanços e desenvolvimentos da tecnologia, cujas máquinas e produções científicas devem ser promovidas para que se alcance o bem comum e o bem-estar da sociedade.

Contudo, a tecnologia e os desenvolvimentos científicos ainda não são capazes de resolver todas as mazelas vividas pela humanidade, havendo diversos problemas que restam sem cura, como a AIDS.

A coletividade apresenta diversas variáveis presentes em seu processo de organização e dinamicidade, devendo-se pontuar a influência, principalmente no contexto brasileiro, da religião na apreensão dos usos, benefícios e finalidades das tecnologias, as quais devem ser aplicadas na sociedade e reguladas pelo ordenamento jurídico.

A religião, em muitos casos observados nos últimos séculos, tem sido a principal trava da utilização e aplicação de novas tecnologias em seres humanos, devido à sacralidade da vida humana. Outro freio social é a própria História e as atrocidades observadas na leitura dos séculos, como as constatadas durante a Segunda Guerra Mundial, nos casos de eugenia autorizados por Hitler.

Diante do fator religioso, o qual é essencial na promoção da moral e ética de uma sociedade, diversas discussões envolveram os avanços da Ciência nas últimas décadas, como observado em 1952, com a clonagem de rãs a partir de células de girinos; 1967, quando Christian Bernard fez o primeiro transplante de coração; 1978, quando nasceu Louise Brown, o primeiro bebê de proveta; 1983, quando nasceu o primeiro bebê de mãe de aluguel e; 1995, quando cientistas conseguiram implantar orelha humana em rato.

Todos esses adventos foram acompanhados por discussões éticas e morais nas quais foram perceptíveis os enlaces religiosos presentes na defesa do conservadorismo nas estruturas vigentes.

Ultimamente, nos debates que envolvem os direitos relativos à união homoafetiva e as questões que envolvem as células-tronco e o aborto – discussões que não deveriam se pautar na religiosidade, mas na saúde pública -, a Igreja católica tem sido fundamental no processo de formação de opiniões.

Diversas discussões têm sido trazidas à tona envolvendo a tecnologia, a bioética, a religião e o Direito, envolvendo diversos posicionamentos e interesses no tocante ao direito à vida e sua realização prática: Até que ponto o homem pode, de fato, manipular o direito à vida, à existência e ao corpo?

Depreende-se, portanto, que existe um desafio para a ética contemporânea: providenciar um padrão moral comum para a solução das controvérsias decorrentes das ciências biomédicas e das altas tecnologias aplicadas à saúde.

A Eutanásia (eu = bem; thanasia = morte; eutanásia = boa morte, morte tranqüila) tem sido uma prática freqüente ao longo dos séculos em diversos contextos, comunidades e países, trazendo consigo um dilema moral acerca da indisponibilidade e do valor da vida humana.

Para efeitos introdutórios, a eutanásia pode ser compreendida como a prática pela qual se abrevia, conscientemente (seja por piedade ou compaixão), sem dor ou sofrimento, a vida de um doente incurável.

Primeiro, há de se pontuar que o termo “doente incurável” é uma concepção temporária e, portanto, não permanente: a medicina a cada dia descobre novas curas e tratamentos para as mais diversas doenças de modo que, hoje, uma enfermidade pode assim ser considerada e daqui a dois anos pode ter cura ou tratamento efetivo.

Contudo, o processo de descoberta de tratamentos requer pesquisas e tempo de teste para que possa começar a ser utilizado em centros hospitalares, sendo um tempo que muitas vezes os pacientes não têm.

A prática da eutanásia pode também ser concebida como o direito de uma pessoa pôr fim à própria vida, valendo-se de outra pessoa, se tratando, neste caso, da eutanásia voluntária, a qual atende à vontade do paciente.

Este direito supramencionado confere a uma junta médica a possibilidade de conferir morte suave a doentes que o desejem ou solicitem, sem dor física ou tortura moral, abreviando a existência da vítima.

