Em atenção à tua Palavra (SERMO XCIV)

EM ATENÇÃO À TUA PALAVRA...

Prof. Dr. Antônio Mesquita Galvão

As Sagradas Escrituras têm o poder de lhe comunicar

a sabedoria que conduz à salvação, pela fé em Jesus Cristo

(2Tm 3,15).

Com referência à eficácia da Palavra de Deus, me recordo de uma pregação que fiz, lá pelos idos de 1984, há vinte e seis anos, portanto, numa ultreya do Cursilho, realizada no auditório da Caixa, em João Pessoa, PB, que reuniu cerca de quatrocentas pessoas. Lembro ainda que o tema do citado encontro foi “Quando Jesus passar”, baseado em uma música para-liturgica muito cantada naquela época.

O mote da meditação se inspirou no episódio de uma pesca frustrada, quando os apóstolos retornaram à beira do lago depois de uma noite inteira sem lograr trazer um único peixe. Jesus está à margem do Genezaré e manda que avancem um pouco, para águas mais profundas, e lancem novamente as redes. A argumentação de Pedro denota toda a frustração do grupo de pescadores:

Quando acabou de falar, Jesus disse a Simão: “Avance para águas mais profundas, e lancem as redes para a pesca”. Simão respondeu: “Mestre, tentamos a noite inteira, e não pescamos nada. Mas, em atenção à tua palavra, vou lançar as redes”. Assim fizeram, e apanharam tamanha quantidade de peixes, que as redes se arrebentavam (Lc 5, 4-6).

Este texto é conhecido, entre os tantos sinais, como “A pesca milagrosa” e ocorreu no princípio de sua atividade, no circuito entre Betsaida e Cafarnaum, palco de um ponderável número de milagres e pregações de Jesus. O que se evidencia aqui, mais do que o milagre de fazer surgir peixes onde antes não havia nada, é a eficácia da Palavra. Jesus deu uma ordem, os pescadores – embora relutantes – obedeceram e o fato extraordinário aconteceu: os peixes aconteceram.

Neste mês de setembro, quando mais uma vez os católicos celebram a Palavra de Deus, cabe sempre lembrar que Jesus é a Palavra, o logos de Deus, e suas palavras têm o poder de criar, dar vida, curar, transformar e de mudar os corações endurecidos pelo pecado. A sabedoria popular diz que não se ama aquilo que não se conhece. Algumas pessoas conhecem assuntos diversos, mas ignoram o conteúdo da Palavra de Deus. Talvez por causa disto ocorra o que o profeta denunciou: “Meu povo se perde por falta de conhecimento” (cf. Os 4,6).

Por falar em “mês de setembro” eu tenho certas restrições justamente ao que eu estou fazendo aqui hoje: vir dar uma “palestra” sobre a Bíblia e ao mês a ela dedicado. Parece assim que se trata de uma obrigação que deve ser cumprida apenas em setembro, restando esquecimento e aridez no restante dos dias do ano. Em muitos casos parece que os católicos só se lembram da Bíblia no mês de setembro, quando o Livro Sagrado é introduzido solenemente no templo, com cantos, flores, incenso e aplausos. Depois desse período tudo volta como antes, pouco se estuda, nada se reflete e – pior – quase nada se vive e aplica à realidade

Em atenção à tua palavra...

Pedro, mesmo sendo um homem rude, de pouca cultura, intuiu naquela ordem que Jesus lhe dava, a solução para o problema crucial daquele dia: eles não tinham colhido peixes para sustento e comércio, e aquela carência era trágica. Ele não questionou o fato de ele ser experiente nas lides da pesca e Jesus pouco entender daquele trabalho, mas tendo confiança no Mestre e no poder de sua Palavra, foi a águas mais profundas e lançou a rede. O resultado nós sabemos: vieram tantos peixes a ponto de arrebentar as redes, e eles terem de pedir ajuda aos companheiros de outras barcas.

Em atenção à tua palavra...

