Na espiritualidade dos leigos, um desafio {SERMO XCVI)

NA ESPIRITUALIDADE DOS LEIGOS, UM DESAFIO

Prof. Dr. Antônio Mesquita Galvão

Queremos incentivar a tantos leigos que, mediante o seu

testemunho de dedicação cristã, contribuem para o

cumprimento da tarefa evangelizadora e para apresentar a

fisionomia de uma Igreja comprometida com a promoção da

justiça em nossos povos (P 777).

Nossa familiaridade com as coisas da Igreja nos mostra amiúde, exemplos notáveis de santidade, entrega e desprendimento, a partir da vida dos santos, beatos e piedosos presbíteros, monges e religiosos. Dificilmente as narrativas espirituais contam alguma história ou relatam biografias de algum leigo ou leiga. Com isso, os leigos, deixando de lado as exigências de seu estado de vida, seu carisma e missão, costumam, volta-e-meia, tentar reproduzir em suas vidas algum tipo de espiritualidade de algum padre ou religioso.

Os modelos de santidade, decalcados em exemplos consagrados tornam a espiritualidade dos leigos um ponderável desafio. Fugindo de um certo espírito eclesial que às vezes se encontra por aí, é preciso destacar a exigência de uma espiritualidade dos leigos em ordem ao apostolado e ao caminho missionário. Lemos em AA 4 que

Sendo Cristo, enviado pelo Pai, a fonte e origem de todo o apostolado da Igreja, é evidente que a fecundidade do apostolado dos leigos depende da sua união vital com Cristo, como diz o Senhor: “aquele que permanece em mim e eu nele, produz muitos frutos; porque sem mim, nada podeis fazer” (Jo 15,5). Esta vida de íntima união com Cristo é alimentada na Igreja por auxílios espirituais que são comuns a todos os fiéis, sobretudo pela ativa participação na sagrada Liturgia, de que se devem servir os leigos de maneira que, enquanto cumprem adequadamente no mundo os seus deveres, nas condições ordinárias da vida, não separem a união com Cristo da sua própria vida, mas cresçam intensamente nela exercendo o seu trabalho segundo a vontade de Deus. Desta forma é necessário que os leigos, com prontidão e alegria de espírito, progridam na santidade, esforçando-se por superar as dificuldades com prudência e paciência. Nem os cuidados familiares nem os outros negócios seculares devem ser estranhos à orientação espiritual da vida, segundo a palavra de Santo Agostinho: “tudo o que fizerdes de palavra ou ação, fazei-o em nome do Senhor Jesus, por ele dando graças a Deus Pai” (Cl 3,17).

Tal estilo de vida exige contínuo exercício das “virtudes teologais” da fé, da esperança e do amor (ou caridade). Só pela luz da fé e meditação da Palavra de Deus é possível, sempre e em toda a parte, reconhecer Deus no qual “vivemos, nos movemos e somos” (cf. At 17,28), procurar a sua vontade em todo o acontecimento, ver a Cristo em todos os homens, quer próximos, quer afastados ou indiferentes, para ter um conceito exato do verdadeiro significado e do valor das coisas temporais, em si mesmas em ordem do fim do homem. Os que possuem esta fé vivem na esperança da revelação dos filhos de Deus, lembrados da cruz e da ressurreição do Senhor. Os documentos conciliares, encíclicas, exortações, conclusões do CELAM e dos sínodos, têm-se empenhado em realçar a necessidade de os leigos, na riqueza de seus carismas e estado de vida, descobrirem seu modelo de espiritualidade e nele perseverarem, presentes e ativos.

O grande problema situa-se na existência, nesses escritos, de alguma teorização que na vida real não é (ou não pode ser) colocada em prática, por falta de uma imposição do laicato, e também pelo diminuto espaço concedido pela hierarquia. É comum escutar-se um antigo chavão, do tempo da “Ação Católica” que diz “tudo pelos leigos, mas nada sem o sacerdote”.