O tema em exame comumente é tratado a partir de casos analisados ao redor do mundo, inflados mercadologicamente pela mídia de massa, como observado em 1973, na Holanda, quando a Dra. Geertruida Postma foi julgada por eutanásia praticada em sua mãe, ou o caso da americana Terri Schiavo, morta por eutanásia em 2005 a pedido do marido.

Quando não se constatam estes casos, pouca discussão há acerca da matéria, principalmente pelos políticos, uma vez que posicionamentos sobre a eutanásia podem trazer prejuízos eleitorais.

Frente ao exposto, devemos observar como se comporta a religião, o Estado, a medicina e o Direito a respeito desta questão.

O Estado brasileiro, por sua vez, se intitula laico e, por causa disto, veladamente se reconhece como hipócrita, pois incansáveis vezes podemos observar símbolos religiosos em tribunais e repartições da Administração Pública.

Diante disto, resta clara a influência da religião nos debates éticos e jurídicos do Brasil, uma vez que a religião traz consigo uma concepção de moral e, historicamente, a sociedade brasileira se construiu sob a base da moral cristã trazida pela Igreja Católica, que traz conseqüências na aplicação do Direito e na estruturação da sociedade.

A Igreja Católica é contra a prática da eutanásia – assim como é contrária ao uso da camisinha -, o que decorre da obediência coerente a um dos 10 mandamentos: Não matarás. Sendo assim, a vida é revestida de sacralidade, pois, na concepção católica, a vida é uma propriedade de Deus – dada ao homem unicamente para administrá-la, não tendo o homem direito sobre a vida própria e alheia.

Em 1956, a Igreja se manifestou explicitamente acerca da eutanásia, considerando-a uma prática contrária à lei de Deus, infringindo o respeito à vida.

Contudo, constata-se dentro do seio da instituição dissidências, como a Organização Não-Governamental Católicas pelo Direito de Decidir, composto por militantes feministas cristãs, favoráveis à prática da eutanásia, que se manifestam com a seguinte provocação: é possível afirmar a defesa da vida e condenar as pessoas a sofrer indefinidamente num leito de morte, condenando o acesso livre e consentindo a uma morte digna, pelo recurso à eutanásia?

Ora, a vida é um bem maior que deve ser tutelado pela sociedade e pelo Direito – do momento em que se nasce ao último suspiro, a vida humana jamais pode ser banalizada e considerada insignificante. Não há o que se debater acerca disto.

Contudo, se deve prolongar a vida de uma pessoa apenas por ser tecnicamente possível? Isto é, a vida em dor, sofrimento e sem esperança de superação de tais condições (doentes incuráveis), deve ser mantida e prolongada, promovendo sofrimento ao doente e aos parentes apenas por ser possível? A eutanásia é um direito de matar ou um digno direito de morrer?

Manter a vida unicamente por defender a sua existência – pelo simples dever de existir, sem que haja condições dignas para a sobrevivência, como observado em pacientes que vivem em estado vegetativo – é uma maneira de valorizar a vida humana? Penso que, sem ser possível conferir ao enfermo as necessárias e adequadas condições de qualidade de vida ou perspectivas de melhoria e superação de tal contexto não é razoável.

Retirar do sofrimento aquele que consciente e voluntariamente deseja não sentir mais dores e ter uma boa morte é um ato de solidariedade e compaixão, valores cristãos. Restam claras, portanto, contradições religiosas que encontram fulcro na fala do Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, em entrevista à Revista VEJA: Não pode haver dignidade com uma vida vegetativa.

Por sua vez, surgem as indagações: as concepções religiosas devem intervir no dever médico dos pacientes? Há obrigação moral de se prolongar a vida de uma pessoa?

Em sua entrevista ao programa Roda Viva, o médico Patch Adams, fundador do Instituto Gesundheit, nos Estados Unidos, hospital filantrópico em que se pratica a medicina gratuita, pontuou que o médico deve melhorar a qualidade de vida do paciente – e não apenas adiar a morte.

O médico deve atuar no melhor interesse do paciente, sendo dever da profissão aplacar as dores e sofrimentos de quem está tratando, principalmente se o caso for de lidar com doentes incuráveis.

