A corporeidade [SERMO XC}

A CORPOREIDADE

O corpo é semeado corruptível, mas ressuscita incorruptível;

é semeado corpo animal e ressuscita corpo espiritual

(1Cor 15.42.44).

Antes de avançarmos em nosso estudo é indispensável que se adquira uma boa idéia a respeito daquilo que a teologia chama de corporeidade. Esse conhecimento é chave para o conhecimento da escatologia.

Sobre o tema corporeidade os dicionários em geral nos dão definições acadêmicas, do tipo qualidade, propriedade do que é corpóreo, que não chegam a esclarecer devidamente as nossas dúvidas sobre o assunto. Em muitos casos, a palavra surge, especialmente nas disciplinas de fisiologia, como cuidados com o corpo, com a forma física, etc. Para que se tenha uma noção mais clara de ressurreição – até onde nos permitir nossa limitação – é importante que se conheça alguns fundamentos daquilo que se chama corporeidade. É impossível estudarmos escatologia sem um conhecimento de corporeidade. Quando o Coélet diz

Na vida há um tempo para cada coisa; tempo para nascer e

tempo para morrer (Ecl 3, 2).

Esse morrer não significa, de modo algum, um fim ou uma perda total, mas uma simples transformação do corpo, que se otimiza, para viver, com a alma, no esplendor da glória. Como unidade inseparável, o homem vive, mesmo na morte, sua totalidade multidimensional. Nisso há uma unanimidade entre as teologias católica e protestante. Assim, não é possível se falar em escatologia, pregar as maravilhas da vida eterna, ou consolar uma família, numa celebração de exéquias, se desconhecemos os rudimentos daquilo que a teologia e a antropologia cristã chamam de corporeidade.

Na antropologia platônica há como que um desprezo ao corpo. Homem sábio, segundo Platão, é aquele que prepara a libertação de seu espírito, deixando de lado o corpo, que só atrapalha. A antropologia cartesiana é igualmente dualista, embora não despreze o corpo.

Para compreendermos a corporeidade vamos nos valer de uma comparação feita por R. J. Blank, meu antigo professor, entre o ser humano e um computador. No computador temos o software (os programas) e o hardware (a máquina em si). Mesmo assim, para funcionar é necessária a energia da tomada. Sem essas coisas, o computador perde sua funcionalidade. Quanto ao homem ocorre algo semelhante.

Ele tem suas realidades psíquicas que ocorrem no corpo, na alma e em suas emoções. Se separarmos, o material do espiritual, e desprezarmos a energia (a graça) jamais teremos um homem completo. É aquela história do cachorro. Se eu o corto no meio, não tenho dois cachorros, dois meios nem tampouco um. Não tenho nada. Assim ocorre se tentarmos dividir a realidade humana.

A antropologia bíblica não possui nenhum dualismo ontológico. Ali não se faz distinção entre um elemento mortal (o corpo) e um elemento imortal (a alma). O ser é uma unidade. Há exceções: no Antigo Testamento, alguns trechos de influência helenista (em Sb, 1-2Mc). No Novo Testamento há vestígios dialéticos e gnósticos em outras passagens isoladas (em Jo e 2Cor).

A libertação do Egito e a entrada na “terra prometida”, assim como a libertação, a redenção e a salvação, são realidades concretas que abrangem o homem por inteiro. Há uma unidade e não um sistema binário. Antes de se olhar o que queria dizer Paulo sobre “corpo”, “carne” e “espírito”, precisaríamos perguntar qual é a concepção da pessoa humana na integridade.

A Bíblia enxerga a pessoa humana sob o prisma de uma grande unidade. Ela não tem um termo para alma sem corpo, nem para corpo sem alma. Cada conceito que se faz da pessoa humana compreende a pessoa toda, inteira. O ser humano foi criado corpo e alma, e nem a morte pode alterar essa unidade. No Antigo e Novo Testamento, vemos as seguintes situações existenciais, das quais se falará mais, adiante: basar, nefesh, ruah.

Mesmo no AT observa-se uma tendência a considerar o homem por inteiro. Na basar (carne) ele é solidário; na nefesh (garganta, por onde respira e penetra o sopro vital) e no ruah (espírito) ele tem ligação (aberto a) com Deus. Na antropologia paulina – a mais complexa da Bíblia – o ser é igualmente uma realidade indivisível. Corporeidade é um conceito fundamental da antropologia teológica. Trata-se da própria condição humana do corpo.

Corporeidade, diversamente de corpo, quer superar a

discussão clássica da relação corpo-alma, para evidenciar o

caráter do corpo na sua integridade humana, que determina

mesmo a subjetividade humana e os seus comportamentos

(in: Dicionário de Teologia. Ed. Loyola, 1983. 3 vol.).

