SOMOS LIVRES?
“Para o ser humano não há receita”
Meu amigo disse a mim que fui muito feliz ao dizer esta pequena frase. E com ela queria pensar sobre diversos aspectos da vida do ser humano, ou melhor, em TUDO o que comporta a vida de uma pessoa.
Frequentemente, com extrema frequência, olhamos para a vida dos outros e pontuamos aquilo que estaria “errado”, os pontos que supomos serem “corretos”, e com nossa enorme e tão alardeada modéstia, temos sempre uma receita para as dificuldades alheias.
É só examinar nossas conversas diárias que conseguiremos notar o quanto de pretensão e soberba exercemos sem nem mesmo nos darmos conta do absurdo que praticamos.
E não há de fato uma “receita” para se viver e para ser.
Quando dizemos: fulano deveria fazer desta forma, agir deste jeito, não deixamos de ser ridículos. Ou sob que perspectiva queremos que as outras pessoas ajam? É claro, dirá alguém pouco modesto, que aja da “forma correta”. Mas qual será “a forma correta”. Qual será está poção mágica do bem viver, do viver “certo” que esta alma pretensiosa possui?
Falando sobre a vida do irmão, sob os rumos que ele está dando para sua vida, o meu amigo e elogiador discorria: “Tudo isso é CULPA de minha mãe, ela que o fez assim”. E depois de ouvi-lo culpar a mãe muitas vezes, veio-me à cabeça: ora, a mãe criou os dois meninos. Um acredita que vive da “forma correta” enquanto o outro vive de forma “errada” e a mãe é a culpada pelos infortúnios de ambos.
Perguntei a ele: Se assim é, quem será o culpado pelos fracassos de sua mãe? Sua avó? E para os de sua avó, sua bisavó? E o leitor já terá percebido que chegaremos desta forma até Eva. Essa maldita primeira mulher que arruinou toda a humanidade com seu primeiro pecado.
Pobre Eva!
É muita culpa para uma só pessoa carregar. Eva carrega o maior de todos os fardos; ela é simplesmente aquela que colocou o pecado no mundo. E o simbolismo de Eva nos pega sorrateiramente. Eva é mulher! Ora, a mãe culpada dos infortúnios também é mulher. Por que meu amigo não culpou o seu pai que de fato nunca participou da educação dos filhos?
Ainda bem que a pessoa Eva nunca existiu, mas apenas persiste seu MITO.
Primeira constatação. A mulher é o ícone da culpa. Ela é a pecadora por excelência.
Mas eu também, pessoa boa e quase santa, por muito tempo culpei meu pai pelos meus fracassos e infortúnios. Achava que ele poderia ter feito mais, pensava que ele poderia ter sido menos indiferente, mais ativo, mais atencioso, mais dedicado...
Eu, ressentido e magoado, precisava, assim como meu amigo, de um bode-expiatório para explicar o que é inexplicável; queríamos que nossos genitores nos legassem a receita do bem viver, o como atingir plenamente nossos objetivos, o como alcançar a felicidade e mantê-la para todo o sempre.
Mais que ingenuidade sem precedentes!
Queríamos que seres humanos, tal qual nós mesmos, fossem SUPER HUMANOS, ou seja, por serem nossos pais, acreditávamos e exigíamos que por nós esses pobres seres humanos fossem muito além do que são, mas eles são apenas simples pessoas como todas as outras.
Pai e mãe, cuidado! As expectativas depositadas em vocês são inatingíveis. Pensem bem antes de ir para a cama.
Ou seja, elevamos à enésima potência a responsabilidade de uma pessoa porque esquecemos que ela é apenas isso: uma simples pessoa. Mas, por serem nossos pais, por ocupar este “privilegiado” papel, cobramos deles atitudes heróicas, além de toda possibilidade, além de todos os possíveis.
Vamos mais além.
Quem e o quê moldam o comportamento de um ser humano?
Ele mesmo? A sociedade? Seus pais? As instituições? A escola? A igreja? Deus? Quantas coisas para interferir em nossa pequena vida, vocês não acham?
E de todas estas influências qual será a que influencia mais? Qual será a que mais determina alguém? Será possível medir a intensidade de cada um desses fatores na vida de um ser humano? Terá esse ser humano força, discernimento, força de vontade para livrar-se de todos esses fatores de condicionamento?
Não estaríamos exigindo demais de nós mesmos? E exigindo ainda mais dos outros?
Tudo o que influencia o ser humano não pode ser medido. Não é possível saber em que medida cada elemento influenciador exerceu influência e até que ponto determinou ou condicionou alguém.
Ah, tem mais um fator que é por demais importante, por demais condicionante e, escrevendo isso, lembrei-me ainda de outros fatores.
O tempo, a época em que alguém vive, necessariamente será muito importante na forma como se pensa e como se age, o modelo econômico vigente, com a mais absoluta certeza, exercerá influência em todos os aspectos da vida de uma pessoa e mais, a parte inconsciente de cada um se juntará a esse “caldo” para dar as propriedades do ser humano.
Mais uma coisa é necessária ser dita.
Mesmo com tudo isso, ainda existe a forma particular e indeterminada com a qual cada um interpretará os fatos brutos que até ele chegam. Ou seja, cada um responderá aos estímulos recebidos da realidade de maneira muito peculiar, muitíssimo própria, demasiadamente personalizada.
