A dinâmica do perdão (SERMO CI)

A DINÂMICA DO PERDÃO

Prof. Dr. Antônio Mesquita Galvão

Vá que os teus pecados estão perdoados (Mt 9,2).

Jesus fez muitos “sinais” em sua vida pública. A rigor, esses sinais apontam para um tipo de atividade taumatúrgica, na qual o Mestre realiza milagres ou atividades sobrenaturais. O sinal que vamos estudar hoje é bem natural e não tem nada de fantástico, embora esteja revestido daquilo que é inerente à pessoa de Jesus, que é a misericórdia.

Mais vigoroso do que um milagre, o ato de perdoar traz em sua pedagogia a essência do Deus-Amor que Jesus veio relevar. Essa superveniência do perdão sobre a condenação forma a essência da boa notícia. A revelação não é de um Deus que pune e castiga, mas de um Pai que é rico em misericórdia (cf. Ef 2,4).

O povo não procurava Jesus somente por causa das curas e milagres. Jesus, Paulo, Pedro e os demais apóstolos atraíam as pessoas pelo ensino ministrado com autoridade.

Um grande sinal de Jesus foi feito na capital Jerusalém, chamando para si uma conotação de universalidade. Este trecho, como já alertamos, foge daquele contexto geral do sinal-milagre. Tanto assim que ele não é relacionado entre os ditos sinais, pois se trata de uma atitude social de Jesus, e que, embora sem ter nada de sobrenatural, faz eclodir uma vigorosa mensagem, capaz de sinalizar nossa rota na direção do Reino dos céus.

Jesus foi para o monte das Oliveiras. Ao amanhecer, ele voltou para o Templo, e todo o povo ia ao seu encontro. Então Jesus sentou-se e começou a ensinar. Chegaram os doutores da lei e os fariseus trazendo uma mulher, apanhada em adultério. Eles colocaram a mulher no meio e disseram a Jesus: “Mestre, essa mulher foi surpreendida cometendo adultério. A Lei, Moisés manda que mulheres desse tipo sejam apedrejadas. E tu o que dizes?”. Eles diziam isso para pôr Jesus a prova e terem um motivo para acusá-lo. Então Jesus, inclinou-se e começou a escrever no chão com o dedo. Os doutores da Lei e os fariseus continuaram insistindo na pergunta. Então Jesus se levantou e disse: “Quem de vocês não tiver pecado, atire nela a primeira pedra”. E, inclinando-se de novo, continuou a escrever no chão. Ouvindo isso, eles foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos. E Jesus ficou sozinho. Ora, a mulher continuava ali no meio. Então Jesus se levantou e perguntou: “Mulher, onde estão os outros? Ninguém condenou você?”. Ela respondeu: “Ninguém, Senhor”. Então Jesus lhe disse: “Eu também não a condeno. Pode ir, e não peque mais” (Jo 8, 1-11).

A história relata o fato de duas pessoas que são surpreendidas em um flagrante de adultério. O evangelho, fiel à cultura palestinense daquele tempo, não fala em “duas pessoas”. A menção do segundo personagem (igualmente adúltero) é como que uma permissão exegética deste autor. Sim, pois sabemos que não existe adultério individual! Em todos os tempos o adultério masculino lhe confere pontos positivos, enquanto o da mulher é execrável, como a mais abjeta traição.

Realmente a mulher era adúltera. Nada de eufemismos. Era adúltera mesmo. Eles imediatamente citaram a Lei, mas apenas pela metade. É o que muitos têm feito há tanto tempo...Na Lei estava escrito: “Também o homem que adulterar com a mulher de outro, havendo adulterado com a mulher do seu próximo, certamente morrerá o adúltero e a adúltera”. (cf. Lv 20,10). Mas, onde estava o homem? Por que trouxeram somente a mulher? Por que estavam usando dois pesos e duas medidas? O que era aquilo? Um machismo patriarcalista?

Onde estava aquele sem vergonha? Era, por acaso, algum político? Era um homem importante? Um militar, quem sabe? Era um protegido dos sacerdotes? Era amigo ou parente dos fariseus?

Em uma sociedade hipócrita e medíocre – como aquela e também a nossa, de hoje em dia – apanham apenas a mulher, dispostos, não tanto a justiçá-la, mas sobretudo a apanhar Jesus na contradição do velho (a antiga Lei) com o novo (o Evangelho).

Chegaram os doutores da lei e os fariseus trazendo uma mulher, apanhada em adultério. Eles colocaram a mulher no meio e disseram a Jesus: “Mestre, essa mulher foi surpreendida cometendo adultério. A Lei, Moisés manda que mulheres desse tipo sejam apedrejadas. E tu o que dizes?” (v.5).

