CIDADANIA COMO DIREITO FUNDAMENTAL NA UNIÃO EUROPÉIA
1. INTRODUÇÃO
Não é recente na história da humanidade que a sociedade internacional transforma-se no sentido de buscar integração maior entre os Estados no âmbito econômico, cultural, social e democrático. O resultado do aumento destas relações internacionais e de cooperação resultou, no direito internacional, nas chamadas organizações internacionais, que criadas por meio de tratados, colaboram mutuamente para manutenção e funcionamento com recursos financeiros e humanos.
Na atualidade, dentre os blocos regionais criados com o intuito de promover maior integração, a União Europeia é o modelo mais bem sucedido tendo em vista estar organizada com base num arcabouço institucional. Este está fundamentado no Direito Comunitário, que tem sua origem vinculada à integração europeia e pode ser compreendido como o ramo do Direito que regula os mecanismos de integração regional e caracteriza-se por ter associação direta à supranacionalidade, que deve ser interpretado segundo o vínculo e a posição de primazia de certas entidades frente aos Estados soberanos.
O agir em conjunto, entre os Estados, não se resume a apenas a adoção de políticas voltadas meramente para a economia e comércio, esta medidas integracionistas visam precipuamente a defesa dos interesses dos indivíduos, os cidadãos comunitários.
2. A CIDADANIA EUROPÉIA
2.1. EVOLUÇÃO DO CONCEITO
Etimologicamente, cidadania, tem origem no latim civitas, que significa cidade, entretanto se firma o entendimento, conforme PLÁCIDO E SILVA , “é a expressão que identifica a qualidade da pessoa que, estando em plena posse da capacidade civil, também se encontra investida no uso e gozo de seus direitos políticos”(1).
A cidadania, portanto, é determinada por dois critérios fundamentais: o da filiação ou jus sanguinis, vindo da Grécia e de Roma e o do local de nascimento ou jus soli, vindo da Idade Média, por influência dos laços feudais. Historicamente, da Grécia antiga, passando pelo Império Romano, até o pós Revolução Francesa, cidadania se confunde com nacionalidade, ou com vínculo com o Estado e até se confundir com o próprio conceito de Estado.
O estabelecimento deste conceito está engendrado no estabelecimento de uma comunidade europeia tendo em vista que, inicialmente, tinha por fim o estabelecimento de uma Europa com liberdade meramente econômica, a efetivação das liberdades individuais foi sendo construída nas diversas tentativas para integração. Pode-se destacar este anseio na época do Império Romano e na Idade Média, o Sacro Império Romano-Germânico.
Entre a I e II Guerra Mundial, culmina o BENELUX, bloco formado pela Bélgica, Holanda e Luxemburgo, que formaram em 1944, uma zona de livre comercio. Após a II Guerra, 1949, criou-se o conselho da Europa; em 1951, por meio do tratado de Paris, funda-se a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA). Em 1957, foram criadas outras duas comunidades: a Comunidade Europeia da Energia Atômica (CEEA) e a Comunidade Econômica Europeia (CEE). Todas as comunidades aqui mencionadas abarcavam, em seus Tratados, fatores primordialmente econômicos. A partir da década de 60, estas instituições iniciaram um processo de unificação que culminou na criação da União Europeia.
A expansão do conceito de cidadania se deu em 1992, quando foi assinado o Tratado de Maastricht (Tratado da União Europeia) que foi alterado em 1997, pelo Tratado de Amsterdã. Este reafirma a obrigação da União Européia em criar metas de livre movimento de produtos, pessoas, serviços e capital, cuja finalidade era a institucionalização de novo satatus jurídico que em que vigorasse a estabilidade política do continente, a qual é composta de três principais pilares:
1º. Considerado o Pilar da Comunidade, refere-se a assuntos relacionados com a agricultura, ambiente, saúde, educação, energia, investigação e desenvolvimento. A legislação neste pilar é adotada conjuntamente pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho.O Conselho delibera por maioria simples, por maioria qualificada ou por unanimidade. Em assuntos tais como fiscalidade, a indústria, fundos regionais, investigação exigem deliberação por unanimidade.
2º. O Pilar da Politica Externa e Segurança Comum, trata de assuntos de política externa e segurança comum.