A Igreja que está na América Latina, já há algumas décadas (desde 1979, precisamente) preocupa-se com a vocação, a espiritualidade, o lugar e a formação dos leigos. Hoje há muitos leigos engajados nos trabalhos missionários da evangelização, mas a maioria está sem voz, sem iniciativa e, via-de-regra, em atividades que não lhes são específicas. Há muito leigo com bom potencial, desaproveitado por aí... Para a análise desses problemas é preciso que se desenvolva um ponderável senso crítico. É o que vamos fazer a partir daqui.

A maioria tenta se refugiar no Tabor dos movimentos/serviços eclesiais, onde o lúdico, em alguns casos, anestesia e dispersa a premência da ação evangelizadora. Em muitos lugares, onde a atividade, distanciada do trabalho missionário se radica na liturgia e no clericalismo, o “sonho de consumo” dos leigos aponta para os ministérios extraordinários, a partir de onde se tornam “mini-padres”, “sacristãos-sênior” ou meros burocratas. Conheci leigos, em uma paróquia por onde passei, que por causa dessas atividades, distanciadas do missionarismo, ganharam, de alguns da comunidade, o título (pejorativo) de “segundo-vigário”, “terceiro-vigário”, etc.

Nessa ambiguidade e ineficácia, sua atuação se torna difícil e desafiadora, pois correm pelos extremos, o duplo perigo: querer assumir tarefas além do seu carisma, tornando-se os “mini-padres” já aludidos (o que não é a sua missão), ou se deixando estagnar, na esperança que o padre dê as idéias, mostre o caminho e encabe toda a atividade. Ao contrário dessa postura, o leigo é chamado a ser, dizem os documentos (P 786; LG 4) , em assertiva ainda não revogada:

Homem da Igreja no coração do mundo, e homem do mundo no coração da Igreja.

Deste modo se observa um desvio na missão e nas atividades dos leigos, que acabam perdendo de vista seu objetivo de batizados. A Igreja está a exigir melhores posturas nesse sentido. Nas mesmas águas o episcopado latino-americano detectou algumas necessidades, no que concerne à missão dos leigos, que vale a pena lembrar, refletir e implementar:

Reconhecendo no seio da Igreja latino-americana uma crescente tomada de consciência da necessidade da presença dos leigos na missão evangelizadora, queremos incentivar a tantos leigos que, mediante o seu testemunho de dedicação cristã, contribuem para o cumprimento da tarefa evangelizadora e para apresentar a fisionomia de uma Igreja comprometida com a promoção da justiça em nossos povos (cf.P 777).

A partir de um clericalismo meio exagerado surge o desejo de muitos, com o fito de ajudar, de se tornarem “Ministros Extraordinários da Sagrada Comunhão”, os chamados “Ministros da Eucaristia”. Trata-se de uma diakonia (serviço) importante, mas que é meio e não fim do trabalho missionário e de profetismo. É inegável a necessidade desses ministros, mas em alguns casos há exageros, como por exemplo, o tempo de exercício dos mandatos. O ministro é credenciado para um serviço por dois anos, renovável (em caso de necessidade) por mais dois. Tem gente que presta esse serviço há mais de vinte anos. Isto é um apego anormal à função, que cria feudos e impede a salutar renovação. Constata-se esse desajuste quando se enxerga um número exagerado de ministros durante celebrações, procissões, etc.

Lamentavelmente, muitas das iniciativas dos leigos são desestimuladas por certos ranços de ciúme ou autoritarismo localizados na chamara hierarquia presbiteral ou no apego ao domínio do religioso(a)s, que igualmente se consideram superiores aos leigos, e assim credenciados a exercer uma certa tirania. Nesses dois processos, os grupos dominantes invocam a palavra obediência como se fosse a chave de tudo. Esquecem-se que a obediência é devida privilegiadamente a Deus e ao evangelho (cf. At 5,29).