Nesse aspecto, observa-se a corporeidade como um estudo teológico iluminado, em parte, pela filosofia fenomenológica de M. Scheler († 1928), G. Marcel († 1973), J. P. Sartre († 1980) e outros expoentes dessa área.

Enquanto o corpo indica, antes de tudo o estado a posteriori do homem, corporeidade indica um estado originário, do homem uno e completo, sobre o qual só transcendentalmente se pode refletir. Nessa conformidade, não se emprega corpo, mas corporeidade. Por esse motivo se diz que a corporeidade não é apenas uma condição provisória do homem. A espera escatológica da salvação conhece um aperfeiçoamento do homem uno e completo.

Na ressurreição da carne (que ultrapassa o corpo original), o corpo humano, como o soma-pneumaticós (corpo espiritual) de São Paulo (cf. 1Cor 15, 44), tornar-se-á lugar da revelação total e da plena atualização da salvação, que veio amadurecendo sobre a terra. Nessa revelação se manifestará, definitivamente, o amor de Deus. Ao contrário do platonismo e do espiritismo que o segue, o corpo não pode ser desprezado, pois é com o corpo, restaurado e cristificado que veremos a Deus;

Nesse particular, soma, não é apenas uma condição externa do homem, mas a realidade única e profunda do ser humano. O homem – repito – não possui corpo; ele é corpo. O corpo, nesse aspecto, retrata a realidade do homem completo. Para tornar-se espírito humano perfeito, ele deve tornar-se sempre mais corpo. Da sua integridade humana, rigorosamente afirmada, resultam dois importantes dados antropológicos:

• na sua origem corpórea, o homem provém todo de uma

relação procriativa universal, comum às criaturas e também

na mesma medida tem Deus como origem;

• devido ao caráter totalmente humano, o corpo é sempre

manifestação do homem completo; é aquela “expressão-

símbolo” a que alude K. Rahner, a “interioridade que se abre”

de R.Guardini. No corpo encontra-se não apenas um

agregado material, mas a aparição do único homem

completo”.

A esse respeito, é oportuna a palavra de M. Schmaus “Não há nenhuma declaração do Magistério que defina obrigatoriamente a morte como separação do corpo e da alma. As declarações oficiais querem garantir a continuidade da vida do homem para além da morte, mas não afirmam expressa e formalmente que esta vida deva ser entendida exclusivamente como imortalidade da alma espiritual” (in: Der Glaube der Kirche). Este é um dado antropo-teológico muito importante, que vai ajudar nossas formulações daqui para frente.

Quem vive segundo a carne se corrompe (Gl 6,8). É em Gl 5,19-21 (“ora, as obras da carne são manifestas: fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, feitiçaria, ódio, rixas, ciúmes, ira, discussões, discórdia, divisões, invejas, bebedeiras, orgias, e coisas semelhantes a estas, a respeito das quais eu os previno, como já preveni: os que tais coisas praticam, não herdarão o Reino de Deus”) que Paulo descreve, quais são as obras da carne, obras que tornam o homem cada vez menos pessoa, ou seja, pessoa-sem-Cristo.

Muitos teólogos e filósofos, com relação à corporeidade, abordam o conceito da dignidade da ética quanto ao corpo humano. Discorrendo sobre a corporeidade enquanto passível de vulnerabilidade nas pesquisas científicas, em alguns trabalhos que se observa, focalizam algumas sinalizações teológicas para a corporeidade, propondo a tese que “a teologia da corporeidade converge para uma soteriologia” e que olhar o corpo é um passo metodológico necessário para a teologia.

Algumas argumentações ou razões em ética (razão ontológica, autônoma, funcional, anamnética, simbólica) e suas implicações no trato da corporeidade procuram esclarecer o corpo como ferramenta de trabalho, vida e passagem.

Sob o enfoque da corporeidade, é salutar observarmos que Cristo usou seu corpo ressuscitado como identidade para o mundo e para todos os tempos. Além de apresentar-se ressurrecto, mostrou seus ferimentos, alimentou-se. O Filho de Deus se fez corpo para solidarizar-se com aqueles que padecem no corpo as chagas do egoísmo alheio. Pelo mistério da corporeidade é que se deve uma imponderável dignidade ao corpo humano, pois vamos ressuscitar com ele.

Claro que não exatamente o mesmo corpo, mas um corpo novo, cuja essência tem identidade com o primeiro. Por uma questão de identidade da massa atômica, moléculas e carbonos, o corpo ressurrecto tem origens no corpo terreno.

Sendo a alma forma do corpo, resulta que não é determinada matéria que confere identidade à corporeidade. A alma, como forma, está aberta à matéria enquanto tal, não necessariamente presa a esta ou aquela matéria. Prova disso é o fato de que, de sete em sete anos, nossas células se renovam totalmente, numa bionecrose. A identidade da corporeidade não depende de determinada matéria, senão da alma.

