O Incrível Luther
O Incrível Luther
Luther Burbank passou grande parte de sua vida despertando nos outros, leia-se concorrentes, a coloração não esmeralda do sentimento da inveja. Suas proezas, entre fins do século XIX e começo do XX deram origem a um novo verbo transitivo na língua inglesa: to burbank, registrado pelo Webster como modificar e aperfeiçoar.
É o que acontece com os quem agem livremente – incomodam aqueles emaranhados nas próprias teias.
Seus biógrafos sempre enfatizaram que Burbank “foi e permanece um enigma”.
O principal livro da Self-Realization Fellowship é dedicado à sua memória.
Três anos depois de publicar o arrebatador “A origem das espécies”, Charles Robert Darwin lançou, em 1862, “A fecundação das orquídeas”, considerado até hoje como um dos mais completos estudos sobre uma única espécie. O que saltou aos olhos do pesquisador foi o modo pelo qual os insetos cuidavam da fecundação dessas flores. Darwin passou 12 anos vasculhando o assunto, teceu cadernos e cadernos sobre “fertilização cruzada” e “vigor híbrido”, para, enfim, encaminhar-se para o outro plano sem desconfiar, pelo menos com muita precisão, que algo mais que o mero acaso estava em jogo no cruzamento das espécies. Esse algo poderia ser submetido a vontade do homem. Nesse ponto entra Burbank.
Em 1901, durante o Congresso Floral de São Francisco, Luther avaliaria a irmandade botânica da seguinte forma:
“O principal trabalho dos botânicos de outrora foi o estudo e a classificação de múmias vegetais, secas e privadas de alma. Pensaram eles que suas espécies classificadas eram mais fixas e imutáveis que tudo o que podemos agora imaginar, seja no céu ou na terra. Mas aprendemos que as plantas são tão maleáveis nas nossas mãos quanto o barro nas mãos do oleiro”.
Pelo menos nas mãos dele.
Em 1893 – considerando quase doze meses entre a publicação do catálogo e sua viagem para o Velho Mundo, este chegou como que por acaso ao encontro de um dos redescobridores da ciência moderna da genética: o professor holandês Hugo de Vries.
Com 52 páginas, intitulado “Novas criações em frutas e flores”, o catálogo publicado em Santa Rosa, Califórnia, captou a atenção do professor de tal forma, que este não teve opção senão embarcar para a América e conhecer pessoalmente o editor. “Aquilo não poderia ser possível”, espantou-se o estudioso, que mais tarde daria seguimento a obra de Darwin, “como alguém pode dar vida à espécimes botânicos que a natureza sequer cogitou?”
Podemos especular que a travessia do Atlântico para de Vries possa ter sido recheada de indagações sobre as descrições contidas no catálogo: a nogueira Paradox, cuja madeira de lei crescia com a rapidez das árvores de madeira macia, a margarida chamada “Mount Shasta”, cujas pétalas enormes eram do mais puro branco, a maçã, doce de um lado e azeda de outro. Analisando bem, a edição não trazia uma única planta conhecida.
Burbank nasceu em 1849, no que se poderia considerar uma aldeia rural, denominada Lunenburg, em Massachusetts, e na idade escolar seus principais inspiradores foram Thoreau e Darwin. Quanto a este último, chamou sua atenção “A variação de animais e plantas sob domesticação”. Os dois volumes de Darwin traziam a idéia de que organismos vivos variam “quando excluídos de suas condições naturais”.
Ainda em fins do século XIX, noutro ponto da América, falando para uma platéia lotada num congresso internacional de horticultura, o botânico Liberty Hyde Bailey, mundialmente reconhecido, assim professava: “o homem pouco pode fazer para produzir variações nas plantas”.
Enquanto isso, em 1882, Burbank se envolveu em experimentos com a batata e esta nunca mais seria a mesma. Seu antecessor avermelhado ganhou uma casca clarinha e um interior macio e saboroso. Foi também nesses idos que ele desenvolveu uma ameixa – que se impôs na Califórnia e foi o carro chefe de sua “revolução pomológica”, junto com o popular pêssego “Burbank July Elberta”, a nectarina Gold, e outras variedades de marmelo, amoras, castanheiras, amendoeiras, etc.
Professor de Vries chegou da Holanda e ficou decepcionado ao ver que a casinha em que Burbank trabalhava dispensava biblioteca e laboratório e que todas as anotações eram feitas em pedaços de papel pardo de sacolas ou no verso de envelopes e cartas. Entretanto, o renomado holandês reconheceu-o como um gênio nato e escreveu que Luther “merecia a mais alta admiração por seu valor para a doutrina evolucionista”.