Dito isto porque, como já exposto, não há dever jurídico do médico manter a vida a qualquer preço, ou seja, medidas de prolongamento da vida não são obrigatórias apenas por serem tecnicamente possíveis.

O dever do médico é de lealdade ao paciente e aos seus interesses, devendo empregar todos os recursos da Ciência a seu favor. Se o paciente encontra-se em estado terminal, consciente da ineficácia de tratamentos para a superação de tal panorama, deve ter autonomia sobre o seu corpo.

Ao médico, por sua vez, cabe unicamente atender ao interesse do enfermo, não podendo dispor em contrário a este e utilizando a tecnologia disponível para que isto aconteça, pois o ser humano deve ter garantido inclusive o direito de sucumbir ao seu sofrimento.

Há um embate, nesta temática, decorrente do confronto valorativo da liberdade individual e a indisponibilidade da vida, a qual deve ser garantida com todas as condições objetivas pelo Estado, de modo que se configure como um direito de resistência do indivíduo frente à atuação estatal a possibilidade de dispor de sua existência.

Porém, ao sujeito de tal prerrogativa não cabe o dever de se manter vivo, preso à existência terrena: é lícito que a pessoa possa dispor de sua vida, observado o princípio da lesividade, do qual decorre que sua conduta só traz conseqüências a si mesmo.

Não podendo, por estar em condições adversas de sobrevivência devido a tratamento de enfermidades, por si mesmo concretizar tal prerrogativa e cabendo ao médico atender e ser leal aos seus interesses, configura-se como lícita a conduta da eutanásia.

A autonomia deve ser vista enquanto forma de efetivação da liberdade, isenta de influências externas na tomada de decisão, e da volitividade, apreendida como a capacidade de agir intencionalmente e assim promover suas escolhas.

Sendo assim, o indivíduo deve ser autônomo em sua decisão e capaz de deliberar sobre seus objetivos e interesses pessoais, cabendo a si a escolha de promover ou não a eutanásia enquanto prática de libertação do sofrimento e dor diante de doença que reste sem tratamento.

Atualmente, em São Paulo, se observa a vigência da Lei Estadual nº 10.241/99, cujo inciso XXIII do artigo 2º apresenta a seguinte redação:

Artigo 2º - São direitos dos usuários dos serviços de saúde no Estado de São Paulo:

XXIII - recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida;

Observa-se na legislação pertinente à matéria o pronunciamento do Conselho Federal de Medicina, o qual promulgou, por meio da Resolução nº 1.805/2006, a seguinte permissão ao médico:

Artigo 1º - É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.

O Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução nº 74/94, criou a Comissão de Ética Médica para toda instituição com, no mínimo, 10 médicos atuantes. A Bioética surge, deste modo, para efetivar a busca de soluções para os conflitos de valores decorrentes de intervenções médicas.

É preciso, então, analisar a Constituição Federal e o Código Penal vigentes. O primeiro, devido ao seu patamar no ordenamento jurídico, diante dos princípios de hierarquia e supremacia constitucional; o segundo, devido à proteção em ultima ratio aos bens jurídicos considerados mais importantes à ordem jurídica, relevo conferido à vida, tratada neste trabalho.

Na Carta Magna vigente, encontra-se, logo em seu artigo 1º, a redação dos princípios fundamentais ao Estado Democrático de Direito, o qual elenca, em seu inciso III, a dignidade da pessoa humana, de modo que o ordenamento jurídico e, deste modo, os direitos fundamentais e as garantias prestacionais e de resistência estatais, se pautam na obediência e cumprimento deste princípio.

No artigo 5º do mesmo texto legal, se observa na leitura do caput a defesa da inviolabilidade do direito à vida. Ou seja, o direito à vida não pode ser violável, injuriado pelas atuações estatais e dos cidadãos, devendo ser garantido substancialmente, desde a concepção inicial da vida ao momento da morte, em que há a parada de funcionamento das atividades corporais do indivíduo.