Em certos lugares, felizmente não todos, sempre aparece um pretexto para alijar o leigo das instâncias decisórias, opinativas, docentes e executivas. Às vezes, por alegada insuficiência de formação, não lhe são atribuídas tarefas mais complexas, restando-lhe coisas mais simples, como “fazer a primeira leitura”, passar o cofre das ofertas, varrer o templo ou apagar a luz no final das atividades.

Em outros casos, se o leigo buscar formação nas fontes adequadas ou alternativas, corre o risco de ser igualmente excluído por querer “saber mais que os padres” ou os “notáveis” na paróquia. Tais barreiras são fatores que bloqueiam o desenvolvimento da verdadeira espiritualidade laica, fazendo com que os leigos derivem para aquela religiosidade de evasão, já mencionada aqui. Movidos pela caridade que vem de Deus, os leigos, no desenvolvimento daquela espiritualidade que lhes é permitida assumir, devem se manter presentes e ativos – como preconiza o documento – e desta forma praticar o bem para com todos, sobretudo com os irmãos na fé (cf. Gl 6,10), rejeitando

[...] toda a maldade, toda a mentira, todas as formas de hipocrisia, de inveja e toda a maledicência (1Pd 2,1).

Agindo assim, o trabalho dos leigos se reveste realmente do esforço missionário, tornando-os capazes de atrair os homens e mulheres a Cristo. Com efeito, o amor-caridade de Deus, que “foi infundido em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5) torna os leigos verdadeiros apóstolos, capazes de exprimir na sua vida, de fato, o espírito das bem-aventuranças.

É através dos desejos de santidade – que a espiritualidade desperta em todos – podemos crer incessantemente nessa experiência de entrar na presença de Deus. O ser humano (matéria) em contato com Deus (espírito) instaura em sua vida um fino processo de espiritualidade, como uma experiência que nunca termina, cujo crescimento consiste em um penetrar cada vez mais na intimidade de Deus, com um imenso desejo de amar. Por causa do amor de Deus, tal qual as famílias, os leigos precisam se ver e serem vistos como “sujeito e objeto da evangelização”.

Penetrar no amor de Deus é também penetrar melhor na vida, no universo. E isso se plenificará no céu, quando nos unirmos perfeitamente a Cristo ressuscitado, e tivermos uma relação maravilhosa com tudo o que existe. Por isso o desejo de Deus se transforma também em desejo de sabedoria. Não se trata do saber puramente intelectual, mas a sabedoria que vem de Deus e que é uma luz interior para olhar o mundo cada vez com os olhos que Deus olha. Essa luz nos ajuda a viver realmente bem, e por isso é mais desejável que qualquer coisa no mundo.

Ao nos depararmos com as lições das Sagradas Escrituras, podemos ver como elas nos apresentam a um Deus que se regozija, salta e dança de alegria quando consentimos que ele penetre em nossa vida e nos salve, quando pode nos recuperar, quando deixamos que ele aja por meio do Filho, como nosso libertador (cf. Sf 3,16ss). E que não se diga que é uma atividade passiva. Nosso Deus espera que deixemos de lado nosso comodismo para nos inserirmos na missão evangelizadora. Membro da Igreja (pelo batismo), por adesão voluntária (inserto na dimensão missionária), o leigo, sem se clericalizar, surge comprometido na construção do Reino em todas as dimensões temporais.

É no mundo que o leigo encontra seu campo de ação. Pelo testemunho de sua vida, por sua palavra oportuna e sua ação concreta, o leigo tem a responsabilidade de ordenar as realidades temporais para pô-las a serviço da instauração do Reino de Deus (P 789).