3º. O Pilar da Cooperação Judiciária trata de assuntos de cooperação policial e judiciária em matéria penal.
O primeiro pilar é que introduz o reconhecimento de uma cidadania europeia, cujo escopo estava no fortalecimento da identidade europeia, permitindo aos cidadãos europeus maior participação no proparticipassem do processo de integração comunitária. A vinculação se dava a tivesse a nacionalidade de um Estado-membro da União Europeia.
A cidadania, portanto, assume na atualidade, ao que hoje recebe a debominação de supranacionalidade que pode ser entendido segundo afirma EDUARDO BIACCHI GOMES(2) como:
“Um dos principais suportes do Direito Comunitário é o instituto da supranacionalidade, que contribuiu decisivamente para a consolidação dos objetivos da União Europeia, possibilitando a adoção de políticas comunitárias compatíveis com a legislação dos Estados membros e uniformidade na tomada de decisões, com base no primado e na aplicabilidade direta das normas comunitárias. Além disso, a supranacionalidade dá condições para que as normas produzidas pelos órgãos comunitários possam ser aplicadas de forma homogênea e imediata no ordenamento jurídico dos Estados membros.”
Este caráter é perceptível ainda no preâmbulo do tratado, que dispõe que cada Estado-membro estará resolvido a instituir uma cidadania comum aos nacionais e confere direitos como de circularem e residirem livremente na Comunidade; de votarem e de serem eleitos nas eleições europeias e municipais do Estado em que residem; à protecção diplomática e consular de um Estado-Membro diferente do Estado-Membro de origem no território de um país terceiro em que este último Estado não esteja representado e o direito de petição ao Parlamento Europeu e de apresentação de queixa junto do Provedor de Justiça Europeu.
3. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA UNIÃO EUROPEIA
Segundo GEORGE MARMELSTEIN(3) , “os direitos fundamentais são normas intimamente ligadas à ideia de dignidade da pessoa humana e de limitação do poder, positivados no plano constitucional de determinado Estado Democrático de Direito, que, por sua importância axiológica, fundamentam e legitimam o ordenamento jurídico”. “
Como informa JOSÉ AFONSO DA SILVA(4) :
“No qualitativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados.”
Na sociedade europeia, como território comunitário, são considerados indivisíveis e universais, logo deve ser aplicado dentro do todo o espaço comunitário ou fora dele, sempre visando a proteção do indivíduo e estes direitos.
Tendo em vista o objetivo da União Europeia de garantir a proteção dos direitos fundamentais com o reforço de que estes assumem um caráter transcendental em relação ao Estado, estes se apresentariam como limites do poder político, tanto no nível nacional como no nível comunitário, razão pela qual configura-se como objetivo estruturante do ordenamento jurídico comunitário.
Historicamente, na comunidade europeia, os direitos fundamentais sempre foram objetivo de proteção, atingindo pontos diferentes sempre objeto da pauta de diferentes tratados como declara o Parlamento Europeu(5) :
“Desde sempre que a União Europeia afirmou o seu empenho em defesa dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. Por conseguinte, a União Europeia confirmou de forma explícita, no Tratado de Amesterdão (Tratado da União Europeia), o seu apego aos direitos sociais fundamentais e, mais tarde, no Tratado de Nice, a sua luta contra as violações dos direitos fundamentais.
Tendo entrado em vigor em 1 de Maio de 1999, o Tratado de Amesterdão estabelece procedimentos destinados a garantir a protecção destes direitos. Enuncia o princípio geral nos termos do qual a União Europeia deve respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais em que assenta a União (artigo 6.º do Tratado).
Em seguida, o Tratado de Nice completou este dispositivo com um procedimento nos termos do qual a União pode suspender certos direitos de um Estado-Membro se constatar uma violação grave e persistente desses princípios (n.º 1 do artigo 7.º do Tratado da União Europeia). Os países candidatos devem respeitar esses princípios para aderir à União (artigo 49.º do Tratado da União Europeia).
Por fim, o Tratado conferiu ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias a competência para assegurar que os direitos e as liberdades fundamentais são respeitados (artigo 46.º do Tratado).”
