As parábolas da misericórdia (SERMO XCII)
AS PARÁBOLAS DA MISERICÓRDIA
Nós nunca teremos uma visão adequada de Deus e do seu Reino se não compreendermos a dimensão exata de sua misericórdia. Os biblistas contemporâneos são unânimes em afirmar que o capítulo 15 é o “coração do evangelho” de Lucas, tal a revelação do amor de Deus que ele passa aos leitores e ouvintes.
Etimologicamente vemos que a misericórdia se compõe em miser (miséria) +corde (coração). Isto significa sentir com o coração os sofrimentos e as dores de alguém que sofre suas misérias. Assim como Deus tem misericórdia, pena de nós, por sermos fracos e pecadores, assim deve ser, igualmente, nossa atitude com relação aos nossos irmãos, em especial os mais fracos. A miséria tanto pode ser material como espiritual, e também afetiva. No hebraico bíblico vamos encontrar o verbete hesêd, a exprimir aquela misericórdia que socorre e consola.
• A ovelha que se extraviou
A história da ovelha que se afastou do rebanho é típica da cultura rural da Palestina (cf. 15,3-7). Ao contrário do que alguns afirmam, Jesus não diz que prefere o pecador ao justo. Seria um contra-senso, pois ele veio para justificar, isto é tornar justos a todos. O que fica evidenciado é seu desvelo amoroso com aqueles que se desviaram do caminho da virtude. A vida humana é cheia de percalços, tentações e convites à ruptura. A figura da ovelha deixando a segurança do redil, indo a lugares perigosos, retrata a ambigüidade humana, onde o ser humano deixa a amizade com Deus para tentar escrever, sozinho, a sua história.
Então Jesus contou-lhes esta parábola: “Se um de vocês tem cem ovelhas e perde uma, será que não deixa as noventa e nove no campo para ir atrás da ovelha que se perdeu, até encontrá-la? E quando a encontra, com muita alegria a coloca nos ombros. Chegando em casa, reúne amigos e vizinhos, para dizer: ‘Alegrem-se comigo! Eu encontrei a minha ovelha que estava perdida’” (vv. 3-6).
Restabelecida a unidade inicial (todas as ovelhas no abrigo), cabe ao pastor, cheio de alegria, fazer uma festa. Afinal, a recuperação de uma criatura merece comemoração. Aqui, porém, cabe uma questão: Que méritos tinha aquela ovelha fujona, a ponto de o pastor largar tudo e ir atrás dela, para resgatá-la? Nenhum! Ele foi buscá-la porque ele é rico em misericórdia. Esta parábola, como as demais do capítulo 15 evidencia o zelo de Deus em ir buscar e acolher o pecador que se desviou.
E eu lhes declaro: assim, haverá no céu mais alegria por um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão (v. 7).
• A moeda perdida
O segundo episódio, que retrata a perda de uma moeda, por uma dona de casa, é análogo ao anterior. Antes se perdeu uma ovelha; aqui a perda aponta para uma moeda. Deus não se conforma com nenhum tipo de perda. Antes o ambiente era rural e masculino, agora doméstico e feminino.
Se uma mulher tem dez moedas de prata e perde uma, será que não acende uma lâmpada, varre a casa, e procura cuidadosamente, até encontrar a moeda? Quando a encontra, reúne amigas e vizinhas, para dizer: “Alegrem-se comigo! Eu encontrei a moeda que tinha perdido”. E eu lhes declaro: os anjos de Deus sentem a mesma alegria por um só pecador que se converte (8ss).
Uma moeda de prata (uma dracma) é algo valioso para uma pessoa pobre, mesmo que possua outras nove. O amor de Deus pela humanidade, coloca-o na necessidade de reaver um bem (a pessoa que se extraviou) valioso. O regozijo do achado ultrapassa o individual e pervade o comunitário:
Alegrem-se comigo... encontrei a moeda que tinha perdido (v. 9).