O ser humano, de todos os tempos, sempre foi pródigo em julgamentos sobre a conduta alheia. As suas faltas ele quer ver relevadas, mas sempre aponta para as dos outros. Eticamente, o homem não pode julgar nem condenar alguém porque ninguém é isento de pecado, erro ou vício. Os freqüentes e gritantes erros que ocorrem nos tribunais atestam a propriedade dessa assertiva. Quem quiser avocar a si o direito de julgar e, sobretudo de condenar, esse deve ser irrepreensível. O que não existe. É comum se ver magistrados apanhados em deslizes que, em seus tribunais acarretariam pesadas penas. Jesus, mesmo sendo Deus não veio julgar, muito menos condenar (cf. Jo 3, 17).

Sob esse aspecto a Bíblia nos mostra que Deus não quer a morte do pecador, mas que ele mude de vida, que se converta (cf. Ez 18, 32; Mc 1, 15) e tenha, a partir dessa mudança, uma vida plena (cf. Jo 10, 10)

Mestre, essa mulher foi surpreendida cometendo adultério. A Lei, Moisés manda que mulheres desse tipo sejam apedrejadas. E tu o que dizes? (v. 4s)

Estava criado o impasse. Este e tu o que dizes? é por demais capcioso. Cumprir a lei dos judeus seria negar toda aquela superveniência do amor, que norteava as pregações de Jesus. A partir de agora, ele pisava em terreno minado. Ir contra a lei, representava um pecado passível de morte. O dilema não deixava muita saída.

Perdoar seria ir contra a lei de Moisés, que regia todo o corpo doutrinário do judaísmo. Não perdoar, sendo favorável à pena capital (e à lei que ele tanto criticava) era ir contra toda aquela doutrina de amor que ele preconizava contra o frio formalismo das leis judaicas. Condenar? Onde o perdão? Onde o amor? Condenar alguém à morte, por cruel, não é cristão e faria a doutrina perder sua lógica, como cair em um entimema confuso e sofista, em que uma das premissas estivesse errada. Jesus, com sua sabedoria dá uma nova visão ao dilema:

Quem de vocês não tiver pecado, atire nela a primeira pedra (v. 7)

O Mestre se recusa a ocupar o centro da polêmica em que seus interlocutores querem colocá-lo. Sua resposta sábia contorna as armadilhas daquele dilema. Àquela altura não estava em jogo como ele interpretava a lei, mas a forma como uma pessoa, social e religiosamente execrada podia ser reintegrada. Ele conhecia os corações dos acusadores e sabia que neles não havia nem justiça nem misericórdia, mas apenas o desejo de apanhá-lo em alguma armadilha.

Jesus se inclinou e começou a escrever no chão com o dedo (v. 6)

A ficção de alguns biblistas levanta a possibilidade de que ele escrevesse no chão os pecados daquela gente. A antiga lei dos judeus, num nítido regime teocrático, era rigorosa quanto ao cometimento de diversos pecados considerados graves, entre eles o do adultério:

Se for encontrado um homem dormindo com uma mulher casada, ambos devem morrer (Dt 22, 22; Lv 20,10).

E tem mais: quem fosse testemunha de um delito tinha a obrigação de ser o primeiro a levantar a mão contra o transgressor (cf. Dt 17, 7). Ser o primeiro numa execução equivalia a estar limpo, sem pecado, com moral para acusar e apedrejar. O ofendido também podia avocar a si o direito de ser o primeiro a apedrejar. Essa figura, do primeiro a atirar a pedra era reservado aos mais santos, os de melhor moral ou os mais injustiçados por um crime.

Convenhamos, estas não eram nenhuma das características dos fariseus e doutores da lei. Jesus estava em apuros, pois podia, de uma hora para outra passar de julgador a réu, bastando que para tanto afirmasse que a lei mosaica não devia ser cumprida.

No caso, ora em questão, nota-se que há como que uma acomodação da lei às circunstâncias, pois apenas a mulher foi trazida à praça pública para ser morta. E o homem que estava com ela, onde foi? Por certo era algum “figurão” da cidade. Quem sabe parente de algum dos acusadores? Ou alguém que mantinha com eles relações comerciais? Ou, quem sabe, uma autoridade religiosa?

Jesus não se deixa intimidar. Eles o colocam em cheque. Se aprova o linchamento, onde estaria a sua doutrina do amor? Se fosse contra a lei mosaica, atrairia sobre si a fúria dos acusadores, acusado de herege e blasfemo. Qualquer uma das duas respostas que ele desse, a favor ou contra a mulher, serviria de munição para seus inimigos o acusarem. Ele descobre uma terceira via:

Quem de vocês não tiver pecado, atire nela a primeira pedra! Ouvindo isso, eles foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos (v. 7).

