O dia em que Lázaro voltou à vida (SERMO XCV)

O DIA EM QUE LÁZARO VOLTOU Á VIDA

Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que

esteja morto, viverá. E quem vive e crê em mim jamais

morrerá (Jo 8, 25-26).

O texto bíblico

1 Lázaro caiu doente em Betânia, onde estavam Maria e sua irmã Marta. 2 Maria era aquela que tinha ungido o Senhor com óleo perfumado e lhe tinha enxugado os pés com os cabelos. Seu irmão Lázaro estava enfermo. 3 As irmãs mandaram dizer a Jesus: “Senhor, aquele a quem amas está doente”. 4 Quando ouviu isso, Jesus disse: “Esta doença não causará a morte mas se destina à glória de Deus: por ela o Filho de Deus será glorificado”. 5 Ora, Jesus amava Marta, sua irmã e Lázaro. 6 Embora estivesse informado de que ele estava doente, demorou-se ainda dois dias naquele lugar.

17 Quando Jesus chegou, já fazia quatro dias que Lázaro estava no túmulo. 18 Betânia ficava perto de Jerusalém, a uns três quilômetros. 19 Muitos judeus tinham vindo até Marta e Maria para as consolar da morte do irmão. 20 Quando Marta ouviu que Jesus havia chegado, saiu-lhe ao encontro. Maria ficou sentada em casa. 21 Marta disse a Jesus: “Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido. 22 Sei, porém, que tudo quanto pedires a Deus ele te concederá”. 23 Jesus respondeu: “Teu irmão ressuscitará”. 24 “Sei que ele ressuscitará na ressurreição do último dia”– disse Marta. 25 Jesus lhe disse: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá. 26 E quem vive e crê em mim jamais morrerá”. Você acredita nisto?”27 “Sim, Senhor – respondeu ela – creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus, que devia vir a este mundo”.

32 Assim que Maria chegou onde Jesus estava, lançou-se aos pés dele e disse: “Senhor, se tivesses estado aqui, o meu irmão não teria morrido”. 33 Quando viu que Maria e todos os judeus que vinham com ela estavam chorando, Jesus se comoveu profundamente. E emocionado, 34 perguntou: “Onde vocês o colocaram?” “Senhor, vem ver”– disseram-lhe. 35 Jesus começou a chorar. 36 Os judeus comentavam: “Vejam como ele o amava”. 37 Alguns, porém, disseram: “Ele, que abriu os olhos do cego de nascença, não podia fazer com que Lázaro não morresse?” 38 Tomado novamente de profunda emoção, Jesus se dirigiu ao sepulcro. Era uma gruta com uma pedra colocada na entrada. 39 Jesus ordenou: “Tirem a pedra”. Marta, irmã do morto, disse: “Senhor, já está cheirando mal, pois já são quatro dias que está aí”. 40 Jesus respondeu: “Eu não te disse que, se acreditasses, verias a glória de Deus?” Tiraram então a pedra. 41 Jesus levantou os olhos para o alto e disse: “Pai, eu te dou graças porque me atendeste. 42 Eu sei que sempre me atendes, mas digo isto por causa da multidão que me rodeia, para que creiam que tu me enviaste”. 43 Depois dessas palavras, gritou bem forte: “Lázaro, vem para fora !” 44 O morto saiu com os pés e as mãos atados com faixas e o rosto envolto num sudário. Ordenou Jesus: “Desatem-no e deixem-no andar”. 45 Muitos judeus, que tinham ido visitar Maria e visto o que Jesus fizera, acreditaram nele.

(Jo 11, 1-6; 17-27; 32-45).

O vigoroso episódio da volta de Lázaro à vida é também bastante conhecido de todos vocês, tenho certeza. É o quinto sinal de Jesus. Aqui, a utilização do termo ressurreição, usado por alguns, não é apropriado. Ressuscitar é voltar da morte e não mais tornar a morrer. Lázaro, por certo, morreu de novo, Trata-se, portanto, de uma volta à vida; uma vivificação. Segundo uma boa parte dos biblistas, e igual ao milagre de Caná, também aqui Jesus, computados o dia da viagem, da espera e do período em que Lázaro estava morto, constata-se que ele realiza o sinal “ao terceiro dia”, prazo da glória de Deus. Sabendo que só em Jesus podiam confiar, desiludidas com a medicina humana, as irmãs de Lázaro mandam chamar o Mestre.

Quando ouviu isso, Jesus disse: “Esta doença não causará a morte mas se destina à glória de Deus: por ela o Filho de Deus será glorificado” (v. 4).