A formulação deste ideário resultou na introdução de um instrumento considerado inovador, a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, marco na vida política da comunidade, aparato indispensável para aprimorar a liberdade, segurança e justiça como para legitimar a União Europeia como território comunitário.
4. A CARTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA UNIÃO EUROPÉIA
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia contempla direitos no âmbito dos direitos civis, políticos, econômicos e sociais. Esta permite que os cidadãos tenham suporte das diferentes instituições comunitárias jurisdicionais invocando seus direitos e liberdades fundamentais.
A Carta apresenta um objetivo principal que está expresso em seu preâmbulo: Os povos da Europa, estabelecendo entre si uma união cada vez mais estreita, decidiram partilhar um futuro de paz, assente em valores comuns.”
Segundo KARVAT, este objetivo seria alcançado com o estabelecimento das principais funções da Carta, quais sejam aumentar a legitimidade política da União Europeia e o reforço na segurança da União Europeia.
Citando COELHO, KRAVAT(6) informa:
“A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia reforça o conceito de cidadania da UE, retomando, num texto único de 54 artigos, o conjunto dos direitos cívicos, políticos, econômicos e sociais dos cidadão europeus, assim como de todas as pessoas residentes no território da União.”
Considerada síntese dos valores europeus comuns, é resultado da herança dos países membros da UE, seja tradição cultural, econômica ou jurídica e que reflete os direitos já consagrados pelo ordenamento jurídico de seus membros. Outrossim, sua aplicação se dá neste Estados-membros, atendendo o princípio da universalidade.
Como o propósito deste trabalho não está no aprofundamento da análise dos dispositivos da Carta, cabe tão somente esclarecer que dentre os direitos catalogados são afirmados em seu escopo a dignidade, as liberdades, a igualdade, a solidariedade, a cidadania e a justiça.
Estes servem com já afirmado como diretrizes para UE, podendo ser organizado conforme apresenta KARVAT(7) :
“Artigos 1º ao 5º: DIGNIDADE. Direitos como integridade do ser humano, à vida... e proibição da escravidão e do trabalho forçado.
Artigos 6] ao 19º: LIBERDADE. Direitos de liberdade e à segurança, (...)de liberdade de pensamento, consciência e religião(...) da liberdade das artes e das ciências(...)
Artigos 20º ao 26º: IGUALDADE. Direitos de igualdade das pessoas perante a lei, igualdade entre homens e mulheres (...) e da integração das pessoas com deficiências.
Artigos 27 ao 38: SOLIDARIEDADE. Este capítulo inclui a maior parte dos direitos econômicos e sociais consagrados na Carta, como direitos dos trabalhadores, proteção ambiental e defesa dos consumidores.
Artigos 39 ao 46: CIDADANIA. (...)
Artigos 47 ao 50: JUSTIÇA. São os direitos fundamentais mais clássicos e mais importantes, tais como: direito a efetividade do acesso à justiça, direito a um tribunal imparcial, presunção de inocência e direitos de defesa (...)”(8)
4.1. A CIDADANIA NA CARTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
A cidadania tem proteção nos artigos do Título V – Cidadania, da Carta dos Direitos Fundamentais que inclui direitos que exigem uma boa administração das instituições da UE legitimando as exigências atuais de transparência e imparcialidade no governo da comunidade europeia. Ainda segundo KRAVAT, “este capítulo V considera a situação específica do cidadão europeu e faz alusão a determinados direitos já referidos nos tratados(liberdade de circulação e de permanência, direito de voto, direito de petição) introduzindo simultaneamente o direito a uma boa administração.” In verbis:
“Artigo 39.o - Direito de eleger e de ser eleito nas eleições para o Parlamento Europeu
Artigo 40.o - Direito de eleger e de ser eleito nas eleições municipais
Artigo 41.o - Direito a uma boa administração
Artigo 42.o - Direito de acesso aos documentos
Artigo 43.o - Provedor de Justiça Europeu
Artigo 44.o - Direito de petição
Artigo 45.o - Liberdade de circulação e de permanência
Artigo 46.o - Protecção diplomática e consular”
Entretanto, afirma DIREITO(9) , que “a Carta não vem densificar ou concretizar os direitos de cidadania, apenas enunciá-los, sendo que as condições do seu exercício e os seus limites em nada se alteram face ao que está previsto nas disposições correspondentes do Tratado da Comunidade Europeia.”