Em um de seus magistrais textos, o poeta francês Charles Péguy († 1914) exalta a beleza profunda do que ele chama de “parábolas do coração de Deus”, onde, bem à frente, no desfile das parábolas evangélicas, como que abrindo o cortejo da misericórdia, avançam as parábolas “o pai misericordioso”, “a ovelha encontrada” e “a moeda perdida”. Feitas de Palavras do Verbo, portanto expressão da misericórdia divina, elas brotam do coração de Deus para tocar o coração do homem.
• O pai misericordioso
Na parábola do filho pródigo (ou seria do “Pai misericordioso”?), o filho cai em si e vê a burrada que fez, ao deixar a casa do pai e tentar a sorte em um mundo infenso. Não se pode falar na misericórdia de Deus sem aludir o enredo desta parábola (cf. 15, 11-32). Aqui aparecem, em confronto, a loucura e a bondade. Nesta parábola vem retratada, com excepcional dramaticidade a capacidade de o ser humano fazer mal a si próprio, usando mal sua liberdade, evadindo-se do caminho do bem, para correr atrás de aventuras loucas, que, via-de-regra, levam-no a situações críticas, negativas e às vezes trágicas.
Jesus continuou: Um homem tinha dois filhos. O filho mais novo disse ao pai: ‘Pai, me dá a parte da herança que me cabe’'. E o pai dividiu os bens entre eles. Poucos dias depois, o filho mais novo juntou o que era seu, e partiu para um lugar distante. E aí esbanjou tudo numa vida desenfreada (vv. 11-13).
Muitas vezes, e infelizmente essa é uma característica humana, a fartura, a segurança e a tranqüilidade causam certo fastio, criando rotinas e excitando desejos de liberdade, ânsias de experimentar sensações novas, vontade de agir pela inspiração própria. Nesse particular, quantos filhos deixaram a casa paterna, cônjuges abandonaram o leito conjugal, empregados renunciaram a bons empregos, tudo naquela ânsia do desconhecido, a sede da aventura, o fascínio do proibido.
Na parábola, materialmente falando, o filho tinha tudo na casa do pai, mas deixou-se seduzir pelas falácias do mundo. Preferiu uma vida longe da família, com amizades enganosas e falsos amores. E se deu mal. Em nossa relação com Deus, não é assim que ocorre, algumas ou muitas vezes? Deus nos dá tudo, mas preferimos atender a outros apelos, quem sabe mais coloridos, mas intrinsecamente podres.
Quando tinha gasto tudo o que possuía, houve uma grande fome nessa região, e ele começou a passar necessidade. Então foi pedir trabalho a um homem do lugar, que o mandou para a roça, cuidar dos porcos. O rapaz queria matar a fome comendo a lavagem que os porcos comiam, mas nem isso lhe davam (vv. 14-16).
Observando as circunstâncias ao seu redor, aquele filho reconhece que tudo aquilo que ele buscou no mundo, havia em abundância na casa de seu pai. É o pecador que busca a felicidade nas coisas, valores e prazeres do mundo, e acaba se convencendo de que é só em Deus que sua alma quer repousar, e apenas o Pai pode fazê-lo feliz. Só o Reino é sua casa. Feliz o homem que pode, a tempo, reconhecer em Deus a fonte de todas as misericórdias.
Então, caindo em si, disse: “Quantos empregados do meu pai têm pão com fartura, e eu aqui, morrendo de fome... Vou me levantar, e vou encontrar meu pai, e dizer a ele: Pai, pequei contra Deus e contra ti; já não mereço que me chamem teu filho. Trata-me como um dos teus empregados”. Então se levantou, e foi ao encontro do pai (vv. 17-20).
Em toda a história, é bom notar que  e Jesus, na parábola, deixa isso bem claro  o pai não foi buscar o filho, acatando sua decisão e respeitando sua liberdade. Na vida, Deus não sai atrás de nós, uma vez que respeita nossas decisões. Quando, porém, reconhecemos nossa culpa, como o jovem da parábola, e damos o primeiro passo de volta para casa, o Pai assume o controle, e vem ao nosso encontro para nos receber, e nos ajuda a entrar em sua casa. É interessante salientar que, com o arrependimento e o propósito, o filho prepara como que um discurso para pedir perdão ao pai, afirmando que não é mais digno de ser seu filho, que aceita ser tratado como um empregado.