Aos que vêem na morte um fim, Jesus mostra que mesmo no drama do desenlace, Deus deve ser glorificado. Neste caso, usando sua reveladora pedagogia, Jesus usa o evento da morte do amigo para a realização de um sinal de vida, tipo de sua Ressurreição.

A morte, do ponto de vista cristão, é apenas uma contingência. Segundo Santo Agostinho, se trata de uma necessidade física. Para quem crê, ela não está no fim da vida, mas no começo. O que se estabelece nesta narrativa é uma dialética, tão comum ao estilo literário de João, entre morte e vida.

Desta forma, a “ressurreição” de Lázaro é um sinal que tipifica aquela vida abundante (10, 10), sobrenatural e eterna que Jesus veio trazer. Ele é o Messias, o kyrios, o Senhor da vida. O acontecimento em Betânia nos suscita algumas lições capazes de fornecer bons subsídios para a atividade pastoral:

1. Jesus vivifica Lázaro porque dá valor à vida humana;

2. Traz o amigo de volta à vida porque atende o pedido

(oração) das irmãs;

3. Revela misericórdia e sensibilidade aos problemas humanos;

4. Aponta para o poder do Pai, o Deus da Vida e dos vivos;

5. Os judeus, portadores de uma fé superficial, vêem no fato

apenas o invólucro, o aspecto biológico, sem penetrar no

mistério;

6. Marta intui uma ressurreição no último dia, coisa inusitada,

até então (v. 24).

A simbólica da chamada “ressurreição de Lázaro” tem um sentido essencialmente escatológico. Ali está retratado o poder vivificante de Deus, que cria do nada e faz viver o que está morto. Lázaro tornou a morrer, porque a vida eterna e verdadeira só seria instaurada após a Ressurreição de Cristo. Mesmo assim, o fato é capaz de provocar uma compreensão no dinamismo de Deus, que pode devolver a vida sob outro prisma, transformada, pela ressurreição do corpo, cuja fé a Igreja toda professa e proclama.

Ressuscitar, ao contrário do que afirmam alguns por aí, não é reencarnar, voltar à vida humana em condições semelhantes ou repetir vidas passadas com o fim de purificar carmas e antigas faltas. Ao dizer eu sou a Ressurreição e a Vida, Jesus está proferindo uma revelação clara. Para quem crê nele, para quem efetivamente crê, uma fé madura sem dúvidas ou questionamentos, ressurreição não é promessa, possibilidade ou utopia. Não! Ressuscitar é transformar nossa vida em dom, viver na comunhão com Deus, gozando face-a-face da sua presença, eternamente. No v. 27 Marta diz eu creio... e essa crença torna-se a base da fé cristã, que estabelece uma mudança, a passagem da esperança do judaísmo para a certeza do cristianismo.

O ‘retorno à vida’ de Lázaro, é um sinal perceptível ao nível da experiência humana, que antecipa as realidades do Reino escatológico. Estudar o milagre apenas por uma ‘causalidade’ é não prestar atenção a seu sentido. O milagre veicula, de maneira tangível, um significado redentor. Não somente anuncia, como a Palavra, que o Reino está próximo, como também atesta que ele está presente, e evoca aquilo que será a humanidade quando ela estiver plenamente purificada do pecado, conforme a vontade de Deus.

Jesus revela-se, no decorrer do Quarto Evangelho, presença ativa junto à humanidade. A união com ele, em razão da fé, faz brotar a vida. A morte, de quem crê nele, não é morte, mas passagem, uma páscoa, pura transformação. Não morremos, continuamos a viver... A expressão que se escuta, muitas vezes sem interiorizar, - ego inai hê anastassis ké Hê dzôe (“Eu sou a ressurreição e a vida...”) traz consigo o EU SOU! proferido por Deus desde o Antigo Testamento, e revela o poder divino de Jesus, autor da vida e vencedor da morte.

A afirmação EU SOU surge sete vez no Quarto Evangelho, proferida pelos lábios de Jesus, a saber:

1. o Pão da Vida (6, 35)

2. a Luz do Mundo (8, 12)

3. a Porta (10, 9)

4. o Bom Pastor (10, 11.14)

5. a Ressurreição e a Vida (11, 25)

6. o Caminho, a Verdade e a Vida (14, 6)

7. a Videira (15, 1).

Lázaro está dentro da rocha, nos domínios da morte. Jesus, cá fora, nos campos da vida. Jesus, revelando-se vencedor da morte, não entra na gruta, mas ordena que o amigo saia para fora.

