A Glória de Deus {SERMO XCI)
A GLÓRIA DE DEUS
Prof. Dr. Antônio Mesquita Galvão
Os anjos clamavam uns para os outros:
“Santo, Santo, Santo é Javé dos exércitos,
a sua glória enche toda a terra” (Is 6,3).
Enquanto os outros evangelhos (Mateus, Marcos e Lucas) são – na falta da expressão certa, talvez eu use uma inadequada – mais superficiais, o de João é mais denso, copioso e profundamente teológico. Os outros são “sinóticos”, onde um é, de certa forma, cópia do outro, e se propõem a relatar fatos ocorridos na vida de Jesus, de uma forma de sinopse, a vol d’oiseau, o de João quer expor com consistência não somente os fatos ocorridos, mas o significado salvífico e soteriológico desses fatos. João é o teólogo por excelência.
O evangelista João começa o IV Evangelho falando em “no princípio...” (en arché, no grego), onde havia o lógos que estava em Deus. Isto é semelhante à abertura do livro do Gênese, que começa dizendo que “no princípio... (bereshit...em hebraico) Deus criou o céu e a terra...”.
O apóstolo João fala três vezes de forma vigorosa na gloria de Jesus, três vezes que são suficientes para estabelecer uma cobertura de todos os vinte e um capítulos do seu evangelho, da mais profunda espiritualidade:
1. Na encarnação
E a Palavra se fez homem e habitou entre nós. E nós
contemplamos a sua glória: glória do Filho único do Pai, cheio
de amor e fidelidade (Jo 1,14).
Aqui Deus é glorificado por causa de um grande sinal, quando a sua Palavra (o lógos) se faz carne (en-carn-ação), tornando-se homem (cf. Gl 4,4). O ato de habitar entre nós agrega a idéia de “armar a tenda” no deserto, onde Javé manifestava a sua glória: “A nuvem cobriu a tenda da reunião e a glória do Senhor encheu o santuário” (Ex 40, 34s).
2. No milagre de Caná
Este foi o início dos sinais em Caná da Galiléia, Jesus
manifestou sua glória e os discípulos creram nele (Jo 2,11).
Nos milagres de Cristo a glória de Deus se manifesta de maneira que possa ser vista, compreendida e expectada pelos homens. No milagre de Caná há toda uma pedagogia que aponta para a mudança. Os estudiosos chamam este episódio de “teologia da substituição”, onde a água é substituída pelo vinho, o templo pela Igreja, a lei velha pelo Mandamento Novo, e o temor é mudado em amor. Aqui há todo um conjunto de símbolos judaicos que é substituído pelos valores do cristianismo.
É nessa mudança, para um estágio definitivo que se revela a glória de Deus. A mudança da água em vinho simboliza a passagem do amor dos noivos (humano) em amor definitivo (o amor divino, o vinho de melhor qualidade). Em Caná da Galiléia, ocorre a primeira manifestação pública da glória de Jesus no Novo Testamento.
3. Na vivificação de Lázaro
Eu não lhe disse que se você acreditar verá a glória de
Deus? (Jo 11,40)
No trecho que trata da vivificação de Lázaro (vv.3-44) aparece sete vezes referências ao senhorio de Jesus. Ao ordenar em voz alta que Lázaro saia do túmulo, ele quer atribuir toda a glória ao Pai e fazer com que os presentes creiam na sua missão redentora. Seu brado é um chamado à vida, quase como uma palavra criadora, “que dá vida aos mortos e chama à existência o que não existe” (Rm 4,17). Tudo isto concorre para a glória de Deus e de Jesus, seu ungido. Usei aqui o verbete “vivificação” por julgar que a palavra “ressurreição” neste caso é inadequada. Ressuscitar é voltar da morte e não morrer mais.
No terreno da teologia bíblica é possível se enxergar quatro estágios da glória de Cristo:
• a glória do estado anterior à encarnação, na preexistência
que o logos desfrutava junto ao Pai (cf. Jo 17,5);
• a manifestação simbólica e preparatória dessa glória no AT,
conforme a profecia (cf. Is 12,41);
• sua revelação visível, na forma humana, na vida e na obra
do Verbo encarnado, que resplandecia a cada milagre,
conforme se vê em Jo 2,11;
• a manifestação final e perfeita de sua glória divino-humana,
na eternidade, e da qual todos os que crêem haverão de
compartilhar (cf. Mt 25, 31; Jo 17,24).
João é o teólogo maior do amor de Deus. Ele levou sessenta anos para escrever seu evangelho... amadurecendo o texto... é o único que definiu Deus (Deus é amor...), assim como foi o único que fez uma reflexão teológica sobre o amor de Deus (cf. Jo 3,16)... não é uma descrição, uma narrativa... mas, mais que isto: uma reflexão teológica...