Antes mesmo da conferência do CELAM em Puebla, México, 1979, o papa Paulo VI, cônscio da necessidade de os leigos trilharem os caminhos de uma espiritualidade concreta, recomendou, em 1975:

O campo próprio da atividade evangelizadora (referindo-se aos leigos) é o mesmo mundo vasto e complicado da política, da realidade social e da economia, como também o da cultura, das ciências e das artes, da vida internacional, dos mass media e, ainda outras realidades abertas para a evangelização, como sejam o amor, a família, a educação das crianças e dos adolescentes, o trabalho profissional e o sofrimento. Quanto mais leigos houver impregnados do Evangelho, responsáveis em relação a tais unidades e comprometidos claramente nas mesmas, competentes para as promover e conscientes de que é necessário fazer desabrochar a sua capacidade cristã muitas vezes escondida e asfixiada, tanto mais essas realidades virão se encontrar no serviço da edificação do Reino de Deus e, por conseguinte, da salvação em Jesus Cristo (EN 70,2).

Em muitas pregações que tenho feito por aí, Brasil afora, eu falo nos coelhos de chocolate que a gente ganha por ocasião da páscoa. Mordemos suas orelhas e o coelho se esboroa em nossa boca, pois além da camada de chocolate ser tênue, ele é oco, incapaz de resistir a uma queda ou mordida. Do mesmo modo, falando na ONU em outubro de 1965, o papa Paulo VI se referiu à necessidade de termos “cristãos maciços”, gente que enfrenta e assume, e não pessoas superficiais, incapazes de se comprometer e enfrentar desafios.

Assim como um coelho de páscoa oco não resiste ao choque, igualmente alguns cristãos, por ocos e inconsistentes fracassam ao primeiro embate. Desenvolver uma espiritualidade sem vida, oca e despida de testemunhos, é fugir de Deus, do próximo e de nós mesmos. Nessa fuga de Deus e de si mesmo, o homem perde sua identidade e a consciência de quem efetivamente é, assim como passar a duvidar do sentido da sua vida. Nessa perversão de atitudes, o homem se transforma – como disse Santo Agostinho, num obscuro enigma para si mesmo. Outra mística, no século XVI, a leiga Santa Catarina de Gênova († 1510) vai mais longe:

Meu coração se queima de amor, um inexplicável fogo de amor.

Em alguns, poucos e lamentáveis casos, os leigos não têm espaço para colocar em ação esse inexplicável fogo que queima seus corações. E por esta razão vão às igrejas acender velas... É preciso que as “autoridades religiosas” enxerguem e entendam a presença de Deus no laicato. Nós não duvidamos da existência das estrelas mesmo quando o céu está nublado ou chuvoso. Por que, então não vê-lo em todos os sinais que Deus coloca na sua Igreja?

Como crentes precisamos saber que Deus é maior que o nosso pequeno coração humano, muito maior que o nosso pecado e infinitamente superior que nossos abatimentos, depressões e estados negativos de ânimo. Ele supera, transcende tudo o que conseguimos reconhecer ou descobrir em nossa intimidade, e nenhuma sensação nossa é capaz de captá-lo e abarcá-lo. Por este motivo não é prudente pensar que uma espiritualidade não tem vida porque não tem muita sensibilidade, e também é equivocado imaginarmos que ela está cheia de vida só porque está carregada de sensações positivas.

No desfrute absoluto de uma verdadeira espiritualidade, a alma humana é arrebatada, fora dela mesma, elevada totalmente a Deus. Ele a esvazia para que ela se esqueça de tudo, dedicando-se totalmente a ele. Como subsídio, a respeito sobre a vitória nos desafios da fé, trago a palavra de dois santos, mestres em espiritualidade:

São João da Cruz:

Oh! Quão ditosa é esta alma que sente sempre Deus repousando e descansando em seu seio! Deus está ali habitualmente, como se descansasse num abraço com a esposa, na substância de uma alma, e ela o sente muito bem e goza constantemente. Ela o absorve profundamente no Espírito Santo, enamorando-se dela com perfeição e delicadeza divina.

São Boaventura:

O homem perfeito não é o que encontra Deus na intimidade, mas o que também é capaz de encontrá-lo no mundo exterior.