O professor Liberty Hyde Bailey também foi a Santa Rosa, no mesmo rancho em que de Vries ficou estupefado, para não apenas mudar o seu discurso em futuros congressos como para escrever na revista “World‘s Work”:
“Luther Burbank é um criador de plantas profissional que, em nosso país, encontra-se praticamente sozinho em seu campo. Tantas e tão surpreendentes são as novas plantas que ele deu ao mundo, que já o chamam de “Mago da Horticultura”. Mas esse epíteto acabou por predispor contra seu trabalho um bom número de pessoas. Luther Burbank não é um mago. É um homem honesto, cuidadoso, curioso e persistente. Ele acredita que as causas produzam efeitos. Não recorre a outra mágica senão a investigação paciente, um entusiasmo sem limites, um espírito sem preconceitos e uma noção extraordinariamente bem formulada dos méritos e capacidades das plantas”.
Nesse ponto seus biógrafos concordam inteiramente. O depoimento do professor Liberty fez um tremendo bem ao mago, pois tudo que circulava nos meios acadêmicos a seu respeito resumia-se a rumores pejorativos. No mesmo meio, especificamente na Universidade de Stanford, ele chegou a declarar:
“ A ortodoxia é uma ancilose – ninguém em casa. Para maiores informações, dirija-se ao agente funerário.”
A aura que envolvia Burbank ganhou uma nova proporção em 18 de abril de 1906, quando o terremoto que por pouco não devasta São Francisco por completo reduziu Santa Rosa a cinzas, com uma única exceção: os vidros da estufa de Luther haviam sequer estalado. Ele julgava que a mesma estava sob proteção das forças cósmicas que animam a natureza.
A insuperável Hellen Keller, cega e surda cuja têmpera revolucionou a maneira de como a sociedade deveria encarar e tratar de deficientes como ela, o guru indiano Paramahansa Iogananda, responsável por introduzir o culto a ioga e ao caminho filosófico para a integração do ser - nos EUA e daí para o ocidente, o fundador da Sociedade de Pesquisas Filosóficas de Los Angeles, Manly P. Hall, o geneticista H. J. Webber, o empresário David Fairchild, entre outros, estiveram em Santa Rosa para perderem o fôlego ao verem Burbank trabalhando. Fairchild viria a afirmar:
“Há quem diga que ele não é nada cientifico. Mas isso só é verdade em termos. Ele quis fazer tanta coisa, se fascinou tanto com o desejo de criar, que nem sempre se preocupou em anotar os passos que deu”.
Hellen Keller o descreveria como detentor do mais raro dos dons: o espírito receptivo de uma criança.
O professor Webber diria que Burbank poupou ao mundo, sozinho, duas décadas de pesquisa.
Paramahansa dedicaria sua autobiografia para ele, chamando-o de “Um santo americano”.
No último ano de sua vida, 1925, Luther resolveu falar abertamente acerca de seus pensamentos, por assim dizer, religiosos e ganhou um oceano de controvérsias. A partir daí, a partir de um artigo de jornal, passou a receber cerca de 500 cartas por dia. Um ano depois, calcula-se que 10.000 pessoas foram ao seu funeral, incluindo membros do clero. Não se pode afirmar qual percentual desse contingente estava ali pelo gênio da botânica e qual pelas declarações de não acreditar num Deus que enviava seus filhos para o inferno, ou, "A luz clara da ciência nos ensina que devemos ser o nosso próprio salvador, quando descobrirmos que vale a pena salvar", ou, "Tudo bem com ter sentimentos, se você não ficar bêbado com eles. Orações podem ser dignas se combinadas com trabalho, e aqueles que trabalham com a cabeça, mãos, pés e tem fé são geralmente bem certos de uma resposta favorável e imediata."
Luther partiu aos 77 anos, em 1926, e seu legado não foi sombreado por 300 dias de debate franco sobre convicções religiosas. Sua entrada para a História deve-se, definitivamente, por suas descobertas no campo da botânica.
Quando o holandês de Vries, depois de ver como era o laboratório do mago, onde ele tomava anotações, e por outro lado, a vastidão de seus experimentos, ousou indagar: mas, afinal, qual é o seu método?
Ao que Luther teria respondido:
“Uma questão de concentração e rápida eliminação do que não é essencial”.