Quem é o meu próximo?
Texto bíblico: Evangelho de Lucas 10.25
Para dar início ao comentário sobre a parábola do bom samaritano, pensei nas vezes que ouvi pessoas pregando sobre o assunto e a maneira como o exemplo do samaritano sobressaia às atitudes do fariseu e do levita. O que me incomodava era o tom de voz e a ênfase nos exemplos e como não podia deixar de ter, ficava constrangida com as críticas feitas aos judeus. Decidi analisar o texto e o contexto sócio-cultural da época. Não se escandalize com o que descobri.
Quanto vale a vida eterna? Alguém poderia responder?
Em seu ministério terreno, Jesus foi abordado diversas vezes. Seus interlocutores queriam receber curas, dádivas materiais, conhecimento sobre a vida e de como manter um bom relacionamento com Deus e com o próximo. Mas em algumas ocasiões, seu trajeto foi interrompido por aqueles que queriam testar seu conhecimento ou sua divindade.
Nesta passagem bíblica relatada por Lucas, um homem especialista na Lei, conhecedor de todo regimento que ela exigia, indaga o mestre a respeito da vida eterna: Que farei para herdar a vida eterna?
Observe a pergunta: “Que farei?” Poderia o homem herdar algo tão precioso por seus próprios méritos? Estaria ele tão cônscio de ter executado suas obrigações com tamanha perfeitas, que isto lhe daria a vida eterna?
Quanto poderia custar a vida eterna? Será que o amigo leitor já teve a audácia de se perguntar isto? Ou em tempos remotos, achar que suas boas ações e inúmeras orações fariam de você, um verdadeiro herdeiro dos céus? Ainda hoje muitos vivem iludidos com esta situação e procuram de todos os meios defender sua opinião.
É bem provável que se estipulássemos um valor, não importando o montante de dinheiro, várias pessoas passariam vida toda em função desse valioso empreendimento. Mas é certo que a vida eterna não se compra com dinheiro ou ações comunitárias.
Mas voltando a indagação daquele homem, como nos dias atuais será que ele queria uma resposta que bem se adequasse ao seu modo de viver? Será que ele queria justificar-se? “Que farei?” A pergunta continua exigindo uma resposta.
Essa mesma pergunta foi feita por um mancebo, ao dirigir-se a Jesus chamando-o de bom mestre: “que hei de fazer para herdar a vida eterna?” Lc 18.18. A resposta não agradou muito ao jovem, pois estava acorrentado aos bens materiais. O amor ao dinheiro foi decisivo em sua escolha. Herdar a vida eterna lhe era muito caro.
Qual o grau de sinceridade daquele homem? Sem dúvida ele tinha um excelente conhecimento das escrituras, o termo usado por Lucas admite que ele era especialista na lei judaica, não só na Torah como na Lei oral. A religiosidade precisava ser mais do que um conjunto de leis e ordenanças. Em sua maioria os conflitos entre Jesus e os fariseus baseavam-se nisto e Jesus queria ensinar que o cumprimento da Lei é o amor.
Mas Jesus conhecia o coração do seu indagador, suas dúvidas, seus segredos, seu interesse espiritual e a veracidade de suas intenções. Poderia ter virado as costas e seguido seu caminho, deixando-o envolvido em seu dilema. Mas certamente essa atitude não era típica dele. Então Jesus dá início a ensinamentos significativos de conduta e fé.
Além de perguntar o que estava escrito na Lei, Jesus também indagou qual seria a sua interpretação: “como lês?” Jesus queria uma explicação racional, mas também sincera e verdadeira. É lógico que sendo um doutor na Lei, não poderia devagar com um “eu acho”, ou “talvez esteja escrito” ou “é possível que”... Não! Ele teria que responder exatamente como cria, e respondeu: Está escrito!
O homem sintetizou seu conhecimento em dois credos: “Amarás ao Senhor teu Deus e ao teu próximo como a ti mesmo”. A conclusão de Jesus foi imediata. Era somente cumprir esses dois mandamentos.
Se abríssemos um parêntese aqui para comentar essa resposta, muitos dos problemas da humanidade acabariam. Para viver bem e eternamente é preciso apenas cumprir esses dois mandamentos: amar a Deus e ao próximo! Que mundo maravilhoso onde as pessoas se respeitariam mutuamente, agradando a Deus, sendo-lhe fiel em tudo na certeza de alcançar um bem tão precioso como a vida eterna!
O problema é que o ser humano não está acostumado a facilidades. A vida eterna parecia tão simples de se obter! Amar a Deus tê-lo como Senhor, Soberano e Único? Este é o Shema. A oração diária do povo judeu até os dias de hoje! Não haveria esforço nenhum em cumprir esta parte da Lei. Amar o próximo e fazer um Tzdakah? Simples assim?
Todas as dúvidas terminariam ali, mas a pergunta seguinte: “quem é o meu próximo?” Estendeu a conversa por mais tempo.
A discussão passa para outro plano quando Jesus explica com parábolas, da religiosidade à prática, de uma simples declaração para o exercício dos sentimentos.