É salutar que os leigos, no exercício sadio de sua espiritualidade se atenham àquilo que se convencionou chamar de “estado de vida” já referido aqui, que nada mais é do que a exigência de cada um viver a sua espiritualidade conforme o estado em que vive. Lembro que aprendi isto nos Cursilhos de Cristandade em fins da década de 70, quando foi dito que a espiritualidade dos padres é diferente daquela em que vive a religiosa que, por sua vez tem uma forma bem diferente de se relacionar com Deus do que a mulher leiga, por exemplo.

Mesmo assim, entre os leigos há diferenças. A espiritualidade da dona-de-casa pode ser diferente da executiva que trabalha em uma empresa ou em um banco. O homem adulto se relaciona com Deus de uma maneira diferente do jovem ou do adolescente. Cada um tem sua forma de viver no espírito.

É salutar – foi o jeito que iniciei o parágrafo acima – que cada um viva conforme seu estado, para evitar que se recaia em alguma forma doentia de espiritualidade, de muitas folhas e poucos frutos. Igual àquela figueira condenada por Jesus a secar. Nesse contexto valem os conselhos dos mestres e dos místicos que recomendam que os cristãos, com desejos de crescimento e santidade se livrem de quaisquer formas de espiritualidade sem vida.

Há algum tempo eu estive animando um retiro espiritual e assessorando um curso para padres de uma congregação religiosa no norte do país. Lá pude ver o tipo de espiritualidade desenvolvida por eles, como a oração da “Liturgia das Horas”, três vezes por dia, e concelebração da Santa Missa diariamente, ao fim da tarde. Esta é uma forma adequada de cada um valorizar o carisma da sua vocação. Essa atividade espiritual era capaz de alavancar uma vigorosa atividade pastoral, missionária e filantrópica.

Na contramão desse exemplo, também vejo, mais amiúde, leigos exagerando a forma de conduzir a vida espiritual, em detrimento das atividades familiares, sociais e até missionárias, porque se fecham num hermetismo meio fanático, com horizontes pobres em termos de evangelização e vida comunitária.

Conheci uma senhora, de uns cinqüenta anos, uma ótima pessoa – foi minha aluna em cursos de teologia popular – que levantava às cinco da manhã para rezar. Ela rezava – notem bem, eu disse rezava e não orava – conforme declarou, uma meia-dúzia de terços por dia, assistia duas (ou mais) missas pela televisão, além de ter os vários rádios da casa sintonizados em emissoras que veiculavam programas religiosos. Ela só lia livros e revistas de religião, e como uma fanática não ia ao cinema, teatro, restaurantes, deixando o coitado do marido em pânico. Aos fins de semana ela participava de três Missas (uma no sábado e duas no domingo). Durante a semana, além da agenda doméstica já referida aqui, ela ia quase que diariamente rezar o Terço na casa das vizinhas, atividade esta que culminava com a recitação de mil Ave-Marias em uma só tarde, assustando as companheiras que começaram a debandar do grupo.

Quando vocês rezarem, não sejam como os hipócritas, que gostam de rezar em pé nas sinagogas e nas esquinas, para serem vistos pelos homens. Eu garanto a vocês: eles já receberam a recompensa. Ao contrário, quando você rezar, entre no seu quarto, feche a porta, e reze ao seu Pai ocultamente; e o seu Pai, que vê o escondido, recompensará você. Quando vocês rezarem, não usem muitas palavras, como fazem os pagãos. Eles pensam que serão ouvidos por causa do seu palavreado. Não sejam como eles, pois o Pai de vocês sabe do que é que vocês precisam, ainda antes que vocês façam o pedido (Mt 6,5-8).

A oração individual e familiar, a recitação do Terço, a participação na Missa são atividades normais da espiritualidade cristã, indispensáveis ao ser-cristão dos leigos e leigas. Mas tudo tem uma medida e uma pertinência. O excesso revela uma tendência doentia à evasão e à alienação. A espiritualidade desta senhora era evasiva: os problemas com a família não testemunhavam muita coisa. Não me consta que ela desse aula de catequese, por exemplo, ajudasse os pobres ou trabalhasse em alguma tarefa da evangelização. Orar é ótimo; rezar, mais ou menos: ficar só nisso é demonstrar estática, numa fé que deve ser dinâmica.