Todos os direitos fundamentais devem ser protegidos enquanto forma de tutelar a dignidade da pessoa humana. Sendo assim, o direito à inviolabilidade da vida deve ser visto como forma de salvaguardar e manter a dignidade do homem cuja vida está sendo tratada, de tal modo que, conforme a fala do Ministro Marco Aurélio, “não pode haver dignidade com uma vida vegetativa”.

Resta, portanto, que a defesa da vida não pode estar desacompanhada da tutela de uma vida digna, ou seja, uma vida com condições objetivas de qualidade em que se observe o bem-estar do sujeito.

Estas condições não são resguardadas quando se trata de um sujeito que apresenta doença incurável, em estado terminal, sem previsão de melhora e possibilidade de perdurar em tal panorama por anos, trazendo sofrimento aos familiares e gastos estatais em sua conservação, não havendo, por fim, que se falar em dignidade humana nestas condições.

Conforme preceitua a Carta Magna, nenhum direito fundamental tem valor absoluto e a hermenêutica constitucional deve ser efetivada em observância à dignidade da pessoa humana, conclui-se, deste modo, que a eutanásia é uma forma de promover o respeito ao direito à vida, o qual abarca em si a previsão da morte, garantindo dignidade ao enfermo, com o fim de suas dores e em respeito à autonomia e vontade consciente do paciente, solícito pela morte.

Além disto, a eutanásia atende ao valor cristão da solidariedade, uma vez que os ônus econômicos de doenças sem possibilidade de reversão e cura serão destinados ao tratamento de outras vidas, as quais podem ter chances concretas de recuperação, restando como um ato de compaixão social. Contudo, este aspecto resta como discutível, não lhe sendo conferido valor prioritário.

Hoje, a eutanásia é considerada prática legal na Holanda e na Bélgica, ambas legalizando a conduta em 2002. Na Suécia, existe a autorização da assistência médica ao suicídio. Na Suíça, um médico pode administrar uma dose letal de um medicamento a um doente terminal que queira morrer, sendo incumbência do paciente tomá-la. Na Alemanha e na Áustria, é possível desligar os aparelhos médicos que mantêm alguém vivo, desde que isto seja feito com o consentimento do paciente. O Código Penal uruguaio, em 1930, descriminaliza a prática do “homicídio piedoso”.

No Brasil, atualmente, o Código Penal não apresenta com clareza um tipo penal que trate efetiva e objetivamente da prática da eutanásia, restando o seu enquadramento como ilícito penal decorrente da atividade hermenêutica dos aplicadores do Direito, que, sem unicidade, consideram a eutanásia a prática de homicídio, previsto no artigo 121, atenuado por seu § 1º, pois o agente o comete impelido por motivo de relevante valor social ou moral; ou prática do crime previsto no artigo 122 do texto legal mencionado:

Artigo 122 - Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça:

Pena - reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave.

No Estado de Oregon, nos Estados Unidos, em 1994 foi realizado um plebiscito sobre a prática da eutanásia e, em 1996, houve regulamentação da questão.

Em 1996, o Juiz Stephen Reinhardt, do 9º Tribunal de Apelação de Los Angeles, estabeleceu que a Constituição americana garante o direito ao suicídio assistido a todo paciente terminal.

No Brasil, por sua vez, resta um silêncio da Constituição frente à eutanásia e o Código Penal não apresenta a previsão clara sobre o assunto, restando a subsunção por meio de interpretações que permanecem dissonantes quanto ao dispositivo mais adequado, o que demonstra que o ordenamento brasileiro falha na regulamentação da matéria, pois o Código Penal deve trazer clareza nos seus dispositivos para o devido enquadramento legal das condutas.

Porém, não surpreende, pois, no Brasil, posicionamentos sobre a matéria podem trazer prejuízos eleitorais aos políticos que vivem a hipocrisia fantasiosa de um Estado laico.

Lucas Sidrim
Enviado por Lucas Sidrim em 23/11/2010
Código do texto: T2632812