Disso resulta que há distinção entre “organismo” e “corporeidade”. A corporeidade não depende destes ou daqueles determinados átomos ou moléculas, mas simplesmente da matéria que subjaz à força expressiva da alma. A matéria glorificada deixará fulgurar com toda força a expressão do “eu” humano beatificado pela visão de Deus.

Note-se que o homem ressuscitado na consumação do mundo manterá uma relação nova com a matéria, transfigurada pela glória divina, relação essa que, de algum modo, implica o universo cósmico, já que pertence à essência mesma do homem o relacionar-se com os outros e com o mundo. O éon da futura glória será a otimização da criação, então plenificada pelo Espírito e integralmente salva. Esta certeza segue sendo também hoje, e precisamente hoje, o conteúdo concreto da fé na ressurreição do corpo.

É útil lembrar a antropologia de Santo Tomás: a alma é a forma animada do corpo e o corpo a forma concreta da alma. Ambos se convêm como alma que é princípio de formalização, e corpo como forma facta. A compenetração é tão essencial e unitária que o corpo possui a forma da alma de tal modo que ‘quem vê o corpo vê a alma’.

Então a alma não é uma região ou princípio secreto, mas o olhar que anima os olhos, o riso ou o pranto que animam o rosto, a caridade que cria mãos e pés, etc. Paradoxalmente, como na relação entre olhos e olhar, o invisível é visível no corpo. Mas o corpo é criação, plasticidade, forma e figura em processo de configuração, corpo sempre em nascividade e não só em mortalidade, graças à alma que o anima.

Embora sua teologia fosse de primeira linha e inspirada pelo Espírito Santo, são Paulo pagou tributo a certa pobreza de vocabulário e de idéias ao descrever a ressurreição. Assim como o autor sagrado, que narrou a criação do homem a partir do barro, elemento sólido mais conhecido naquela época, também a antropologia paulina esbarra em certas limitações lingüísticas. Em face disso, ele retrata a ressurreição através de um paradoxal “corpo espiritual”. Como é esse corpo espiritual? Não se sabe, é mistério; só se especula, mas há pistas. É uma realidade integral, do corpo e da alma levados à perfeição.

Como “a glória de Deus é o homem vivo”, conforme ensina Santo Ireneu, deste modo, ao ressuscitar o homem, Deus o realiza ao exemplo de Cristo, corporal e espiritualmente. É a ressurreição de Cristo que possibilitou a glória do homem que se diviniza na escatologia.

Em Cristo, disse Paulo, habita – corporalmente – (somatikós) toda a plenitude da divindade (cf. Cl 2, 9). Com o corpo espiritual, o homem se revela escatologicamente, ou seja, está pronto para viver a eternidade, onde participa da ubiqüidade de Deus. O mistério envolve toda uma transformação. Nossa vida não é tirada, mas transformada. Desfeito o nosso corpo mortal, nos é dado, nos céus, um corpo imperecível.

A otimização – nunca é demais falar nela – do corpo material torna-o diferente. Primeiro ele é revestido de perfeição, imortalidade e maturidade. Dele será tirada toda a limitação. Por causa dessa maturidade, um feto de três meses, um deficiente físico e um ancião de noventa anos, terão corpos semelhantes.

Embora guarde a mesma essência (não é um segundo corpo), pela perfeição que lhe é imprimida, o corpo torna-se diferente. Não é antropologicamente aceita a teoria platônica – e abraçada pelos espíritas – que aponta o corpo como prisão da alma (soma-sema). Não se pode admitir um papel nocivo do corpo (criado por Deus) em relação à alma. Por limitado, ele tem suas deficiências que, na ressurreição são totalmente sanadas. Aí ele deixa de ser corpo, pura e simplesmente, para se converter naquilo que Paulo chamou de “corpo espiritual”.

Jesus não foi reconhecido por Madalena – recordam? – mas confundido com o jardineiro (cf. Jo 20, 11-16); ela só o reconheceu pela voz; pelos jovens que voltavam a Emaús, que viram nele um forasteiro (cf. Lc 24, 13-35); eles só o reconheceram quando ele partiu o pão; e por seus amigos à beira do lago (cf. Jo 21, 1-11). Ali eles só o reconheceram por causa do milagre. O corpo espiritual é o prolongamento, a otimização, uma nova realidade transformada de nosso corpo animal:

De fato, é necessário que este ser corruptível (corpo físico)

seja revestido da incorruptibilidade (corpo espiritual) e que

este ser mortal seja revestido de imortalidade (1Cor 15, 53).