Aqui há duas idéias, duas teses que formam um paradigma, uma síntese notável: a busca em águas mais profundas e a atenção à Palavra. Em atenção à Palavra de Jesus, Pedro contrariou a lógica daquela hora, ignorou sua “experiência” profissional e o resultado foi extraordinário. A pessoa, para ver realizado o milagre, o sinal ou o fato excepcional, precisa ter a humildade de renunciar ao conhecimento, deixar de lado a soberba do “eu sei tudo” e se entregar nas mãos de Deus. O normal, o previsível daquele momento era a inexistência de peixes, afinal eles haviam pescado a noite toda. Pedro, no entanto, não confiou nos seus instintos de profissão ou de experiência, mas preferiu ir adiante, mergulhar nas águas mais profundas do mistério, e haurir ali o poder de Deus.

Por eficácia da Palavra entendemos sua força e capacidade em realizar aquilo que promete. Só é eficaz aquele esforço que atinge os objetivos propostos e traçados. É nisso que reside a eficácia. A Sagrada Escritura é eficaz na medida em que é capaz de enriquecer a vida humana e transformar a nossa sociedade segundo o projeto de Deus.

Toda Escritura é inspirada por Deus e é útil para ensinar, para refutar, para corrigir, para educar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito, preparado para toda boa obra (2Tm 3, 16s).

Muitas vezes as coisas boas, os dons e as graças não chegam até nós porque a gente costuma ficar na superficialidade da água pela canela, temos medo de arriscar, não vamos à profundidade da questão, e deste modo não acontece nada de extraordinário em nossa vida. Muitas pessoas desconhecem o poder da Palavra de Deus...

Um homem reclamou que era cristão há mais de vinte anos, e que achava que não devia mais ir à igreja, pois havia escutado cerca de dois mil sermões e homilias, e não recordava de nenhum deles, achando que não só ele, mas também padres, pastores e pregadores haviam perdido seu tempo. Um amigo que escutou o desabafo dissentiu, dizendo que era casado há mais de vinte anos, e que nesse período sua esposa lhe fizera milhares de refeições, cujo cardápio ele não recordava, mas tinha certeza de que, sem aquela comida ele não teria se mantido vivo.

Todas as refeições feitas carinhosamente pela esposa o haviam nutrido e dado a força que ele precisava para viver. Na Igreja a palavra de Deus alimenta nossa fome espiritual e dá força à nossa fé. Hoje eu estaria morto espiritualmente se não fosse ela. A fé vê o invisível, espera o impossível e recebe o inacreditável. A eficácia da Palavra está no fato de ser como a chuva; ela nunca deixa de cumprir sua missão. É por esta razão, imbuído da necessidade de anunciar a Palavra, que Paulo insiste com Timóteo:

Proclame a Palavra, insista no tempo oportuno e

inoportuno, advertindo, reprovando e aconselhando com

toda paciência e doutrina (2Tm 4,2).

Reside aí o desafio: viver uma vida cristã, espiritualizada e voltada para o alto, sem furtar-se à vida material e à dimensão sócio-fraterna inerente a esse tipo de vida. A palavra espiritualidade é compreendida como a ação do Espírito Santo no cristão; age nele e através dele. O que Jesus disse aos discípulos se aplica a todos, leigos, padres e religiosos:

Vocês são a luz do mundo... Não pode ficar escondida uma

cidade construída sobre um monte. Ninguém acende uma

lâmpada para colocá-la debaixo de uma vasilha, e sim para

colocá-la no candeeiro, onde ela brilha para todos os que

estão em casa. Assim também que a luz de vocês brilhe

diante dos homens para que eles vejam as boas obras que

vocês fazem, e louvem o Pai que está no céu (Mt 5,14s).

É fundamental que se insista na necessidade que os cristãos têm, independente de seu estado de vida, de descobrirem cada vez mais, eles próprios os caminhos de sua espiritualidade, de acordo com o estado de vida abraçado por cada um, sem que um queira viver em sua vida o tipo de espiritualidade do outro.

No tocante à Palavra de Deus vemos que a fé é algo mais consistente e profundo; emana do transcendente. Teologicamente diz-se que é um dom, um presente gratuito de Deus. Há a fé cerimonial, cúltica, que é um gesto de respeito a atos e cerimônias, sem contudo ter as características de fé autêntica. Situa-se mais na linha da crença; algo que exija uma demonstração permanente.