Na estrada, no caminho de volta, o pai, que esperava ansiosamente o retorno do filho, reconhece-o pelo coração, naquele caminheiro sujo, magro e alquebrado. Reconhecendo-o vai ao seu encontro e o abraça. Enquanto o arrependimento caminha o perdão corre ao encontro daquele que errou. Jesus usa uma expressão que não pode  de forma alguma  passar despercebida: o pai teve compaixão... e saiu correndo ao encontro (v. 20b). E nem quis ouvir as desculpas do filho. Essa tentativa foi abafada pelo abraço e pelo beijo do pai:
Mas o pai disse aos empregados: “Depressa, tragam a melhor túnica para vestir meu filho. E coloquem um anel no seu dedo e sandálias nos pés. Peguem o novilho gordo e o matem. Vamos fazer um banquete. Porque este meu filho estava morto, e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado”. E começaram a festa (vv. 22-24).
Ao determinar que os empregados providenciassem “a melhor roupa”, o pai demonstrou uma situação de exaltação diante do quadro de miséria anterior. O filho chegou descalço, como um escravo, e recebeu sandálias como um homem livre. Caminhar pelas trilhas do pecado deixa nossos pés em feridas. A graça de Deus é como um calçado que protege os pés e não nos deixa resvalar (cf. Sl 17, 5; 121, 3). O anel que o pai coloca no dedo do filho, dentro dessa simbologia de restauração, revela o restabelecimento de uma aliança. Essa aliança é retratada por muitos gestos do pai: além do anel, a túnica nova, a sandália, o beijo e a festa. Quanta riqueza se pode haurir desses gestos que, no discurso de Jesus, caracterizam a atitude receptiva de Deus!
A misericórdia é a virtude-tipo de nosso Deus (cf. Ef 2, 4). Por ela Jesus se encarna (cf. Jo 3, 16) e morre na cruz (cf. Fl 2, 7s). É também movido por misericórdia que o Pai o ressuscita (v. 9ss). A única paga adequada ao uso da misericórdia é a própria misericórdia. Nesse episódio Jesus deixa bem claro. Só usando de misericórdia é que obteremos a suprema misericórdia do Pai.
Deus age sempre com profunda misericórdia, perdoando as nossas dívidas, acolhendo, esquecendo, passando um pano para apagar as nossas faltas. Sua misericórdia é uma dádiva gratuita, sem jogo de palavras, sem qualquer contrapartida, a não ser a nossa própria misericórdia para com nosso próximo.
A causa, o fundamento de nosso cristianismo, é a misericórdia de Deus; é seu amor pelo filho, pelo mundo e por nós. Ele amou o mundo que, deu seu filho, para que quem nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna (cf. Jo 3, 16). Misericórdia, encarnação, cruz, ressurreição. Este é o itinerário da nossa fé e da nossa redenção.
A festa que o pai faz para recepcionar o filho que resolveu voltar é semelhante à alegria de um pastor que reencontra uma ovelhinha extraviada, ou de uma dona-de-casa que acha uma valiosa moeda que estava perdida. Por conter, como sinal do perdão e do amor do Pai, estas três magníficas histórias, chamadas “parábolas da misericórdia”, é que o Terceiro Evangelho é chamado o evangelho da misericórdia. Por este motivo, não podemos lê-las como histórias bonitas, mas como um relato de nossa vida de pecados e do amor do Pai, sempre disposto a nos perdoar
A figura da fome, que assola o jovem da parábola é aquela indigência espiritual e afetiva que afeta o trânsfuga. Primeiro ele quer novas experiências; depois, quando vê que foi vítima de uma ilusão, deseja voltar. Às vezes não pode retornar; em outras, a vergonha do vexame o impede. A comparação que Jesus emprega nesse discurso é forte, porém real: na casa do Pai temos fartura; lá fora, o patrão mais que cruel (o mal, a sociedade de consumo, as estruturas viciadas, o diabo) não nos permite comer nem a comida dos porcos.
