Continuar vivendo

O anseio do ser humano é viver para sempre. Por conta desse desejo, a humanidade tem criado mitos, teorias ou sistemas para prolongar a vida ou voltar a viver aqui na terra, no mesmo estilo de vida material Eu que creio na ressurreição, sei que viverei a eternidade na casa do Pai.

Há tempos, publiquei nos jornais onde tenho coluna, um artigo a respeito dos transplantes de órgãos como forma de solidariedade, bem como de prolongar a vida do doador na existência do contemplado com a doação. Comentava até o fato de uma mulher que se apaixonou por um homem que recebeu o coração do marido falecido. Aí a poesia se mistura com a vida. Nada demais, pois a vida é cheia de poesia.

Pois me escreveu o leitor, em carta muito gentil, onde afirmou comungar totalmente de minhas colocações, ou seja, ele acha um gesto de extrema solidariedade o ato de se doar órgãos, mas teme algum descaminho, como atropelo à ética ou o ilícito da venalidade, coisas que, ele e eu pensamos assim, nenhum segmento da nossa sociedade está imune. A coisa mais certa é a morte. Tem tolos por aí que se negam a falar no assunto. Outros, mais pragmáticos, já têm até seus jazigos comprados, para não submeter a família ao sufoco daqueles momentos de estresse.

Eu pedi à minha família para ser cremado, e as cinzas jogadas num determinado ponto do rio Guaíba. A minha Igreja não se opõe à cremação. Pensando na páscoa da vida terrena para a outra, pensei num testamento, que pode ser o meu ou o de qualquer um de nós, um legado não de bens mas de valores. Um dia, um médico determinará que meu cérebro deixou de funcionar e que basicamente minha vida biológica acabou. Quando isto acontecer, não tentem introduzir em mim uma vida artificial por meio de máquinas ou meios artificiais.

Ao invés disso, dêem minha visão ao homem que nunca viu o nascer do sol, o rosto de um bebê ou o amor nos olhos de uma mulher. Dêem meu coração a uma pessoa cujo coração só causou intermináveis dores e sobressaltos. Dêem meus rins a uma pessoa que depende de uma máquina para existir, semana após semana. Peguem meu sangue, meus ossos, cada músculo e nervos do meu corpo e encontrem um meio de fazer uma criança aleijada andar. Peguem minhas células, se necessário, e usem de alguma maneira a que um dia um garoto mudo seja capaz de gritar quando seu time marcar um gol, e uma menina surda possa ouvir a chuva batendo na sua janela ou, pelo menos o latido de seu cão. Queimem o que sobrar de mim e espalhem as cinzas para o vento ajudar as flores a nascerem.

Se realmente quiserem enterrar alguma coisa, que sejam minhas falhas, minhas fraquezas, meu orgulho e todos os preconceitos contra meus semelhantes. Dêem meus pecados ao diabo e entreguem minha alma a Deus.

Se quiserem lembrar de mim, façam-no com um ato bondoso ou dirijam uma palavra delicada a alguém que precise de vocês. Se vocês fizerem tudo o que estou pedindo, eu viverei para sempre. O que é viver para sempre, senão estar na lembrança daqueles a quem amamos

e com quem convivemos?

Antônio Mesquita Galvão
Enviado por Antônio Mesquita Galvão em 12/10/2006
Código do texto: T262486