A teologia ensina que Deus, desde que o homem perdeu o paraíso estabeleceu um plano de amor, chamado economia da salvação, capaz de resgatar o homem de sua situação de pecado, de queda original, de afastamento com seu Criador. A esse plano dá-se o nome de Plano (alguns dizem projeto) de Deus.

Ora, no mistério da amizade (a graça), Deus vem ao encontro do homem e o convida a participar do Plano de Salvação. Essa oferta é gratuita e não pressupõe méritos anteriores, exceto os que Cristo obteve na cruz. A resposta a esse dom (presente) de Deus é dada pelo homem através da sua fé. Deus vem ao encontro (a graça); o homem atende, adere, confirma (a fé). Assim podemos concluir que fé é a resposta pessoal do homem a uma proposta divina (a graça). Aderindo ao chamado da graça, o homem torna-se filho de Deus, irmão de Cristo, irmão dos outros homens, membros da Igreja, herdeiro do Reino e destinatário da salvação. A graça engloba tudo isto. Há, embora sutil, uma diferença entre crer, acreditar e ter fé.

A fé dos judeus, ponto de partida para a nossa fé cristã, não nasce a partir de constatações mais ou menos teóricas sobre a existência de um criador. Há esta reflexão, sem dúvidas, mas ela é posterior. Os antigos hebreus, desde o tempo do semi-nomadismo, fundaram sua fé mística a partir de um evento histórico. O Deus de Israel é um Deus vivo que atua. Referindo-se a Palavra de Deus, o profeta da volta do exílio escreveu aos crentes judeus de seu tempo e a todos nós, do novo Israel:

Da mesma forma como a chuva e a neve, que caem do céu

e para lá não voltam sem antes molhar a terra, tornando-a

fecunda e fazendo-a germinar, a fim de produzir semente

para o semeador e alimento para quem precisa comer,

assim acontece com a minha palavra que sai da minha

boca: ela não volta para mim sem efeito, sem ter realizado

o que eu quero e sem ter cumprido com sucesso a missão

para qual eu a mandei (Is 55, 10s).

A fé professada pelo povo hebreu se prende a uma introdução histórica:

Amanhã seu filho vai lhe perguntar: “O que significam esses

testemunhos, estatutos e normas que Javé nosso Deus

ordenou a vocês?”. Então você responderá a seu filho: “Nós

éramos escravos do Faraó no Egito, mas Javé nos tirou do

Egito com mão forte. Diante de nossos olhos ele realizou

sinais e prodígios, grandes e terríveis contra o Egito, contra

o Faraó e toda a sua corte. Quanto a nós, porém, ele nos

tirou de lá para nos introduzir aqui e nos dar a terra que

havia prometido a nossos antepassados. Ele então nos

ordenou cumprir todos esses estatutos, temendo a Javé

nosso Deus, para que sempre tudo nos corra bem e para

nos dar a vida, como hoje se vê. Esta será a nossa justiça:

cuidarmos de colocar em prática todos esses mandamentos

diante de Javé, nosso Deus, conforme ele nos ordenou”

(Dt 6, 20-25).

A historicidade de um povo, descoberta após uma leitura mais atenta da Bíblia, mostra que a fé dos antigos judeus é algo projetado ao futuro. A terra à qual o povo é conduzido representa o cumprimento daquelas promessas feitas aos patriarcas Abraão, Isaac e Jacó. Ela é uma promessa que se projeta no tempo. Tempo terreno, de bem estar (terra onde corre leite e mel) e tempo futuro, de eternidade celeste.

Como processo histórico, as sociedades de todos os tempos sempre buscaram racionalizar a fé, colocando-a a serviço de ideologias, adaptando-a a seus discursos. Em nosso continente latino-americano – afirma o documento de Santo Domingo (1992) – há um divórcio entre fé e vida, ao ponto de produzir clamorosas situações de injustiça, desigualdades sociais e violência.