Mas como exteriorizar sentimentos de amor ao próximo sem ao menos estar capacitado para reconhecê-lo no dia a dia? Ou nas diversas circunstâncias vivenciadas pelo homem?
Afinal, quem é realmente o meu próximo? Um parente, um amigo, um filho, um vizinho? Ou o meu próximo pode ser qualquer pessoa estando ela perto ou longe? Amigo ou inimigo? Necessitado ou não? Independente, religioso, culto, leal ou anônimo? Quem é essa pessoa que eu preciso amar, ajudar, compreender, aceitar suas atitudes e respeitar suas limitações e até mesmo me privar de julgá-la?
O segundo mandamento registrado em Mateus 22.39 diz: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo". Isto implica em mais que um sentimento de tolerância para com outra pessoa. Implica em deixar fluir os sentimentos mais puros, anular os negativos, que nos impede de uma boa convivência, e tudo isso com o intuito de agradar a Deus.
Mas como o religioso indagou sobre quem seria o seu próximo, Jesus resolveu ensiná-lo por meio dessa parábola. Três personagens demonstrariam o grau de religiosidade que mantinham diante de Deus e o tratamento que davam ao próximo.
O primeiro personagem é um sacerdote. Um homem escolhido por Deus para oferecer sacrifícios e orações pelo povo de Israel. Este era o ofício desde a construção do Tabernáculo, quando o povo peregrinava no deserto até aquela época. Por certo aquele vinha do Templo, onde além de suas funções, fazia orações e abstinências. Era um homem temente a Deus, um judeu praticante. O levita passou após ele e também era considerado um homem sábio e temente a Deus.
O terceiro personagem era um samaritano. Aos olhos dos judeus, um homem até certo ponto desprezível por não cumprir com rigor as exigências da Lei e por isso judeus e samaritanos não se comunicavam, não trocavam gentilezas, não bebiam água na mesma vasilha. Daí a surpresa da mulher junto ao poço quando se encontrou com Jesus: "Como sendo tu judeu fala comigo, que sou mulher samaritana?" Jo 4
A parábola do bom samaritano mostra três tipos de pessoas religiosas, mas com sérias divergências quanto à prática e sentimentos de amor ao próximo.
O quarto personagem era provavelmente um judeu, pois descia de Jerusalém para Jericó. No caminho sofre agressões físicas e tem sua vida ameaçada. Ferido, ficou ali, a beira da estrada a espera de socorro.
No versículo 31, podemos observar a atitude do sacerdote e do levita em relação aquele moribundo caído à beira da estrada. O texto afirma que, pelo estado que ficou o homem após sofrer várias agressões, parecia morto. Talvez nem mesmo pudesse se mover para pedir ajuda, ou poderia estar inconsciente todo o tempo. Qualquer um o consideraria como morto
Lucas o primeiro grande historiador do Cristianismo, relata no texto exposto por Jesus, dando ênfase ao fato de que tanto o sacerdote quanto o levita passaram de largo, à distância. É possível que até o tivessem observado, mas rapidamente, continuara seu trajeto.
O passar de largo aqui implica numa atitude consciente. Uma escolha entre transgredir a lei e sofrer as conseqüências: sete dias afastado do Templo conforme as exigências da Lei ou tocar num morto. Imagino que tanto o sacerdote como o levita, devido a sua dedicação, ao seu sentimento de devoção a Deus nem ousaram parar para meditar na decisão e optaram em seguir seu caminho.
O samaritano que vinha atrás, não se sabe se logo, ou passada algumas horas, tomou outra atitude. Interrompeu sua viagem e aproximou-se do moribundo caído no chão. O texto diz que ele era apenas um samaritano não faz comentário sobre uma possível função religiosa. É provável que fosse uma pessoa comum. E como não havia tanto rigor na prática da sua religiosidade no que diz respeito as lei da purificação, ele cuidou dos ferimentos da vítima e ainda levou-o a uma estalagem deixando-a aos cuidados de outrem. E ainda mais, arcou com as despesas financeiras. Sem dúvida uma atitude louvável.
Depois de expor a parábola, Jesus perguntou ao doutor da lei o que ele havia aprendido sobre as atitudes daqueles homens e quem era o próximo do ferido: o sacerdote, o levita ou o samaritano? Ele respondeu: o que usou de misericórdia. No discurso das beatitudes Jesus ensina: “Bem aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia”. Em outro discurso disse: “tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lhos também”.
Usar de misericórdia foi à resposta final para a pergunta primeira daquele homem. Quem quiser herdar a vida eterna, tem que exercer uma religiosidade pura, completa, onde o amor a Deus esteja em primeiro lugar e o amar o teu próximo como a ti mesmo, segundo.
Embora alguém ainda critique as atitudes do fariseu e do levita, o texto nos revela que ao responder as indagações daquele homem, o próprio Jesus não o criticou, não o desrespeitou. Apenas manteve uma conversa clara e objetiva quanto às questões religiosas. Talvez seja isso que falta em nossos dias: Respeito!
Extraído do livro Parábolas do Semeador de Marion Vaz