Sobre Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino
“O coração é todo o meu ser. É o quarto secreto que garante minha identidade, lá onde sou realmente eu mesmo e onde se desenrola a minha verdadeira história. Fora do meu coração estou fora da minha casa. É lá embaixo, nas suas silenciosas profundezas, que aparece o rosto de Deus. Minha imensa saudade”. Santo Agostinho! Identifiquei-me com ele. Deve ser porque estou apaixonado. Quando estamos apaixonados, geralmente, também estamos em comunhão com Deus e seus poetas.
Leu-se muito Santo Agostinho, ninguém além dele, tem memória tão lembrada, dentre todos os bispos da Igreja Católica. Dela recebeu o titulo de doutor. Nasceu em Tagaste, uma província romana no norte da África, hoje Argélia, em 13 de novembro de 354. Antes de ser bispo, foi uma criança difícil, mas de imaginação viva e forte. Como jovem, levou vida devassa, experienciou muitas filosofias, outros ofícios, várias viagens, muitos conhecimentos. Tornou-se um homem singular tanto na vida privada quanto no modo de raciocinar. Mais tarde, foi maniqueísta. Depois conheceu Ambrósio, bispo de Milão, com quem aprendeu os caminhos do cristianismo. Homem de profundas crises, decidiu se converter ao cristianismo católico, numa época em que o catolicismo convertia pessoas. Assim, decidiu abandonar a carreira de retórico, de professor em Milão e das propostas de casamento, para dedicar-se inteiramente ao serviço de Deus e às práticas do sacerdócio.
Viveu sempre em busca da autenticidade. Depois de tornar-se muito filósofo, não acreditou que fosse indigno fazer amor. Sua amante, Flora Emilia, deu-lhe um filho, Adeodato, que morreu jovem e foi muito pranteado pelo pai. Como convertido, tentou por algum tempo fundar comunidades de fé, depois, como bispo, preferiu dedicar-se a uma pequena fraternidade, que merecia sua atenção mais que toda sua diocese. Converteu-se ao cristianismo porque procurava a verdade. Homem de reputação brilhante, ainda hoje é acusado de heresias.
Outro grande doutor da Igreja, considerado por alguns filósofo de mesma envergadura que Agostinho, é o frei dominicano Tomás de Aquino. Dele, lê-se muito, sabe-se pouco e compreende-se menos ainda. Um dominicano me disse que ele foi o mais sábio dos santos e o mais santo dos sábios. Será?
Aos 19 anos fugiu de casa para se juntar aos dominicanos. Sua vida e a de Agostinho foram completamente diferentes. Viveu na Baixa Idade Média, século XIII, sempre tranquilo, acomodado e honrado por seus confrades. Viveu para escrever, embora digam que comia muito. Sua grande felicidade foi nunca atacar a hierarquia da Igreja Média, numa época onde a obediência era a principal virtude.
Uma oposição singular entre ele e Agostinho reside no fato de que, no curso de sua vida não teve paixões nem fraquezas; nunca se aproximou de uma mulher. Os dominicanos consideram Agostinho um sábio santo e este último um santo sábio. Pouca gente entende santo Tomás que, ao contrário de Agostinho, não era poeta. Sistematizou a teologia, leu os gregos no original e traduziu muitas obras primas de Aristóteles. Subiu nas costas de Agostinho e, a partir daí, tentou fundar seu sistema metafísico. Quando li sua Suma Teológica pela primeira vez, fiquei maravilhado; pensei ter encontrado uma fonte original. Disse para meu professor de metafísica, como um jovem que aprende as primeiras lições de lógica, que, em Tomás de Aquino, a genialidade não está nas respostas, mas nas perguntas. Risos! Ora, disse-me o professor: “as perguntas não são de Tomás, são de Aristóteles”. Numa segunda leitura da Suma Teológica, percebi que as respostas são bem medíocres.
Não creio que se deva comparar a filosofia de Tomás à de Agostinho: a primeira enclausura, a segunda, liberta. Se santo Tomás não conheceu o pecado, porque, então, é santo? Deveria ser anjo e ensinar teologia para seus noviços de angiologia. Por desconhecer o homem, ele o aprisionou em categorias e hierarquias. Já Agostinho soube o que é pecar, conheceu a vida e seus enigmas, suas avenidas e vielas, mas escolheu o caminho que mais lhe integrou consigo mesmo. Esse, acredito, foi santo, pois conhecia o que renunciava. É dele que quero ser noviço.
Agostinho deu visão aos cegos, falou a linguagem do coração, acreditou no amor e na felicidade. Primeiro tentou encontrar-se nos outros e depois em si mesmo. Por fim, achou as razões do seu viver em Deus, que é tão estranho para alguns, mas muito real para ele. Josteinm Gaarder, autor do romance juvenil, "O Mundo de Sofia”, publicou um livro, "Vitas Breves", sobre a amante de Agostinho, Flora Emília, que vale a pena conferir. Santo Tomás parece que não teve crises, falou a linguagem da razão, embora dele possa se aproveitar vários aforismos de grande eloqüência. Transcrevo um: “A razão é a ignorância da inteligência”.
Sobre os erros e acertos metafísicos de Tomás e Agostinho, não pretendo me estender; apenas termino com um texto do Santo doutor e bispo de Hipona. Quanto a Tomás, dizem que era muito gordo e que, na mesa do refeitório, fizeram um buraco para caber sua enorme barriga. Agora vejam o que ele fez com seu próprio corpo e imaginem o que ele pode fazer com nossa alma?
Durval Baranowske, Filósofo e escritor
“O que amo quando amo o meu Deus? Não amo a formosura corporal, nem a glória temporal, nem a claridade da luz tão amiga destes meus olhos, nem as doces melodias das canções de todo o gênero, nem o suave cheiro das flores, dos perfumes ou dos aromas, nem o maná ou o mel, nem os membros tão flexíveis aos abraços da carne.
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Amo certa luz, certa Voz, um Perfume, um Alimento e um Abraço. Que são a luz, a voz, um perfume, um alimento e um abraço do homem interior que mora em mim, e onde brilha para a minha alma uma luz que nenhum espaço contém; onde ressoa uma voz que o tempo não destrói; de onde exala um perfume que nenhum vento pode dispersar; onde se experimenta um sabor que nenhuma saciedade pode desfazer.
Eis o que amo, quando amo o meu Deus”.
Santo Agostinho. In: Confissões.