A perenidade da Palavra de Deus reforça aquele ato de fé de Pedro, que mesmo diante de uma pesca frustrada decidiu insistir, em atenção à recomendação de Jesus. É em nome dessa perenidade que Jesus afirmou

O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não

haverão de passar (Mt 24,35).

Hoje, muita gente que se diz cristão, pratica a injustiça, o roubo e a opressão de seus semelhantes. Tivemos até um “anão do orçamento” que enriqueceu ilicitamente, e teve a cara-dura de afirmar que “...Deus me ajudou...”. Nesses, a fé não teve força, ainda, de penetrar de forma radical e transformadora. O patrão que paga um salário indigno ou que explora e demite sem razão, está ajudando a tirar a vida do assalariado.

O pão é a vida do pobre; quem tira esse pão é sanguinário.

É assassino do próximo quem lhe tira os meios de viver;

derrama sangue quem priva o trabalhador do salário

(Eclo 34, 18-22).

Muitas vezes a atitude de crença é eminentemente formal, escondendo por detrás um ateísmo materialista, um desinteresse com o outro, capazes de revelar um egoísmo sem precedentes. O homem hodierno busca mais segurança do que salvação. Tendo, com freqüência, perdido o sentido do pecado e do transcendente, almeja dominar o mal (considerado mais como carência ou como um passo necessário a ser superado) por meio das ciências. Também por isso, parece-lhe, não raras vezes, inútil recorrer a Deus. Eis alguns exemplos, segundo C. I. Gonzalez:

a) o homem racionalista reduz o mal humano às faltas contra a

norma ética, cujas raízes não ultrapassam os fatos. É um

novo pelagianismo apresentado com tintas humanistas; O

pelagianismo é uma doutrina segundo a qual o homem é

totalmente responsável por sua própria salvação e que

minimiza o papel da graça divina;

b) para o evolucionista não existe pecado, mas uma etapa

cujos elementos negativos serão superados naturalmente,

em termos da evolução;

c) o psicologista procurará reduzir exageradamente a idéia de

Deus no homem, por exemplo a uma superestrutura ilusória,

proveniente do desejo reprimido de um paraíso perdido, ou

coisa semelhante. Neste caso o psicólogo deveria,

por exemplo, ajudar a pessoa a se salvar, encontrando a si

mesma, ou se adaptando à sociedade. Negado o pecado, a

consciência deste poderia reduzir-se à experiência de

um “complexo de culpa” a ser eliminado ou superado;

d) o existencialista, invariavelmente ateu, sente a vacuidade e

o absurdo de um homem sem esperança de libertação. Trata-

se de uma cosmovisão pessimista que repudia uma “salvação

vinda de fora” (de Deus) para transformar o interior do

homem;

e) o homem vítima da sociedade de consumo sente-se

ameaçado pelas guerras ou pelas máquinas que ele mesmo

fabricou. Longe de esperar em Deus, busca salvação em

frágeis tratados de paz, ou coloca sua confiança nas

estruturas e sistema políticos, econômicos ou de consumo.

Crer no sentido de ter fé, vincula, compromete, cria laços. Crer, mais na linha do acreditar, torna tudo muito superficial: “Creio que o homem foi à lua; mas isso não me vincula nem me compromete com nada”. Sobre esse acreditar (crer sem compromisso) há uma interessante admoestação de São Tiago:

Crês tu que há um só Deus? Fazes bem. Só que os demônios

também crêem nisso. E tremem (Tg 2, 19).

Às vezes nossa maneira de crer, sem compromisso, alienada, sem unir fé com atitudes, pode ser um pouco semelhante ao modo como os demônios crêem na existência de Deus. É do tipo eu aqui e ele lá. Isto não é fé, e nunca será, porque não existe nem a tentativa. Uma crença verticalista, só em Deus, ignorando ou desprezando as criaturas, não é fé; e pior: torna-se uma mentira:

Quem diz amo a Deus, e deixa de amar seu irmão, é um

mentiroso; pois quem não ama a seu irmão, a quem vê, não

poderá amar a Deus, a quem não vê (1Jo 4, 20).