E Jesus gritou bem forte: “Lázaro, vem para fora”! O morto saiu com os pés e as mãos atados com faixas e o rosto envolto num sudário. Ordenou Jesus: “Desatem-no e deixem-no andar”. Muitos judeus, que tinham ido visitar Maria e visto o sinal que Jesus fizera, acreditaram nele.

Por que Jesus teria gritado bem forte ? Por que temia que o morto não o escutasse? Ou, por que queria que todos vissem o portento que ele ia realizar? Mais ainda: ele quer deixar claro o poder de Deus sobre o sofrimento e a morte. Para isso ele profere três ordens:

1. Tirem a pedra! (v. 39)

Esta ordem é endereça à comunidade, que às vezes realiza

cultos de morte e esquece de celebrar a vida;

2. Lázaro, vem para fora! (v. 43)

Aqui Jesus reprime a morte em voz alta, para que reconheça

seu poder e se curve a ele;

3. Desatem-no! (v. 44)

É a ordem de libertação; uma pessoa atada por mil faixas

não pode viver aquela abundância da graça que o Senhor

oferece.

Há narrativas de outras “ressurreições” nos evangelhos: a filha de Jairo (Mc 5, 22;) e o filho da viúva de Naim (Lc 7, 11) também voltaram à vida de forma miraculosa e sobrenatural.

ATUALIZAÇÃO

Este sinal de Jesus, o quinto, nos revela o Deus da Vida, que não quer a morte nem o sofrimento. Esses males, sabemos, não são vontade de Deus, mas uma conseqüência do pecado (cf. Rm 6, 23) que inflete sobre nossa fragilidade material.

As faixas que prendem Lázaro à morte são figuradamente todos os obstáculos que nos vinculam ao império do pecado, e não nos permitem sair da fétida vala (“já cheira mal!”) das paixões, da idolatria e do orgulho. Ao libertar o homem de suas limitações (as faixas do v. 44), Jesus o torna capaz de andar por si, ou seja, testemunhar integralmente sua fé.

O mundo, em todos os tempos, sempre teve pessoas que, na defesa de suas ideologias, preferem o mal de muitos que o destaque de seus adversários. Assim sucede na política, na vida social e no esporte. Incrivelmente, os inimigos de Jesus viam no bem que ele praticava, uma ameaça. Seus sinais foram causa de condenação por parte daqueles que estavam fechados à Boa Notícia:

Este homem realiza muitos sinais... (11, 47).

Até Lázaro se viu ameaçado, pelo fato de ser amigo de Jesus e haver sido vivificado por ele (cf. 12, 10). Ele era o testemunho vivo do poder de Jesus. A generosidade de Jesus, sua solidariedade para com os fracos e sua opção em favor daqueles que sofrem, é vista como algo nocivo, uma ameaça aos privilégios dos que se julgavam donos da religião. Infelizmente há remanescentes desse comportamento entre nós, ainda hoje.

O mistério da pessoa de Jesus se revela na glória terrena do Filho Unigênito, experimentada pela comunidade apostólica nos sinais. Os sete sinais descritos neste livro, bem como outros, relacionados por alguns autores, lembram e descrevem atitudes, fatos e gestos do ministério de Jesus que vão num crescendo cada vez maior, até o sinal maior, que é a sua Ressurreição, prefigurado pela vivificação de seu amigo Lázaro.

Desta maneira, todo o mistério do cristianismo se resume na palavra: vida! Vida abundante, vida eterna, viver para sempre, dar vida, etc. Desde a criação, a imagem da “árvore da vida” reflete uma promessa de imortalidade ao homem, desde que ele seja fiel. Sendo um “Deus vivo” (cf. Sl 42, 3), o Deus-dos-vivos (cf. Lc 20, 38), ele age como autor e amigo da vida, salvando seu povo, protegendo-o, resgatando-o.

Jesus confirma, que a Palavra de Deus é eficaz (cf. Is 55, 10s) e que o Pai é fonte da vida (cf. Jo 5, 26). A grande novidade é que Jesus é a vida (cf. Jo 14, 6) e tem a vida em si mesmo (cf. Jo 5, 26). Nesse particular, ele nos ensina que a verdadeira vida é o conhecimento, e aqui entenda-se conhecer como amar e integrar-se, de Deus (cf. Jo 17, 3).

Qual o significado do texto que hoje serve de iluminação para a nossa meditação? Jesus traz Lázaro de volta à vida, como um sinal eloqüente e definitivo, para nos mostrar que Jesus pode dar vida onde aparentemente impera a morte. Na relação com o futuro, ele dá vida ao amigo morto para revelar que no Reino a vida é abundante e eterna.

Resumo da pregação em um retiro de padres, realizado em Santa Catarina, em 2009.