O TREM É A ALMA DE MINAS
No vocabulário mineiro, as acepções conferidas à palavra “trem” não se limitam a “coisas, objetos em geral”, como muitos supõem. Sua utilização recai em situações alusivas ao plano objetivo e também naquelas singularmente subjetivas, transcendentes mesmo. Pode-se afirmar que alguém seja profundo conhecedor das múltiplas vertentes do espírito mineiro, se conhecer, com a devida profundidade, todas ou quase todas as situações de uso da palavra trem nas vastidões de nossos rincões. A seguir, expomos parte do amplo universo semântico que envolve o lexema “trem”, apenas o suficiente para comprovar o título que conferimos a este artigo.
• TREM = coisa, objeto, em sentido indistinto.
Exemplo: Ele escondia um trem na mão direita.
Neste particular, existe uma anedota que narra o seguinte:
Uma família de caipiras aguardava o trem numa pequena estação do interior mineiro. Embarcaria para Belo Horizonte, de onde seguiria de ônibus para São Paulo. Era mais uma família de matutos que migrava para aquele estado, daí por que levasse todas suas posses, estas resumidas a uma grande quantidade de sacos esparramados pela pequena estação ferroviária. Após longa espera, o trem aponta finalmente ao longe. O pai, tenso e preocupado em não deixar nada para trás, volta-se para os membros de sua família e anuncia:
— Peguem os trem, que a coisa já vem!
• A propósito, afirma-se também em tom de anedota que o mineiro não perde o trem, por ser literalmente previdente. A expressão aplica-se também à definição de seu caráter matreiro.
• Estou com vontade de comer um trem... = refere-se a algo gostoso, que se deseja, mas
que não se sabe precisar o quê...
• Que trem doido!... = imprecação contra quem comete um desatino qualquer.
• Ei trem doido, sô! = interjeição de satisfação.
• Que trem, sô!... = interjeição de perplexidade: pode ocorrer desde a situação em que um engenheiro da CEMIG aplaca seu nervosismo ante um acidente com a rede elétrica até a contrariedade do capiau que perde uma de suas minguadas vacas, vítima de brucelose...
• Que trenhão...! = referindo-se a uma mulher muito sensual...
• Se meu filho fizer um trem errado, chamo-lhe a atenção no ato! = situações subjetivas,
em que a cultura autoritária do pai se manifesta.
• Este menino já anda com idéias de namoro... Que trem! = aqui temos um misto de perplexidade, admoestação e, contraditoriamente, de aprovação.
• Qualquer trenzinho que eu faço, minha mãe já pega no meu pé... = o filho queixa-se da mãe, numa situação em que a palavra trenzinho generaliza ações tidas como insignificantes e, no entanto, objeto de reprimendas da mãe.
• Um trem se mexeu ali no mato, e ele se borrou de medo...! = Há aqui uma generalização do sujeito agente da primeira oração.
• Vou na rua comprar uns trem... = Este é um exemplo de generalização máxima!
• Vendeu a casa que tinha, e agora mora de aluguel... Que trem bobo ! = atitude de reprovação, de condenação do procedimento alheio.
• E então aconteceu um trem horroroso: os dois carros chocaram-se de frente! = na expressão de momentos de pavor.
• Estou sentindo um trem esquisito... = pode referir-se tanto a um simples mal-estar, como a um sinistro presságio.
• Se acontecer um trem comigo, cuide de minha família... = típica expressão de alguém temeroso de algum presságio.
• Que trem bão! = Bem feito! Reprimenda por um erro ou imprevidência.
• Que trem bão! = real satisfação, em situações de contentamento.
• Você está procurando um trem que não guardou...! = admoestação a alguém por ações condenáveis e nas quais antevê-se iminente perigo ou decorrência desfavorável.
• Você está querendo um trem impossível! = reprimenda ao caráter ambiciosa de alguém.
• Comprei um trem arrumado! = pode referir-se tanto a um cavalo, quanto a um carro, eletrodoméstico, etc., enfim, a qualquer aquisição de boa qualidade. A propósito, em Capelinha há uma loja de artigos para presentes com o nome de “Trem Arrumado Presentes”.
• Que trem engraçado, uma cadela criando um gatinho... = a palavra trem é empregada em situações inusitadas.
• Que trem pra frente! = referindo-se ao caráter audacioso de alguém.
• Que trem sapeca! = para se referir à falta de inibição de alguém.
• Que trem horroroso...! = pode referir-se a uma situação de real pavor, como pode traduzir espanto diante da audácia de alguém.
• Este menino é um trem do outro mundo! = expressa alto grau de travessura da criança.
• Que trem insuportável...! = pode referir-se a alguém realmente antipático ou referir-se, contraditoriamente, a alguém simpático, cuja simpatia não se queira admitir deliberadamente.
• Ô trem ganancioso! = reprimenda à ganância.
• Ô trem levado! = reprimenda ou mesmo elogio velado à intrepidez.
• Que trem esperto...! = pode conter elogio à esperteza ou reprimenda sutil à atitude de espertalhão, de velhaco.
É realmente extenso o valor semântico da palavra trem em Minas Gerais. Posso aventar hipóteses sociológicas e afirmar que as pessoas que se utilizam desse vocábulo nas variantes dialetais aqui apresentadas, em qualquer parte do mundo, podem ser seguramente assim identificadas:
São mineiras, com certeza.
Há uma grande probabilidade de serem do Vale do Jequitinhonha.
Nasceram em cidades pequenas, vilas ou fazendas; eventualmente, nasceram no campo e se transferiram para a cidade em tenra idade.
Têm mestiçagem com preto ou índio. Nesse sentido, foi proposital o emprego que fizemos neste artigo da palavra caboclo, referindo-nos ao matuto mineiro.
Adotam maneiras simples de vida. A simplicidade é sua marca maior: na moradia, no vestuário, na alimentação...
O comedismo e a modéstia são notórios em suas ações.
São de índole hospitaleira. Aliás, a hospitalidade mineira é historicamente conhecida. Os europeus que visitaram o Brasil no início do século XIX sentiram-se tocados com ela, especialmente o francês Auguste de Saint Hilaire.
Têm internalizado em si o gosto pela música. No caso específico dos nativos do Vale do Jequitinhonha, até mesmo a voz é meio musical, por influência da Bahia. Aprecia-se a música como companheira da solidão, invocadora nostálgica do passado mineiro (Minas é toda história!). O matuto, espremido entre montanhas, tem na viola um manancial de notas musicais que convidam ao repouso do corpo e da alma, após longo dia de labuta.