O caso é que, perdido o senso da horizontalidade, a fé passou a ser vivida de forma abstrata, a-histórica, intemporal, desvinculada do mundo. E a promessa do Reino ficou reduzida à esperança escatológica, acontecimento futuro. Ser bom cristão, da “cidade de Deus” e bom súdito do imperador, cumprir formalmente os mandamentos, receber os sacramentos, seria considerado forte garantia de salvação.

A boa notícia (o evangelho) de Jesus e o kérygma (anúncio) da Igreja não podem ser separados. O Evangelho sem a fé testemunhada pela Igreja torna-se apenas um conjunto de textos bonitos. O kérygma sem o Evangelho anuncia uma idéia meio alienada, divorciada da realidade. Sobre isto há um texto do teólogo J. Jeremias que ensina que o Evangelho de Jesus e a Proclamação da Igreja, embora atuem sintonizados, não são a mesma coisa. A vida e a obra de Jesus são a Palavra de Deus com a qual ele interpela os homens. A fé da Igreja é a resposta, inspirada pelo Espírito Santo, com a qual o gênero humano responde ao apelo de Deus, louvando-o e dando um testemunho de ação cristã no mundo.

Em atenção à Palavra de Deus, o apóstolo Pedro dirigiu-se a “águas mais profundas” e viu acontecer o milagre. Assim funciona a eficácia do evangelho. Quando nós saímos daquela mediocridade que a tudo corrói, quando nos libertamos da superficialidade que o mundo e seus meios-de-comunicação preconizam, passamos a tomar posse da vitória que Deus tem para nós. Estar atento à Palavra de Deus não é apenas conhecer seus textos, mas transformá-los em atitude.

Sejam praticantes da Palavra, e não apenas ouvintes, iludindo

a si mesmos. Quem ouve a Palavra e não a pratica, é como

alguém que observa no espelho o rosto que tem desde o

nascimento; observa a si mesmo e depois vai embora,

esquecendo a própria aparência. Mas, quem se concentra

numa lei perfeita, a lei da liberdade, e nela continua firme, não

como ouvinte distraído, mas praticando o que ela manda, esse

encontrará a felicidade no que faz (Tg 1, 22-25).

Hoje há como que uma sede da Palavra de Deus, sede esta que os canais convencionais nem sempre têm saciado. Em muitos casos, nosso trabalho fracassou e nossas iniciativas foram ineficientes. Quem acreditou na nossa pregação? O que foi profetizado, como tempo de fome e sede da Palavra de Deus (cf. Am 8, 11), cada vez mais se faz sentir, e o sinal é a diversidade de buscas, a interpretação muitas vezes fundamentalista e sectária, que ao invés de ajudar e esclarecer, mais tem confundido e dificultado a assimilação e a execução.

Mesmo com o reconhecimento dessa ponderável sede pela Palavra, observa-se, principalmente nos meios católicos, que o estudo da Bíblia ainda é muito descuidado, superficial e relaxado. Nos quase trinta anos que assessoro cursos eclesiais e workshops bíblicos, tenho observado certa apatia das pessoas em aprofundar esse tipo de conhecimento, Você marca um curso, por exemplo, e aparece quem sabe, e quem não sabe fica em casa. Embora os três últimos encontros do CELAM (Puebla, Santo Domingo e Aparecida) tenham enfatizado a necessidade desse aprendizado, parece que a nossa Igreja ainda não despertou para esse compromisso de formação. É preciso que nós, que somos mestres e discípulos ensinemos

No livro dos Atos dos Apóstolos, vemos a figura do eunuco da corte da rainha Candace, que voltava de uma peregrinação a Jerusalém e lia o livro do profeta de Isaias. O apóstolo Felipe foi enviado pelo Espírito Santo para lhe dar um suporte espiritual:

Um anjo do Senhor falou a Filipe, dizendo: “Prepare-se e vá

para o sul, pelo caminho que desce de Jerusalém para Gaza; é

o caminho que se acha no deserto”. Filipe levantou-se e foi.

Nisso apareceu um eunuco etíope, ministro de Candace, rainha

da Etiópia. Ele era administrador geral do tesouro dela. Tinha

ido a Jerusalém em peregrinação, e estava voltando para casa.