O patrão é, diz a narrativa, “um homem do lugar”. Sim, um lugar distante (de Deus), um lugar de patrões que exploram e humilham a quem vem se assalariar. O patrão personifica o demônio, aquele que é traiçoeiro, promete luz, mas conduz às trevas. É interessante ver como há dois mil anos, Jesus intuía a prática de muitos patrões de todos os tempos. Uma sociedade sem Deus! Acho que aqui cabe uma descrição de cada personagem nesse drama narrado por Jesus, que só aparece nos escritos de Lucas.
Não há dúvidas em reconhecer no filho mais novo, a pessoa humana, sujeita à queda e ao pecado. Tendo tudo junto a Deus, ele vai buscar numa vida de aventuras, emoções que acabam degradando-o e tornando-o infeliz e irrealizado. Respeitando sua liberdade, Deus não o amarra nem o detém. Por ter liberdade e consciência, o filho sabe o que está fazendo. O Pai sente mas não o impede de sair de casa, a cata de aventuras.
É o chamado “filho pródigo”, irrequieto, insatisfeito, dispersivo. Tem tudo na casa do pai, mas prefere viver numa “corda bamba”. Pede sua parte na herança e viaja para uma vida desregrada, no estrangeiro. É o típico caso de quem quis “viver sua vida”, curtir sua liberdade e, como se diz, popularmente, acabou “quebrando a cara”. Enquanto tinha dinheiro tinha amigos e a companhia das mulheres. Quando sobreveio a fome, junto com as mulheres, foram-se também os amigos. Para não morrer de fome, ele teve que trabalhar. E foi empregar-se numa granja, cuidando de porcos. A narrativa é expressiva ao narrar sua carência: ele sentia fome e tinha vontade de comer a comida dos porcos, mas nem isso lhe era permitido.
Caindo em si, concluiu pela inutilidade daquilo que imaginava ser um sonho (e que se converteu em pesadelo). Aquela não era a vida boa que sonhara. Enquanto na casa de seu pai, até os empregados tinham mais regalias do que tinha agora, ele estava naquela situação penosa, vexatória e sem horizontes. Decide voltar, encarar o pai, e pedir-lhe perdão.
Embora queira passar uma imagem de “bom moço”, coerente com o que é justo, ponderado, na verdade o filho mais velho é tão culpado quanto o tresloucado irmão mais novo, pois é, como aquele, um desagregador da família, já que ignora o drama do irmão, pensando só em si, com ciúmes da acolhida que o pai dispensou ao outro filho que voltou, e com pena de ver o patrimônio (o novilho mais gordo) partilhado com os convidados da festa. Figura bem antipática é a do irmão mais velho! Às vezes, certas pessoas das comunidades, que estigmatizam os que erraram, rotulando-os, exercendo qualquer tipo de discriminação, impedindo-os de reingressar na comunhão dos redimidos, lembram, bem de perto, este triste personagem. Podem ser também os “santinhos”, os “mais antigos”, os “graduados”, para quem o recém convertido, o em conversão, ou quem não fez essa ou aquela etapa, ou não tem tempo de casa, não tem direitos...
O patrão, pela narrativa é um “homem de objetivos”. Seco e insensível, como o são muitos empresários. Ele não quer saber se o empregado tem fome ou não. Sabe que ele chegou até ali para servi-lo incondicionalmente, e assumir o compromisso com o bem estar dos porcos, principal atividade daquela empresa. Àquela altura, isso é que interessava. Como empresário ele não está ali para ter pena de ninguém, ainda mais sabendo que, chegando aonde o rapaz chegou, dificilmente há caminho de volta. Ele é, diz a narrativa, “... um homem do lugar”. Sim, um lugar distante (de Deus), um lugar de paixões. O patrão personifica o mal, aquele que é traiçoeiro, promete luz, mas conduz às trevas. O patrão é o diabo. Ele é um ser com objetivos bem definidos. Seus objetivos são a perdição dos filhos de Deus. Sabe que o rapaz tem fome e manda-o cuidar de porcos. Na cultura judaica o porco é um animal imundo. Pois o jovem vai tratar daqueles animais, e nem da comida deles pode comer...
