A dor e o mundo

A Filosofia Ocidental, pensada a partir da Grécia, teve por grande questão a sentença socrática: “Conhece-te a ti mesmo”. É sobre estes percursos que conversaremos.

A forma como o mundo, que hoje vivemos e enfrentamos cotidianamente, organizou-se é, no nosso entender, mais complexa do que parecia outrora. Resultado da tecnologia, do volume de produção e divulgação de informações, pesquisa e dos avanços da Ciência nas suas indagações diante das adversidades humanas. Mas também, de uma potencialização das subjetividades. Aparentemente, o que se nos coloca é que do mesmo modo que se buscou alcançar distâncias externas reduzidas a segundos de tempo, em outra direção, procurou-se novas percepções desse mesmo mundo vivido, colocadas em modos de ser, que identificamos como subjetividade.

Considerando esses aspectos, perguntamos como se coloca a dor no mundo em que vivemos.

De algum modo, compreendemos que a dor é sinal de que algo não vai bem. Esse sentido da dor pode ser estendido a outros efeitos chamados de males (gerais, sociais,...). Enfim, a dor é originária de uma desestruturação da situação em que o sujeito se encontrava. Seja o caso extremo da perda definitiva de alguém que se ama, até um mal-estar físico súbito, a dor diz, ou grita, que algo mudou.

Contudo, apesar desse guia seguro de nossas consciências e sobrevivência, banalizamos a dor. Certas ideologias e crenças levaram a extremos o endeusamento da dor, mas nossa sociedade atual, identificada com a lógica consumista, banalizou e relativizou a dor. Seja por ter à disposição um aporte de medicamentos que aliviam os sintomas, e por oferecer um repertório de entretenimentos, que entorpecem e nos fazem esquecer do que ocorre a nossa volta.

Pensar e conversar sobre isso não é delinear nenhum tipo de “pagação de moral” ou propor uma sociedade sem diversão e lazer, mas rediscutirmos sobre que concepção de humanidade estamos tratando. Qual o conceito de homem baliza nossas relações conosco mesmos, com os outros e com o mundo? E o que essas questões têm a ver com a dor?

De uma forma sintética, poderíamos dizer que a teogonia cristã (referencial importante para ocidentais) explica a origem da consciência humana pelo ato de “conhecer da Árvore da Ciência do Bem e do Mal”, que teve como conseqüência a dor da separação ocorrida entre o Criador e o casal original (criaturas). Assim, a primeira dor foi decorrência de uma tomada de consciência de que criatura e criador eram seres distintos.

A história cristã avança. E, mais uma vez, o Criador quer voltar ao convívio e ao diálogo com suas criaturas. Para tanto, envia Seu próprio filho para dizer a todos, indistintamente, que são iguais e lembrar-lhes que são filhos do mesmo criador. Este ato extremo de entrega e de participação, no seio da humanidade, resulta no extremo sacrifício vivo desse filho. Coloca-se uma segunda dor, que redimensiona a primeira. A consciência da relação de reciprocidade e dependência entre criador e criatura, que, de diversos modos e diferentes níveis, pode ser identificada com o amor.

Desse modo, o pressuposto colocado pela teogonia cristã, que tanto influenciou a construção do pensamento ocidental, inclusive a Filosofia, indica a existência de duas dores originais: (1) a consciência da separação entre criador e criatura; (2) a consciência da relação de reciprocidade e dependência entre criador e criatura. Na primeira, o casal original conheceu a inteligência. Na segunda, a família espiritual, que era Israel, conheceu o amor. A dor coloca-se como marca de uma presença ou ausência do amor.

Essa construção, que poderá parecer fantástica ou simplificada, pode ser aludida a diversas terapias. Cito, por exemplo, a psicanálise, quando objetiva que o analisando tome consciência da origem do problema para sua cura. A dor, assim, sinaliza, camuflando ou gritando, a situação original rompida (consciência da separação) e a conseqüente desestruturação do sujeito (consciência da relação de reciprocidade e de dependência).

A abordagem de caráter religioso que atravessou e influenciou o pensamento da ciência psicológica (que se iniciava no século XX) teve outros interlocutores. Em busca deles, dialogamos com a filosofia em seu início no ocidente. Assim, retornamos à sentença socrática: “Conhece-te a ti mesmo”.