Os judeus falavam em kãbôd (kôf-bet-dahlet) Yahweh, a glória de Javé para referirem ao poder de Deus. Nos antigos escritos semitas do Oriente Médio, a palavra kãbôd se referia a uma idéia de peso, onde o peso de um ser na existência definia a sua importância e o respeito que era capaz de inspirar o seu prestígio e a sua glória. No fim do período ágrafo, as bases da glória apontavam para as riquezas do indivíduo, tanto que se dizia que Abraão era “muito glorioso” porque possuía oura, prata e gado (cf. Gn 13,2).
A história de Jó é conhecida de todos nós, como um paradigma de fé e resignação. Abatido pela doença e empobrecido pela má sorte, ele afirmou que “Javé me despojou da minha glória...” (cf. Jó 19,9). Posteriormente, a glória se tornou o apanágio da realeza. Com o andar do tempo, a Bíblia prestou atenção à fragilidade da glória humana:
Não temas quando o homem se torna rico, quando cresce a
glória de sua casa. Ao morrer ele nada levará consigo e sua
glória não descerá com ele (Sl 49,17s).
Surge então a questão: O que é a “glória de Deus”? Esta é uma questão que envolve todo um processo de aprendizado espiritual. Esta pergunta é uma das que mais se escuta em cursos, aulas, retiros de espiritualidade. A expressão “a glória de Javé” designa o próprio Deus enquanto se revela em sua majestade e poder, no brilho de sua santidade e no dinamismo de seu Ser. A glória de Javé, é prudente que se recorde sempre, é epifânica.
O céu manifesta a glória de Deus, e o firmamento proclama a
obra de suas mãos (Sl 19,2).
Deus é Onipresente, isto é, está presente em toda parte! A presença do Senhor cobre toda a terra, cremos e aceitamos isto pela fé. Há momentos em que Deus se manifesta de maneira que a sua presença pode ser percebida e compreendida pelos homens.
Enquanto Aarão falava para toda a comunidade de Israel,
lharam para o deserto e viram que a glória de Javé aparecia
em uma nuvem (Ex 16,10).
Moisés passou quarenta dias na presença de Deus no monte Sinai, sem vê-lo diretamente. Ao descer o seu rosto resplandecia de tal forma que o povo não lhe podia olhar diretamente. Ele teve que cobrir seu rosto com um véu (cf. Ex 34,29-35). A escritura nos mostra que Deus falava a Moisés “face a face, como qualquer um fala com um amigo...” (cf. Ex 33,11). Moisés ouvia Javé, mas não o enxergava fisicamente. O Senhor afirmou a Moisés (v. 23) “tu me verás pelas costas; mas a minha face não poderás ver”. A glória de Deus é um mistério.
Moisés pediu a Javé: “Mostra-me a tua glória”. Javé respondeu: “Farei passar diante de você todo o meu esplendor, e pronunciarei diante de você o meu nome: Javé. Terei piedade de quem eu quiser ter piedade, e terei compaixão de quem eu quiser ter compaixão”. E acrescentou: “Você não poderá ver o meu rosto, porque ninguém pode vê-lo e continuar com vida”. E Javé disse ainda: “Eis aqui um lugar junto a mim: fique em cima da rocha. Quando a minha glória passar, eu colocarei você na fenda da rocha e o cobrirei com a palma da mão, até que eu tenha passado. Depois tirarei a palma da mão e me verás pelas costas. Minha face, porém, você não poderá ver” (Ex 33, 18-23).
Em alguns momentos, a palavra glória se refere à presença do Senhor, como quando Moisés e Aarão disseram aos israelitas: “Pela manhã, vereis a glória do Senhor” (Ex 16,7). Davi escreveu: ”Os céus proclamam a glória de Deus” (Sl 19,1), e ele também ansiava ver a glória do Senhor. Para o salmista, em Deus está o único fundamento sólido da glória (cf. Sl 62, 6.8). Quando Salomão dedicou o templo, a glória de Deus desceu em forma de uma nuvem que encheu toda a casa (2Cr 5,13s). Hoje a Igreja canta a glória da presença de Deus, recomendando “vem louvar... e sua glória vai encher este lugar”.