Outra pessoa, na mesma cidade, ajudava na liturgia da sua paróquia, o que a fazia comparecer a cinco Missas no fim de semana, sem falar nas celebrações semanais, e sua pertença a – no mínimo – quatro ou cinco movimentos/serviços eclesiais, restando pouco tempo e espaço para a família e para a vida social, campos privilegiados para a tarefa de evangelização dos leigos.

Esta pessoa, passados os primeiros tempos de euforia, hoje abandonou a maioria daquelas atividades. Em todos esses casos, as famílias devem sentir falta da presença da pessoa, e o mundo – legítimo campo de atuação do leigo – consigna uma necessidade de ser evangelizado. A prioridade do leigo é família (Igreja-doméstica), ambiente de trabalho, sociedade e mundo. As sacristias – dizia Dom Helder – estão lotadas...

Seguindo a Jesus humilde e pobre, não devem os leigos – recomenda a Igreja – desanimar com a falta dos bens temporais, nem se tornarem soberbos com a abundância: imitando Cristo humilde não se tornem ávidos de vanglórias (cf. Gl 5,26), mas procurem agradar mais a Deus do que aos homens, sempre dispostos à renúncia por causa de Cristo (cf. Lc 14,26) e a sofrer perseguição por causa da justiça (cf. Mt 5,10), lembrados da Palavra do Senhor, conforme já vimos, “se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (cf. Mt 16,24).

Cultivando entre si a amizade cristã, ajudam-se mutuamente em qualquer necessidade. Esta é a teoria conciliar a respeito da espiritualidade dos leigos. Como nem sempre a teoria propicia uma inserção na vida missionária e comunitária, muitos leigos derivam – como falamos aqui – para uma religiosidade individualista, que fica muito distante da verdadeira espiritualidade.

Os Cursilhos de Cristandade, uma das pontas-de-lança do cristianismo até o final do século XX, hoje já meio desgastado, justamente por se tratar de um movimento, definiam lá pela década de 70, a vida cristã como uma atividade religiosa montada sobre três pés: a Espiritualidade, o Estudo e a Ação. Havia, no entanto, uma visão estanque entre essas três iniciativas. A espiritualidade se referia a um tipo de sacramentalismo (Missa, sacramentos, visitas ao Sacrário, etc.) e à oração.

Chegavam a falar em um tripé de “oração (que resumia a espiritualidade), estudo e ação”, esquecendo de fazer uma junção mais efetiva dos três, com vistas à missão e ao apostolado. Não é lícito teorizar a condução da espiritualidade. É preciso transformá-la em prática. Parecia, naqueles casos que era facultado ao cursista escolher, entre rezar, ler a Bíblia ou trabalhar em uma comunidade. Como “rezar” era mais fácil, as iniciativas ficavam por aí. Apenas por aí... A espiritualidade dos leigos se resumia em uma atividade meio desconexa e, por causa disto, ineficaz.

O aspecto importante da formação dos leigos nas coisas da sua Igreja é o aprofundamento numa espiritualidade mais apropriada à sua condição. Os leigos têm direito a essa formação e a Igreja tem o dever de provê-la. Ao laicato se impõe uma articulação com as pastorais, tudo desembocando em uma atividade evangelizadora e missionária. Não existe espiritualidade sem esses dois valores. As dimensões essenciais da espiritualidade são, entre outras:

• que o leigo não fuja às realidades temporais para buscar a Deus, e sim persevere, presente e ativo, no meio delas e ali encontre o Senhor;

• infunda nessa presença e atividade uma inspiração de fé e um sentido de caridade cristã;

• à luz da fé, descubra nessa realidade a presença do Senhor;

• só descobrindo a misteriosa riqueza que Deus dá ao cristão no santo Batismo é possível delinear a “figura” do fiel leigo (cf.P 797).