Essa evidência assustadora nos mostra que o homem em pecado, rompido com o Pai, é rebaixado, fica abaixo dos porcos, merece sua companhia, e seus alimentos são comuns. O demônio sempre é o oportunista que acena com alguma coisa para levar a pessoa para baixo, a conviver com os porcos. Ele oferece ilusões para roubar valores...
E o pai, quem é? O pai é Deus! Ele acolhe o filho que errou, caiu em si e quer voltar. A narrativa deixa a antever que o pai diariamente olhava a estrada, na esperança de ver o filho voltar. Quando o reconhece, claudicante a alquebrado, teve compaixão e correu-lhe ao encontro (v. 20). Isto mostra que, enquanto, arrependido, o homem caminha na direção de Deus, este corre ao seu encontro, ávido de reintegrá-lo na antiga dignidade de seu filho e herdeiro do Reino.
Enquanto remorso e arrependimento caminham, perdão e misericórdia correm ao encontro do pecador que cai em si, pois o perdão é sempre maior que a falta cometida, desde que haja contrição e desejo de conversão. A misericórdia de Deus é superior até à justiça. A parábola, tão habilmente narrada por Lucas, uma das mais ricas dos evangelhos, suscita-nos uma série de reflexões que projetam a revelação do grande e misericordioso amor de Deus. Aqui, como de resto em outras passagens, Lucas foi extremamente feliz em respigar o sentido real das palavras de Jesus, transmitindo-as às gerações posteriores de cristãos do mundo todo.
Ao referir-se à expressão “... partiu para um lugar distante” (v. 13), Jesus quis dar a idéia própria do afastamento, quando o pecador se afasta de Deus, indo para bem longe dele. (Algumas traduções referem-se “... a um país estrangeiro”). Essa fuga retrata o homem fugindo de sua finalidade, renegando o real sentido de sua vida, que é ser filho de Deus, irmão de Jesus Cristo e dos outros homens e membro da Igreja. A finalidade da criação, é o homem feliz. A Escritura diz que o jovem perdeu seus bens vivendo dissolutamente, ao sabor das paixões, numa vida desenfreada, sem limites de ética, moral e bom senso. Viver dissolutamente é viver contra o projeto de Deus, violando sua finalidade de criação, andando, não no sentido da vida, mas na contramão dela. A fome é o vazio de alguma coisa que foi perdida. Na história, a fome física representa a miséria moral e espiritual que a pessoa sem Deus experimenta. Tanto assim, que alguém que é filho precisa assalariar-se para sobreviver. Isto denota a dignidade perdida em função da ruptura voluntariamente intentada. Nesta conformidade, vemos alguém rico pedindo trabalho...
O jovem olha para dentro de si mesmo e não vê nada. Não encontra em si aquela jovialidade de outros tempos. O homem em pecado não se reconhece a si próprio. A imagem divina nele está desfigurada. À sua frente está o seu pecado, empurrando-o, cada vez mais, para baixo. O rapaz, como o pecador, avalia-se: Já não possui bens, gastou; já não possui dignidade, perdeu.
É interessante notar que nossa sociedade moderna impõe um padrão, uma condução de vida que, mais se assemelha à pocilga dos porcos que à casa paterna. É uma sociedade imoral, permissiva, conseqüencialista, oportunista e voltada quase que exclusivamente para as coisas materiais. Quem tem dinheiro é amado, visitado, prestigiado. Quem é pobre, quem caiu em desgraça, é marginalizado, perseguido, excluído... Não há exagero nenhum dizer-se que certos tipos de vida, sugeridos e apoiados por muitos modelos sociais modernos, assemelham-se, biblicamente, à repugnante tentativa de comer a comida dada aos animais do chiqueiro.
