Para quem estudo Direito e a tal da eqüidistância

Gosto de ser gente porque sei que o futuro não é dado, mas construído. Logo, sou protagonista do meu verbo, sujeito de minha oração. Sendo gente, aceito a responsabilidade de construir o futuro e estou consciente de que é necessário fazer escolhas, rejeitar opções, realizar decisões: tomar partido.

Não posso, portanto, me evadir de meu papel de agente histórico e transformador da realidade em que estou inserido e que está em contínuo processo de construção e desconstrução. Devo ver, planejar e agir. Devo denunciar e anunciar novas formas de estar – pois o mundo não é, está sendo.

Como estudante de Direito, preciso reconhecer a influência das carreiras jurídicas no avanço e caminhada da sociedade, enquanto mecanismo e instrumento propulsor de mudanças e de manutenção, e, principalmente, como a esperança social de que se concretize o ideal de justiça.

O Direito encontra razão de ser na sociedade e, assim como a educação e a mídia, a cultura jurídica é ideológica, por mais que se paute sob o véu da imparcialidade e da eqüidistância.

Ora, tais coisas realmente existem? Há de fato uma Justiça e um Direito neutros, imparciais e eqüidistantes? Por que e para quem estudo o Direito?

Observa-se uma defesa de Justiça neutra baseada na dificuldade de se estabelecer um senso comum de Justiça. Ou seja, muitas vezes o que é justo para um pode não ser para outro.

Mas será que não existe um mínimo comum deste ideal? Digo, há alguém que considera justo que alguém passe fome no mundo? Que uma criança seja estuprada? Que famílias não tenham onde morar? Há quem discorde da necessidade de superação de tais panoramas de desigualdades e violações?

A própria postura de se afirmar imparcial é escolha de manutenção e de legitimação ideológica velada da ordem social vigente. É uma forma velada de se calar diante das injustiças.

A eqüidistância é outro valor questionável. O Direito não se reduz ao fenômeno legislativo, mas apresenta leis criadas pelos homens, na defesa de valores e bens jurídicos considerados pelos homens como passíveis de tutela (o que se faz a partir de escolhas e decisões), aplicadas e julgadas pelos e para os homens, na composição e atuação do Poder Judiciário referente à resolução de conflitos e manutenção de uma convivência pacífica social, o que pressupõe, aliás, como estado inicial a paz – e não a luta e o conflito de interesses e posições, de onde emerge o Direito.

Sendo o Direito construído desta maneira, devem-se considerar as experiências e vivências prévias na formação do jurista, além da própria cultura jurídica passada e (re)pensada na prática universitária.

Ciente de que a universidade é pública, mas não popular, nesta semana foi lançada uma pesquisa da USP que constata a óbvia existência de uma nobreza togada, concluindo que elites jurídicas provêm de mesmas famílias, universidades e classe social.

O autor da pesquisa faz considerações bastante válidas acerca da composição dos Tribunais Superiores brasileiros, criticando o quesito do ‘notório saber jurídico’, conforme se depreende da seguinte assertiva:

No caso dos Tribunais Superiores, não há concursos. É exigido como requisito de seleção ‘notório saber jurídico’, o que, em outras palavras, significa ter cursado as mesmas faculdades tradicionais que as atuais elites políticas do Judiciário cursaram.

Para além desta questão, havendo maior diversificação social no meio universitário, não apenas no acesso como também na produção do conhecimento produzido e trabalhado, através de maior diálogo entre os saberes popular-acadêmico e também por meio de inserção de indivíduos provenientes de comunidades que vivenciam contextos de vulnerabilidade sócio-econômica, a jurisprudência certamente será diferente e a preocupação e compromisso social se revelarão na defesa de minorias sócio-econômicas, dadas as experiências em situações de opressão.

É preciso, portanto, (re)pensar a cultura jurídica vigente e questionar se a efetiva concretização da Justiça se dá através da distância decorrente de uma postura conservadora e manutendora da eqüidistância e imparcialidade.

Como homem, faço escolhas e coexisto, pois não sou capaz de produzir tudo que preciso para viver sozinho. Preciso ser e fazer nós. Sei que o mundo em que trabalharei não se encontra no espelho, mas na janela e, como sujeito, me vejo em um contínuo exercício de alteridade em que concebo os demais sujeitos e suas orações diante de suas realidades.

Por tal razão, não posso conceber uma justiça que paire acima dos conflitos, distante, neutra e imparcial. Rejeito, assim, a cultura jurídica ensinada em celas de aula e isolada em códigos, que revela em si a conservação e manutenção de contextos de opressão.

Reconheço para mim a necessidade de uma justiça e prática comprometidas com a certeza de que o Direito deve ser instrumento de transformação social frente à desigualdade, opressão e violação aos direitos humanos encontradas em nossas janelas e dentro de tantas casas, enquanto bandeira de esperança e de Justiça.

E você, para quem estuda o Direito?

Obras consultadas:

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia.

AGUIAR, Roberto A. R. de. O que é Justiça: uma concepção dialética.

A nobreza togada: as elites jurídicas e a política da Justiça no Brasil. http://www.redebrasilatual.com.br/temas/cidadania/elites-controlam-o-sistema-judicial-confirma-pesquisa-da-usp?utm_source=twitterfeed

Lucas Sidrim
Enviado por Lucas Sidrim em 22/11/2010
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