O fiel leigo não pode nunca se fechar em si mesmo, isolando-se espiritualmente da comunidade, mas deve viver em um contínuo intercâmbio com os outros, com um vivo sentido de fraternidade, na alegria de uma igual dignidade e no empenho em fazer frutificar ao mesmo tempo o imenso tesouro recebido em herança (CFL 20.5).

A espiritualidade do laicato precisa assumir com urgência uma característica do estado leigo, matrimonial, familiar, do celibato ou viuvez e das atividades profissionais e sociais de cada um, conforme os dons e os carismas recebidos. Que não deixem, portanto, de cultivar assiduamente as qualidades e os dotes que, adequados a essas situações, lhes foram conferidos, e de colocar em exercício os dons próprios, recebidos do Espírito Santo, entre eles o discernimento, a fortaleza e a caridade.

No caso específico de sua espiritualidade, cabe aos leigos viverem como cristãos no meio das realidades do mundo, transformando-o segundo o plano de Deus. A dignidade do leigo batizado não admite que ele seja considerado (ou se considere) um cristão de segunda classe.

Os leigos exprimem e exercem as riquezas dessa sua dignidade vivendo no mundo. O que para os membros do ministério ordenado pode constituir uma tarefa acessória e excepcional, para os leigos é missão típica. A vocação que lhes é própria consiste em procurar o Reino de Deus tratando das coisas temporais e ordenadas segundo Deus (LG 31).

O leigo é chamado a trabalhar na igreja-templo como ministro, leitor, executor de tarefas burocráticas e econômicas. A isto ele atende como quem responde uma con-vocação. No entanto, sua missão mais específica vem de sua vocação, de ser sal, fermento e luz no mundo. O batismo torna o leigo missionário do evangelho e testemunha da fé. Há que entender, pelo bem de nossa espiritualidade a diferença entre vocação e convocação. Evangelizar, difundir os valores do Reino é a missão primeira dos leigos. Nesse particular cabem aqui as palavras de São Paulo:

Anunciar o evangelho não é título de glória para mim; pelo contrário, é uma necessidade que me foi imposta. Ai de mim se eu não anunciar o evangelho (1Cor 9,6).

Hoje em dia, cônscios de suas obrigações, os leigos, em paralelo com suas atividades seculares, vêm estudando teologia, em graduação e pós, para se dedicarem à docência, às pregações de retiros e em solenidades litúrgicas, bem como na área de comunicação (jornais, revistas, portais e livros). Tudo isso se insere na tarefa de evangelizar e na missão de tornar acessíveis ao povo de Deus os valores do evangelho da salvação.

Assim se processa o testemunho de um leigo engajado ao serviço do Reino. É uma forma atuante de viver a espiritualidade e cumprir o irrecusável mandamento do Senhor, de testemunhar o Ressuscitado e levar o evangelho até os confins da terra (cf. At 1,8).

É imperioso que os leigos tenham também em grande consideração a competência profissional, o sentido familiar e cívico, bem como aquelas virtudes que se referem às relações sociais, como a honestidade, o espírito de justiça, a sinceridade, a delicadeza, a força do ânimo e a partilha, sem as quais não existe a verdadeira vida cristã. Faz parte da espiritualidade dos leigos o compromisso de testemunhar as virtudes cristãs e a presença do Ressuscitado na sociedade humana. É como escutei Dom Helder Câmara questionar, em Recife, no ano de 1981, referindo-se à missão dos leigos no mundo:

Se vocês não fizerem, quem o fará?

Este trecho é um excerto de uma pregação realizada em um retiro de espiritualidade (padres, religiosos e agentes de pastoral) no interior do Paraná em outubro de 2009. Estavam presentes 400 pessoas. O autor é Biblista com especialização em Exegese, Escritor com mais de uma centena de livros publicados, e Doutor em Teologia Moral. Prega retiros de espiritualidade para padres, leigos, casais e jovens, além de cursos, aulas e conferências no Brasil e exterior.