Ia sentado em seu carro, lendo o profeta Isaías. Então o

Espírito disse a Filipe: “Aproxime-se desse carro e o

acompanhe”. Filipe correu, ouviu o eunuco ler o profeta Isaías,

e perguntou: “Você entende o que está lendo?” O eunuco

respondeu: “Como posso entender, se ninguém me explica?”

(At 8, 26-31).

Assim acontece com muita gente hoje. Como vão entender a Palavra de Deus e estarem atentos a ela se ninguém explica o que está escrito? Faltar “ir para águas mais profundas”. Jesus manda ensinar e batizar (cf. Mt 28, 19s) para que todos se tornem discípulos.

Continuando o caminho, chegaram a um lugar onde havia

água. Então o eunuco disse a Filipe: “Aqui existe água. O que

impede que eu seja batizado?” Filipe lhe disse: “É possível, se

você acredita de todo o coração”. O eunuco respondeu: “Eu

acredito que Jesus Cristo é o Filho de Deus!”. Então o eunuco

mandou parar o carro. Os dois desceram junto às águas, e

Filipe batizou o eunuco (At 8, 36ss).

Quanto à atenção à Palavra, Jesus recomenda duas ações: escutar e colocar em prática. É sobre essas duas colunas que repousa o verdadeiro cristianismo. É como quem coloca sua edificação espiritual sobre um alicerce sólido e permanente.

Portanto, quem ouve as minhas palavras e as põe em prática,

é como o homem prudente que construiu sua casa sobre a

rocha. Caiu a chuva, vieram as enxurradas, os ventos

sopraram com força contra a casa, mas a casa não caiu,

porque fora construída sobre a rocha (Mt 7, 24s).

Nesse longo período de docência da Palavra junto às comunidades, não me foi difícil observar a precariedade de certas formas de catequese, bem como a superficialidade de algumas pregações e homilias, levando o povo, de um modo geral, àquela angústia de quem busca e não encontra respostas.

As atividades comunitárias de formação, como “cursos bíblicos”, “estudos da Palavra” e “círculos de evangelho” nem sempre são tratados com a atenção que é necessária. Muitas vezes falta “ir para águas mais profundas”. Na esperança das luzes das Escrituras a Igreja canta

Pela Palavra de Deus,

saberemos por onde andar

ela é luz e verdade

precisamos acreditar...

Sendo a Bíblia uma “carta de amor de Deus à humanidade”, nela o Pai nos fala direto ao coração e à inteligência. Por esta razão, vemos que ele nos fala através de três canais: pela tradição, pela Bíblia e pelos sinais dos tempos. Essas três fontes alimentam outra, chamada de “magistério da Igreja”, que interpreta as demais, tornando sua linguagem acessível aos fiéis e crentes. É preciso estar sempre atento à comunicação que o Criador quer manter conosco. É interessante a constatação a respeito do amor de Deus pela humanidade.

Ele nos amou de tal modo que se encarnou, se fez Filho, morreu para dar vida (cf. Jo 3,16). Assim como seria uma desatenção alguém receber uma carta de amor, da namorada, do esposo, de um filho, do pai, e não lê-la, fazer pouco caso, deixá-la de lado, como algo sem valor. O remetente certamente ficaria magoado, ao ver seu amor não correspondido. Assim é Deus, quando nos dedicamos a outros estudos e outras leituras e nos furtamos a ler a sua Palavra, a Carta de Amor, atualíssima, que ele nos enviou e ainda manda todos os dias.

Por fim, é salutar que, quando Jesus passar por aqui – e ele está sempre passando por nós – nos encontre exatamente naquele lugar que ele projetou para a nossa vida, ligado, diligente e atento ao que sua Palavra nos diz.

Palestra ministrada a um grupo de evangelizadores, realizada em Porto Alegre, em setembro de 2010. O autor, que é Biblista, Doutor em Teologia Moral e escritor, publicou mais de cem obras no Brasil e Exterior, entre elas “Introdução ao estudo da Bíblia”, Ed. Kérygma, 2008.