O trabalho de cuidar porcos conduz exatamente a esse raciocínio: retrata a perda, da identidade e da dignidade humana. Não que cuidar de porcos hoje seja vergonhoso. Acontece que, como já foi dito, entre os judeus era proibido comer, transportar e até tocar nos porcos. Os animais foram introduzidos na parábola, justamente para evidenciar, pelo enfoque judaico, a situação de degradação, similar àquela que ocorre no pecado.
Caindo em si, o filho reconhece que tudo aquilo que ele buscou no mundo, ele tinha na casa de seu pai. É o pecador que se convence que em Deus sua alma repousa, e só o Pai pode fazê-lo feliz. Só o Reino é sua casa. O rapaz reconhece que até os assalariados (algumas traduções mais antigas dizem jornaleiros) da casa de seu pai, têm vida melhor que a dele. O pecador sabe que, mesmo aquela pessoa mais simples, mais humilde, desfrutando a graça de Deus, tem mais paz no coração, vive mais feliz do que ele. E essa angústia o impele à volta. Voltar, deve ter pensado o filho, é difícil, humilhante, vergonhoso... É aquela dificuldade que o pecador experimenta, aquela vergonha de voltar, aquele medo de ser rejeitado...
Consciente de seu erro, o jovem sabe que mereceu todo o transtorno que passou, e mesmo passando a vergonha de tornar-se, não mais um filho, mas ser um assalariado na casa do pai é melhor do que a miséria que ele sofre. Ele tem consciência de que magoou e ofendeu o pai. Assim é o pecador. Envergonhado, deprimido e inseguro, ele tem que arriscar. Sabe que a vida lá fora é terrível, sabe que Deus, embora ofendido, é bom e vai perdoar-lhe as faltas. E decide voltar. Aí sim... Em toda a história o pai não foi buscar o filho, respeitando sua decisão. Na vida, Deus não vai atrás de nós, respeitando nossa liberdade. Quando, porém, reconhecemos nossa culpa, como o jovem da parábola, e damos o primeiro passo de volta para casa, o Pai assume o controle da situação, e vem ao nosso encontro para nos receber.
É interessante notar que, com o arrependimento e o propósito, o filho prepara, como que um discurso para pedir perdão ao pai, afirmando que não é mais digno de ser seu filho, e aceita ser tratado como empregado. Na estrada, no caminho de volta, o Pai reconhece o filho. Reconhece-o mais pelo coração do que pela visão. Sujo, alquebrado, magro, passo trôpego, caminhando devagar, cabeça baixa... só um Pai que ame muito pode identificar, num caminheiro assim, seu próprio filho. Reconhecendo-o, o Pai corre a seu encontro. O personagem central nesta parábola de Lucas, não é o filho que dissipou os bens familiares, vivendo dissolutamente. A ênfase aqui recai na atitude do pai, que é rico em misericórdia.
Diferentes das “parábolas do Reino”, por exemplo, onde o Senhor ensina verdades importantes ou ensinamentos morais decisivos, revelando ao povo como será o Reino que ele veio instaurar, para o qual – sem exceção – todos estão convidados, as “parábolas do coração” não tratam nem de estruturas nem de regras morais. Nelas, o protagonista principal é o amor incondicional de Deus, amor esse que vai além da lógica, da razão e de todos os limites que ele queira impor a sabedoria humana. Sua medida consiste em não ter medida.
Péguy conclui, que “enquanto houver cristãos de fato, sempre haverá no coração humano um lugar recôndito onde guardar a mensagem dessas três parábolas”.
O texto-base é de Carmen Galvão. A aula foi ministrada por Antônio na Paróquia Nossa Senhora das Graças, em Canoas (RS), em agosto de 2010, no pós-encontro do ECC. A autora é Teóloga Leiga, Socióloga, Biblista e Escritora, autora de uma dezena de livros, entre eles “São Lucas, evangelista e missionário” (Ed.Recado, 2010).