Uma a uma as pedras caem das mãos dos acusadores. Os mais velhos, por haverem vivido mais, por certo tinham mais pecados a recordar. A execução fora adiada. Jesus mostra outro caminho: o da coerência entre o discurso, as vezes vazio e a prática do perdão. Agora ele simplesmente desloca a questão do plano jurídico, abstrato, para o moral, concreto.

Sem pecado (no grego an-amártetos) quer dizer uma pessoa absolutamente sem mancha. Por mais hipócritas que fossem os acusadores, esse papel, por um pingo de decência eles recusaram... Nenhum deles estava limpo nem cumpria integralmente a lei. Eles tinham essa consciência e sabiam que Jesus conhecia seus corações (cf. 7, 19).

Jesus ficou sozinho. Ora, a mulher continuava ali no meio. Então Jesus se levantou e perguntou: “Mulher, onde estão os outros? Ninguém condenou você?” Ela respondeu: “Ninguém, Senhor”. Então Jesus lhe disse: “Eu também não a condeno. Pode ir, e não peque mais” (vv. 9ss).

Cristo não diz que a mulher está certa, nem que as autoridades dos judeus são uns hipócritas. Limita-se a sustar um linchamento, perdoando uma pessoa que, sabe-se lá porque razões pecou. Perdoa sob a condição de que ela não torne a pecar. O perdão e a repulsa aos julgamentos humanos é a essência desse sinal. A correção fraterna diante do erro eleva o pecador acima de seu pecado, e dá-lhe forças para vencê-lo.

Jesus não julga (cf. 8, 5); ele vem salvar (cf. 3, 17), tornando-se modelo para a Igreja, concessora, dispensadora, como dizem os irmãos protestantes, da misericórdia divina. É preciso levar o homem a adquirir consciência de seu pecado e não pecar mais (cf. 5, 14). Jesus condena o pecado não a pessoa que o comete.

O perdão e a acolhida de Jesus à mulher que errou são tão chocantes e inesperados, que os biblistas dos primeiros séculos decidiram omitir o texto, por julgá-lo contraditório às regras de moral e penitência da época. Por causa de certos pruridos moralistas e moralizantes, a história da adúltera só entrou para o cânon no século III, segundo nota explicativa da Bíblia Sagrada, co-edição Vozes/Santuário, 1982. Para muitos, a moral, por seus rigores não admite perdão em casos de pecado grave. Que bom que Jesus não estudou pela cartilha deles.

ATUALIZAÇÃO

Os inimigos de Jesus trouxeram um fato do cotidiano para confundi-lo e fazê-lo cair em contradição. Os cristãos, diuturnamente têm sua fé provada, e são alvo de muitas tentações, dúvidas e contestações. O demônio nos tenta, às vezes, com a Bíblia na mão (cf. Mt 4, 3-6) ou disfarçado de anjo de luz (2Cor 11, 14) sob a falsa roupagem da legalidade.

No presente evento, Jesus nos mostra que a pessoa humana está acima de qualquer lei, preceito ou tradição... A narrativa do perdão à adúltera reflete a misericórdia de Jesus e o quanto ele compreende as fraquezas de uns e a hipocrisia de outros. Não é um sinal, fantástico, sobrenatural, miraculoso, mas um gesto emblemático do cristianismo, que manda não julgar, perdoar, relevar as faltas das pessoas com vistas à fragilidade da condição humana.

Nós sabemos perdoar? Temos o hábito de fazê-lo? Honramos o “perdoa as nossas ofensas assim como nós perdoamos...”? Nunca é bom esquecer que quem não souber perdoar não será perdoado... Jesus nos mostra que é preciso usar mais indulgência com o ser humano, nosso próximo. Ele conhece a fundo nossa miséria e assim mesmo é indulgente conosco.

Quando pergunta onde estão os outros, Jesus se refere aos julgadores e acusadores de todos os tempos, exortando-os a contemplar seus próprios pecados, deixando de lado as faltas dos outros, às vezes mais brandas que as suas. O sinal de Jesus nessa narrativa alerta para a necessidade de se usar perdão e misericórdia para com nosso próximo.

Objetivamente, vemos muitas as pessoas não querem, ou não sabem perdoar, porque seus corações estão cheios de mágoas, ressentimentos, ódio até. Em coração assim repleto de coisas negativas o amor não pode fazer ninho, e a pessoa se torna amarga e arredia. Quando perdoamos, limpamos nosso interior desses sentimentos inferiores, criando espaços dentro de nós, pela reconciliação, onde Deus bem e se instala.

Bem-aventurados os misericordiosos porque alcançarão misericórdia (Mt 5, 7).

Doutor em Teologia Moral, biblista e escritor, autor de mais de cem livros, publicados no Brasil e no exterior, entre eles “Os sinais de Jesus”, Ed. Pão & Vinho, 2000. Este texto faz parte de uma homilia realizada pelo autor em uma comunidade de Porto Alegre, na Páscoa de 2009.