Na literatura semita, o sentido da palavra glória aparece como algo magnífico, portentoso, digno de admiração, como v.g., a imponência dos cedros, que são a glória do Líbano (cf. Is 50,13)... A “arca da Aliança” representava Javé o “rei da glória” (cf. Sl 24,7; 132,8) e foi solenemente levada a Jerusalém por Davi (cf. 2Sm 6) por refletir a glória de Israel. Por conta dessas idéias que a Bíblia recomenda que o povo glorifique a Deus, pois sua magnitude enche o mundo de glória, como as águas enchem o mar. O poder e a santidade de Deus reclamam o respeito dos homens. É nisto que repousa a glória do Inefável.
De fato, na maioria dos textos do Antigo Testamento a glória de Javé aparece em estreita relação com o poder e a santidade de Deus (cf. Ex 14, 4,7; Nm 14,21s; Sl 19,2). É a revelação desse poder e dessa santidade que forma a glória de Javé. Essa glória, no Sinai aparece numa nuvem resplandecente de fogo (cf. Ex 14,15s). No deserto, era no Tabernáculo que Javé costumava revelar sua glória em notáveis teofanias (cf. Ex 29,43). A tenda, posteriormente, daria lugar ao Templo (cf. 1Rs 8,11).
O céu anuncia a glória de Deus, e o firmamento a obra de
suas mãos (Sl 19,2).
A Bíblia nos relata que quando a glória de Deus enchia a tenda do Tabernáculo ou o Templo ninguém podia entrar (cf. Ex 40,35; 1Rs 8,11), tamanho impacto que a presença de Deus provocava nas pessoas. Nesse mesmo aspecto, os profetas anunciaram que a glória de Javé, como poder real e santidade que, como uma luz surgirá sobre Sião (cf. Is 60, 1-3. 19s; 62,1s).
Dar glória, ou glorificar, significa reconhecer a importância de alguém, sua dignidade e seu prestígio. Trata-se de refletir, de alguma forma o esplendor do seu brilho, devolvendo-o a ele. Na filosofia, a glória simbolizava a riqueza essencial que se refletia nas coisas. Na teologia, ao contrário, a santidade revela que a glória é de tal modo superior a tudo o que existe, que ela não pode entrar em relação com coisa alguma nem se comunicar com ninguém. É por isso que há, desde o princípio, uma respeitosa reverência com relação à glória de Deus. A resplandecente e inatingível dignidade de Javé, inacessível aos homens, se torna visível em Jesus Cristo.
Do verbete glória, por derivação vamos encontrar outras palavras, como glorificar, glorificado, gloriar(se) e louvar em honras e glórias, que na teologia bíblica se referem ao dever dos crentes em manter uma relação com a presença gloriosa do Senhor, glorificando-o e, ao mesmo tempo, gloriando-se de ser objeto do seu amor e dos seus cuidados de Pai.
O que era kâbôd para os hebreus, surge como dóxa, no grego (delta-ómicron-csi-alfa). No meio da teologia bíblica do Novo Testamento, dóxa tem o significado de glória de Deus ou glória de Jesus Cristo (cf. Jo 2,11; 1Ts 2,2 e outros). No grego profano, porém, dóxa significava opinião, tese filosófica, boa fama, notoriedade, etc. A revelação essencial do Novo Testamento é a ligação entre a glória e a pessoa de Jesus. A glória de Deus está integralmente presente nele, Filho de Deus, que é o resplendor de sua glória e efígie de sua substância (cf. Hb 1,2).
Os sinais de Jesus (semêion, significado de “milagres” no grego) foram feitos como lições objetivas, algo para ser visto e dar embasamento à fé das pessoas, membros daquela ekklesía (Igreja) que ia ser instaurada. Os milagres de Jesus serviram de manifestação especial de glória, glória esta pertencente particularmente ao Messias, o “agente especial” de Deus, o seu Filho amado. À desolada irmã de Lázaro, diante da morte prematura do irmão, Jesus afirma, como já falamos aqui, que
[...]aquele que crê verá a glória de Deus (Jo 11,40),
não como um mero consolo de palavras, mas como antecipação de um sinal de vida naquele emocionado ambiente de morte. Aqui o próprio Jesus alude à doxan tou theou (a glória de Deus) como uma realidade teológica que transforma e dá vida nova. Ao se intitular “a ressurreição e a vida” Jesus faz clara alusão à glória de Deus disponível à humanidade em forma de graças e dons.
Como manifestação (ou teofania) a glória de Deus é uma luz. João viu (Ap 15,8) o templo celeste repleto da fumaça pela glória e pelo poder de Deus. A Nova Jerusalém estava ornada com a glória de Deus e o seu esplendor se assemelhava a pedras preciosas. Nessa visão, em torno dos anjos aparecia a luz da glória de Deus (cf. Ap 18,1).