E não sabemos o porquê isso se dá desta forma, simplesmente não sabemos.
Depois disso tudo, de analisar de forma ainda precária, quantos fatores diversos atuam sobre a vida de um ser humano, fica difícil falarmos sobre culpa. Depois de pensarmos desta forma seria uma irresponsabilidade responsabilizar alguém por ser o que é.
Ou seja, para o homem não há receita, não há um modo certo de se viver, não há cartilhas, não há como culpar ou responsabilizar alguém por ser como é. Tudo isso porque não sabemos o que o levou a ser como é. Não há como saber. E ele não é culpado por ser assim, por agir assim, não escolheu livremente nem nascer, quanto mais ser deste ou daquele jeito.
Não se coloca um homem dentro de uma moldura, qualquer moldura que seja, e se diz “assim ele deve ser”. Isso, além de absurdo, é ridículo e impraticável.
E também porque as molduras servirão a determinados interesses; os quais na maioria esmagadora das vezes não foram escolhidos, mas impostos. Inconscientemente aceitos.
Assim, uma das muitas conclusões das quais é possível se chegar, exercendo grande modéstia, é a de que o livre-arbítrio é uma FÁBULA.
Talvez o livre-arbítrio seja apenas e somente uma palavra composta, inventada, não correspondente com ABSOLUTAMENTE NADA que exista de efetivo, de real, que surgiu somente com o intuito de responsabilizar as pessoas por aquilo que elas não podem ser responsabilizadas.
Pois, ante tantos condicionamentos, tantos fatores a influenciar um ser, quanto de livre-arbítrio esse ser possui? Até que medida é possível “medir” um pretenso livre-arbítrio?
De fato, não é possível falar que o ser humano exerce um livre-arbítrio, pois mesmo que suas escolhas pareçam, até mesmo a ele, serem livres, estas escolhas são frutos de toda a sua história de vida, de todos os ingredientes que fizeram esta vida chegar até ali, no momento da decisão de agir, e fazer o que faz, e ser o que é.
Não há livre-arbítrio, mas apenas uma SENSAÇÃO de livre-arbítrio, uma FALSA sensação de liberdade.
Uma sensação deliberadamente criada com a finalidade de fazer crer que o homem atua de forma livre. Uma mentira engendrada de forma sorrateira e covarde. Um engodo feito para tornar as pessoas culpadas, responsáveis por aquilo que fazem e que, sem escolha livre, SÃO.
Não se escolhe o que se é. Apenas se é. O problema do livre-arbítrio não é o fato de não poder escolher, mas o fato de não haver liberdade para escolher. Pois, quando escolhemos, há toda uma vida ali presente na hora da escolha.
Temos apenas uma sensação, e eu mesmo experimento essa sensação, de agir livremente. Mas, na verdade apenas há um SENTIMENTO de livre agir, pois quando pensamos que agimos livremente, desconsideramos e reduzimos a IMENSA complexidade que somos nós mesmos e todos os fatores existentes no mundo que nos condiciona.
O livre-arbítrio é apenas uma SENSAÇÃO.
Ele inexiste no mundo da realidade, ele é apenas uma NOÇÃO de livre agir, uma noção FALSA de liberdade, noção enganadora, palavra sem nenhuma correspondência com o mundo dos fatos e com as mais diferentes matizes de nossa riquíssima e variada realidade.
Não é possível nos livrarmos de toda nossa e história pregressa ao agir. Não é possível nos desvencilhar de todo o mundo, de todas as instituições e de tudo aquilo que nos tornou o que somos quando agimos.
Quando agimos, não está ali uma pessoa trancafiada naquele único momento, mas está ali toda uma história que se carrega numa alma desde tempos imemoriais.
Agimos determinados por tudo quanto somos, por tudo quanto o mundo foi e é. Não é possível reduzir um momento de ação somente àquele momento. Isso é uma tolice.
É por isso que aquele irmão que nós acreditamos viver uma vida errante não deve ser culpado por assim viver. E nem sua mãe, nem seu pai, nem ninguém!
Ora, temos a receita da felicidade nas mãos, mas nossa vida não é plena e feliz como queríamos. Mas, certamente nossa receita pode servir para os outros. Isso é uma maneira muito cândida de pensamento.
Falar em livre-arbítrio, acreditar que exista o livre-arbítrio, é REDUZIR de forma drástica a complexidade do homem e do mundo no qual ele vive. Em outras palavras, usando um eufemismo, é ser burro.
Pois para se acreditar que exista uma tal entidade, é necessária uma noção de uma predominância da razão no agir do homem.
Mas a conquista da razão vem num tempo muito tardio na vida de um homem. Tempo em que já não é mais possível que esta suplante tudo aquilo que até ali formou uma personalidade, uma pessoa.
E não há nada mais longe da efetividade. A razão é apenas uma fagulha perdida na imensidão que é o universo de apenas um homem.
É só realizarmos um retorno na história humana que seremos presenteados pela história da desrazão e da completa ausência de um ser humano livre para agir sem todas as influências que o cercam.
É preciso que ultrapassemos a noção de livre-arbítrio.
Não para alcançarmos uma utópica felicidade ou sermos melhores porque isso simplesmente não é possível. Mas para vivermos mais desculpados e menos açoitadores dos outros e de nossa própria consciência.
A ultrapassagem da noção de livre-arbítrio seria um pequeno ensaio de felicidade e de lucidez.