De que homem e de que mundo se está falando? O homem da teogonia cristã é a criação de deus. O homem da ciência é o resultado do aperfeiçoamento de primatas. O homem filosófico é o que pensa sobre si, cria e recria a si e ao mundo, por isso, uma premissa ainda tão atual é o “Conhece-te a ti mesmo”.

Seguindo a mesma linha de raciocínio, a dor, colocada pela Filosofia, é uma ignorância de si. Conhecer a si mesmo é conhecer. Não fazê-lo é ignorar a si, portanto, ao que está a sua volta. É viver na dor. O contrário, conhecer a si mesmo, é viver a dor curando-a, uma vez que ela vem da origem. Curar é significar, atribuir sentidos, tomar consciência, dar luz ao ignorado, criar percursos, estabelecer relações. E isso diz muito a todos que vivem ou viveram uma grande dor. Nestas situações, rememora-se aquilo que ficou esquecido ou ignorado.

Por isso, afirmamos que o mundo (compreendido como todo campo de relações) banaliza a dor, seja porque alcançou sucesso no alívio de dores físicas (e isso é bom, mas não se mostra suficiente), seja porque ignora outras dimensões da consciência, ou, em outros termos, as diversas possibilidades dos percursos subjetivos. E, ainda, porque não se importando com a dor, ignora sua própria existência.

Um chamado a si é o apelo de uma dor. A primeira atitude é procurar alívio, dispô-la numa dosagem que possa ser controlada. Mas há dores que nos controlam, dominando-nos e das quais dependemos. Aqui, a farmacêutica tem se revelado o mais novo deus. Um controlador sem culpa e que fornece alívio.

A dor, que esquecemos de sentir, instala-se porque ignoramos o que nossa subjetividade quer construir como percurso humano possível. É uma dor que encontra eco tanto na perspectiva religiosa, quanto na científica, quanto na filosófica. É uma dor que se diz “da alma”, por ser original e que funda e marca o ser humano. Desde nossa origem, somos distintos: diferentes de nossos geradores, diferentes sexualmente, diferentes em nossos característicos físicos, psíquicos. Humanos, porém distintos de outros humanos.

A diferença, hoje, mais facilmente compreendida devido à perspectiva da subjetividade, propõe uma via de realização individual que consolida uma resolução humana. Ou seja, uma vez que um humano realiza, ele cria condições para que toda humanidade recrie a partir de sua produção primeira. À semelhança do fato de que a dor primeira é a dor da humanidade inteira.

Contudo, a sociedade atual, banalizada pelas regras do consumo rápido, do tipo fast food, também rompeu com a história humana, que, antes de ser apenas o relato de fatos e marcos heróicos, é a história da alma, tal qual Psique à procura de Eros. Alma esta que procura seu lugar no Olimpo divino naquilo em que se diferencia de todos seus deuses e deusas, ou seja, no que lhe é peculiar. Para tanto, sofre dores de separação, de dependência, desespera-se à busca do seu amado Eros, enfrentando as provações promovidas pela ira divina, até realizar-se tal como é: humanidade. (Para maior aprofundamento, indica-se Eros e Psique, de Eric Neumann, e Mitologia Grega, de Junito de Souza Brandão).

A sociedade atual dirá que Eros morreu, assim é que se assiste ao avassalador sentimento de angústia. Numa comprovação de que a dor é infinita e que não há sentido na vida e em tudo que se faz.

A via espiritual de compreensão da existência dirá que Eros não morre, mas mantém-se vivo toda vez que da dor se faz o guia para o reencontro consigo mesmo. Uma renovação da sentença “Conhece-te a ti mesmo”.

A Eubiose, termo criado pelo Prof. Henrique José de Souza, que significa “ciência da vida”, permite inserir cada criatura humana de maneira consciente no contexto dessa história da Psique, que segue à procura de seu amado Eros. Pois seu fundamento é a transcendência da origem e do destino humanos. E, também, porque a dor pode ser curada, quando, sem fanatismo, é compreendida como metáfora do aprendizado humano.

Liz Della Penna
Enviado por Liz Della Penna em 22/09/2010
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