O corpo material é animado pela psiké, que é o princípio organizador da vida biológica (cf. Gn 2, 7). O corpo espiritual será aquele que vai substituir, pela transformação da morte, nosso antigo veículo carnal. Essa nova natureza será de conformidade com a existência após a morte.

Enquanto um, o soma psíkicon, por carne corruptível, é destinado à corrupção. É o corpo que vive a vida terrena. O outro, o soma pneumatikós, por criação de Deus para a eternidade, é espiritual, definitivo e diverso do anterior, que irá substituir nossa realidade carnal.

Igualmente a alma psíquica, psiké, de Paulo (cf. 1Cor 15, 44), de cunho helenista, refere-se mais a uma porção do pensamento humano que se esvai com a morte, ao passo que o espírito, pneuma, é a essência imortal, sintonizada com o Espírito de Deus.

O corpo, como estrutura fundamental do homem, está sempre compreendido na realidade da subjetividade humana. Essa é a essência de sua corporeidade, da qual resultam algumas condições existenciais e naturais, que o limitam, como:

• passividade

pelo fato de ser agredido pelo mundo;

• permanente opacidade

sua limitação não lhe permite ir muito além;

• temporaneidade intrínseca

a atuação do homem, no aspecto temporal, não se completa

jamais;

• individualidade permanente

a individualidade histórica do homem, torna-se elemento

constitutivo de sua eternidade.

Ressurrecto, o corpo-espírito vence todas as suas limitações. A ressurreição conferirá – conforme ensina L. Boff – a cada um a expressão corporal, própria e adequada à estrutura do homem interior. O corpo transfigurado será a perfeita síntese da interiorização humana, sem as ambigüidades e limitações que se tornam um obstáculo intransponível à evolução do corpo de carne. Assim como o grão de trigo reproduz perfeitamente a semente enterrada que lhe deu origem, assim a corpo limitado dará os elementos para o corpo perfeito.

O corpo espiritual - essa é a identidade do homem total - será glorioso, cósmico, comunhão viva, presença perene e relação constante. Nessa nova dimensão, a relação, com Deus e com os demais irmãos, é tão profunda que suplanta as individualidades relacionais do parentesco e da amizade terrena (cf. Lc 20, 27-38).

Ao estudarmos a corporeidade, surge-nos, de forma vigorosa, a questão: como ressuscitaremos?

O catecismo (999) nos ensina que Cristo ressuscitou com seu próprio corpo: “Vejam minhas mãos e meus pés; sou eu mesmo” (Lc 24, 39); mas ele não voltou à sua vida terrena. Do mesmo modo, nele “todos ressuscitam com o próprio corpo, que têm agora” (IV Concílio de Latrão; DS 801), mas este corpo será transfigurado em corpo de glória (Fl 3, 21), em corpo espiritual (1Cor 15, 44).

Esse como ressuscitamos, supera nossa inteligência e nosso entendimento. A uma realidade dessa magnitude só é possível acessar pela fé. Como a ressurreição é uma transformação, nada há a temer quanto a destruição da carne, seja pela cremação, por sinistros, ou pela corrupção. Deus que tirou o mundo do nada haverá de nos criar um corpo glorioso. São Paulo, um especialista em escatologia e corporeidade, chega a falar em “nova morada” (cf. 2Cor 5,1s)

Deste modo, corporeidade significa as várias dimensões do ser humano, como corpo-carne (sarx), alma (psykê), espírito (pneuma); ou corpo, mente, emoções, espiritualidade. Quer dizer que a corporeidade é o ser humano na sua totalidade. O corpo é o ser humano. Portanto, falar em corporeidade não é culto ao corpo (carne), mas bem pelo contrário, é considerar o corpo como a pessoa humana na sua totalidade: corpo-alma-espírito (soma pneumatikos).

A “ressurreição do corpo” (ou da carne) faz parte dos artigos de fé da Igreja que nós continuamente professamos. Só podemos afirmar que cremos após compreender, pelo menos em parte, o que é a ressurreição. No entanto, não poderemos compreender a ressurreição se não entendermos o que é corporeidade.

O assunto corporeidade, por inesgotável, e por se constituir, junto com a ressurreição um mistério, sempre vai carecer de um esclarecimento a mais, o que não invalida nossos estudos e especulações nesse sentido, feitos nesta semana de estudos.

Resumo de um retiro realizado em São Paulo em 2009.

O autor é Biblista e Doutor em Teologia Moral. Prega retiros de espiritualidade no Brasil e exterior. Escritor publicou quatro livros sobre Escatologia: “A Jerusalém Celeste” (1994, 79 páginas), “O Reino dos Céus” (1994, 119 páginas), “A Economia da Salvação” (1994, 64 páginas) e “O Grão de Trigo” (2000, 294 páginas – sua Tese de Mestrado em Escatologia), todos pela Editora Ave-Maria, São Paulo.