Na transfiguração de Jesus (cf. Lc 9,28-32) enxergamos outra manifestação de sua glória, bem como em alguns milagres que ele realiza no decorrer de sua vida pública. Nós chamamos de “glória de Deus” aqueles momentos marcantes ou visitações especiais de Deus, que chamam a nossa atenção e ficam indelevelmente gravados em nossa memória.
Não poderíamos deixar de estudar aquilo que se chama de “a glória pascal de Jesus”. Pela ressurreição e ascensão ele já entrou na glória divina (Lc 24,26) que o Pai, em seu amor, lhe deu antes da criação do mundo” (cf. Jo 17,24). O Deus-Jesus foi envolto na nuvem divina, elevado (cf. At 1,9.11), arrebatado na glória (cf. 1Tm 3,16). O Pai o ressuscitou e lhe deu glória (cf. 1Pd 1,21). Essa glória, como a glória de Javé do Antigo Testamento é instância de pureza transcendente, de santidade, de luz; luz e poder.
A “glória de Deus” é seu esplendor. A kãbôd Yahweh é o próprio Deus em toda a sua incomensurável grandeza, majestade e Poder. O Senhor manifesta a sua glória a nós por etapas, até onde possamos suportar.
Pela contemplação da glória de Cristo os cristãos absorvem aquele fulgor, e essa glória não é passageira como aquela de Moisés, mas cresce de forma contínua. Nesse aspecto, a transformação dos discípulos de Jesus consiste na semelhança cada vez maior com ele, que é a imagem visível do Deus invisível. No Novo Testamento vemos que a glória de Deus apareceu a Paulo no caminho de Damasco, e ele ficou cego por três dias (cf. At 9,3-8).
Um dia os justos irão habitar na glória do Senhor, na Jerusalém Celeste; “A Cidade não precisa do sol nem da lua para ficar iluminada, pois a glória de Deus a ilumina e sua lâmpada é o Cordeiro. As nações caminharão à sua luz, e os reis da terra trarão a sua glória para ela” (Ap 21,23s).
Na oração de despedida, Jesus pede pelos seus amigos, pela Igreja e pelos que haverão de crer, e clama para que estejam presentes para contemplar a sua glória:
Pai, aqueles que tu me deste, eu quero que eles estejam comigo onde eu estiver, para que eles contemplem a minha glória que tu me deste, pois me amaste antes da criação do mundo (Jo 17,24).
Quando o anjo anunciou o nascimento de Jesus aos pastores, a glória de Deus brilhou ao redor deles. (Lc 2,9). A oração do Pai-Nosso, quando Jesus nosso Senhor nos ensinou a glorificar o Pai que está no céu, termina com “pois Teu é o reino, o poder e a glória para sempre” (Mt 6,13).
Na verdade, o cristão não possui glória que lhe seja própria. Ele “rende glória a Deus” através de sua atividade nesta vida. São Paulo, referindo-se à vocação do cristão para as coisas do Alto, que “Deus conquistou para si um povo, para o louvor da sua glória” (cf. Ef 1,14). Na escatologia (o dia do juízo) o Deus-Jesus vai manifestar toda a sua glória para sempre:
Quando o Filho do Homem vier na sua glória, acompanhado
de todos os anjos, então se assentará em seu trono glorioso.
Todos os povos da terra serão reunidos diante dele, e ele
separará uns dos outros, assim como o pastor separa as
ovelhas dos cabritos. E colocará as ovelhas à sua direita, e
os cabritos à sua esquerda (Mt 25, 31ss).
A glória de Deus é dom, é graça, é deslumbramento. Ela é a luz divina, que funciona como um clarão nas trevas. Tem o sabor da água fresca num dia de calor; é música suave em nossos ouvidos. Ela atua em nossa vida como um momento de alegria e consolo na hora da tristeza e da solidão, e tem a força do amor que supera a dúvida e a indiferença.
O amor está na origem do nosso ser-cristão: Cristo amou sua Igreja e se entregou por ela... ele quis apresentá-la a si próprio toda esplendorosa de glória, sem mancha nem ruga, mas santa e imaculada (cf. Ef 5,25.27). Nesse mistério de amor e de santidade se consuma e resume a revelação da glória de Deus. Depois disto, acho que pouca coisa resta a dizer, a não ser
GLORIA AO PAI,
GLÓRIA AO FILHO E
GLÓRIA AO ESPÍRITO SANTO!
Como era no princípio, agora e sempre.
Amém!
Excerto da pregação realizada em um retiro de padres no Rio de Janeiro, em abril de 2010. O autor é Biblista, Doutor em Teologia Moral e pregador de retiros de espiritualidade. Escritor, possui mais de cem livros editados, no Brasil e exterior, entre eles “O dom de Deus” (Ed. Ave-Maria, 2001).