O autor desta três pontos, os quais considera nodais: primeiro, o disposto no artigo 45º que enuncia o direito de livre de circulação e permanência no território dos Estados membros, direito que afirma ser condicionado ou limitado, pois a Carta enuncia o direito , mas não o regulamenta as restrições e limitações a este direito; segundo, o artigo 45º não trata da livre circulação e permanência a cidadãos extra-comunitários, e finalmente, o artigo 41º, que refere-se a uma boa administração, que o autor afirma ser “uma "agradável surpresa" por duas razões: primeiro, porque constitui um progresso assinalável na democraticidade do procedimento administrativo comunitário; segundo, porque, apesar de estar inserido no capítulo da cidadania, tem um âmbito de aplicação universal, o que se compreende face à sua importância, nas relações que se travam entre Instituições ou órgãos comunitários e particulares.“ (10)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proposta de integração da União Europeia mostra-se como um processo ireversível na formação de um Estado Global, que beneficiará não apenas a economia, mas mostra a direção para o alcance da paz social entre os povos e o progressivo caminhar para um ordenamento jurídico que respeita a soberania dos Estados, sem deixar de oferecer segurança aos direitos fundamentais estabelecidos, permitindo que se efetive o que NORBERTO BOBBIO vislumbrou no clássico A Era dos Direitos, no qual afirma:
"Mas o que podem fazer os cidadãos de um Estado que não tenha reconhecido os direitos do homem como direitos dignos de proteção? Mais uma vez, só lhe resta aberto o caminho do chamado direito de resistência. Somente a extensão dessa proteção de alguns Estados para todos os Estados e, ao mesmo tempo, a proteção desses mesmos direitos num grau mais alto do que o Estado, ou seja, o degrau da comunidade internacional, total ou parcial, poderá tornar cada vez menos provável a alternativa entre opressão e resistência."(11)
NOTAS
1.E SILVA, Plácido. Vocabulário Jurídico. Forense: Rio de janeiro, 2006, p. 288.
2.GOMES, Eduardo Biacchi. União Europeia e Mercosul - Supranacionalidade versus Intergovernabilidade, p. 01
3. MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais, Atlas: São Paulo: Atlas, 2010, p. 20.
4. DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo.p. 178.
5. Os direitos fundamentais: http://www.europarl.europa.eu/parliament/public/staticDisplay.do?language=PT&id=137.
6. KARVAT, p 241.
7.Idem, p. 245.
8. Carta dos direitos fundamentai da Uni~]ao europeia . Disponível : http://eur-ex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:C:2010:083:0389:0403:pt:PDF.
9. DIREITO, Sérgio Saraiva Direito. A CARTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A SUA RELEVÂNCIA PARA A PROTECÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA UNIÃO EUROPEIA ENQUADRAMENTO HISTÓRICO-SISTEMÁTICO. P. 66.
10. DIREITO, Sérgio Saraiva Direito, p. 68.
11. BOBBIO, Noberto, A Era dos Direitos, p.31.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos.Editora Campus, Rio de Janeiro, 1992.
DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo, 2000.
DIREITO, Sérgio Saraiva Direito. A CARTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A SUA RELEVÂNCIA PARA A PROTECÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA UNIÃO EUROPEIA ENQUADRAMENTO HISTÓRICO-SISTEMÁTICO. Disponível : http://www.ciari.org/investigacao/carta_direitos_fundamentais.pdf. Acesso: 07/10/2010
E SILVA, Plácido. Vocabulário Jurídico. Forense: Rio de janeiro, 2006.
GOMES, Eduardo Biacchi. União Européia e Mercosul - Supranacionalidade versus Intergovernabilidade. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, 46, 31/10/2007 [Internet].
Disponível em http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2335. Acesso em 07/10/2010.
KARVAT, Thaysa Prado Ricardo dos Santos. Multiculturalismo e a proteção dos direitos humanos. Disponível em: http://srvapp2s.urisan.tche.br/seer/index.php/direitosculturais/article/view/367/224. Acesso: 07/10/2010.
MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais, Atlas: São Paulo: Atlas, 2010.